>Autonomia

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Tudo pelo esporte

Como sabemos, a NBA está paralizada, algo muito bem explicado pelo Denis em nosso post anterior. Donos de times e jogadores negociam suas parcelas de lucro e demais regras financeiras da liga enquanto torcedores, horrorizados, já são obrigados a imaginar como será a vida sem NBA num futuro próximo. Já tem gente tendo até mesmo que considerar medidas extremas para passar o tempo sem basquete, como sair de casa ou até mesmo ler um livro. Mesmo compreendendo as questões econômicas envolvidas, grande parte dos torcedores não compreende como fatores assim podem impedir o que realmente importa, que é o esporte. Alguns jogadores da NBA estão topando sair do país e ir jogar em lugares bizarros por menos dinheiro do que conseguiriam caso chegassem a um acordo, então por que não abrem mão de algumas exigências e se focam no basquete?

Uma das coisas principais que a paralisação da NBA acaba deixando clara, sem querer, é a opinião continuamente mutável que temos sobre a relação do esporte com o mundo fora dele. Por vezes, acreditamos que o esporte é um mundo à parte, isolado (“o que acontece na quadra, fica na quadra”). Por outras, vemos o esporte apenas como outro negócio empresarial cuja intenção é, como tudo o mais, alcançar os maiores lucros possíveis. Tendemos a ir de um extremo ao outro constantemente, dependendo apenas da situação – ou de quanto ela nos atinge ou nos diz respeito. No esporte, especialmente, muitas vezes nos falta o distanciamento necessário para compreender sua estrutura, seu papel cultural e analisar as motivações presentes em cada mudança brusca de opinião.

Conceitualmente, os jogos são afastados do mundo da vida. Não quero dizer com isso que não façam parte de nossa vida, do nosso dia-a-dia, mas sim que simulam situações reais mas de modo fictício, ordenado, delimitado. Quando jogamos, seja uma brincadeira de roda infantil, seja um esporte como o basquete, estamos executando uma ação que não tem qualquer relação com o mundo fora do jogo. Jogar ou brincar não produz, não tem importância material, não tem propósito definido. O jogo está sempre delimitado por regras, tem hora e local para acontecer, não pode se extender para além da arena (ou ginásio, ou campinho, ou ringue). É o local em que se vive na segurança e na restrição da bolha, fora do mundo “real”. Por isso, quando um boxeador dá uma porrada no outro fora do ringue, ou quando um jogador de basquete quer acertas as contas depois de encerrado o tempo de partida, estamos falando de uma corrupção do jogo. No mundo real, as ações têm consequências e se extendem indefinidamente, um confronto entre duas pessoas pode durar uma vida inteira e o cara pode te achar no Facebook e dizer que você tem pinto pequeno. No esporte, quando a partida acaba está tudo encerrado, não está mais “valendo”, é como dar “pause” no videogame.

Podemos dizer, nesse sentido, que o jogo é algo autônomo. O que vale na vida não precisa valer no esporte, e o que vale no esporte não precisa valer na vida (mesmo que em geral um dede o outro, mas isso é pra depois). É como eu sempre digo, o Bruce Bowen dá uma voadora na cara de um sujeito e está tudo bem porque ele só quer vencer, está dando o sangue pelo seu time; mas se um cara no seu emprego só quer vencer, ser promovido, e para isso te dá uma voadora, todo mundo vai achar escroto e o cara vai pra rua. Nesse sentido, o que acontece no esporte fica no esporte porque entendemos que ele é um mundo à parte, simulado, controlado. E o mesmo vale para qualquer jogo (muitas autoridades ainda precisam entender isso sobre videogames, aliás). É claro que o esporte é, justamente por isso, excelente para dedar algumas coisas: se o Bowen chuta cabeças e nossa cultura acha isso válido em nome de um fim, percebemos muitas das motivações da nossa cultura (e do Bowen) no mundo real mesmo que elas não sejam colocadas em prática. O esporte, por ser autônomo, deda muitas das coisas que queríamos fazer mas recalcamos porque o mundo real não deixa.

Essa autonomia do esporte fica muito evidente quando queremos que um jogador aceite menos dinheiro para “jogar no time do coração”, quando aceitamos algo em quadra que não aceitaríamos na vida real, quando exigimos que um jogador jogue pela sua seleção mesmo que não ganhe nada com isso, ou quando queremos o fim da greve apenas pelo “amor ao esporte”. Mesmo sem consciência de que esportes pressupõe uma autonomia e um distanciamento do mundo da vida, é normal que muitos achem que o dinheiro é muito secundário perto da chance de poder praticar um esporte ou jogar num time de que se gosta. Ninguém trabalha de graça sem ser considerado idiota, escravo ou Pokémon, mas jogadores supostamente deveriam obedecer a outras coisas mais importantes: amor, vocação, honra, orgulho, etc. São sinais da autonomia mal compreendida. É por isso que, quando um time passa a dar prejuízos, seus torcedores não cogitam a possibilidade de fechá-lo. Torcem para seus times, amam seus times, indiferentemente das condições reais econômicas, da crise na bolsa ou da quebra da Grécia. Achamos normal se uma loja do McDonald’s do seu bairro fecha porque estava às moscas, mas o fechamento de um time causa merecidamente horror e revolta. O esporte não está na mesma categoria de simples lojinhas: ele não serve para nada, ou ao menos não deveria servir, e por isso é autônomo – e apaixonante.

Mas assim como o soco de um boxeador fora do ringue, a submissão do esporte ao mundo econômico é uma corrupção do princípio básico do jogo, que é o distanciamento. Jogadores de basquete não estão mais tentando alcançar seus limites dentro de um ambiente controlado e delimitado, não estão mais explorando sua criatividade dentro de certas restrições, não estão mais fazendo algo inútil e à parte do mundo da vida. Eles estão, agora, pagando o leitinho das crianças (e a mansão, e o iate, e a ilha no Pacífico) assim como o fazem todas as outras profissões do planeta que estão ligadas ao mundo “real”. Não dizemos que um carteiro está exercendo sua criatividade num ambiente controlado, até porque não há espaço para a criatividade e nem nada controlado, ele pode morrer atacado por um cachorro a qualquer momento. Jogadores, agora, competem e alcançam seus potenciais enquanto se preocupam com o salário, com o contrato, com o cabelo e com o jantar. A autonomia foi pro saco.

Por isso temos opiniões contraditórias sobre o esporte todos os dias. Queremos uma autonomia, sentimos essa autonomia, torcemos e vibramos com ela, porque é o que torna o esporte algo mágico, mas ela está completamente corrompida pela parte econômica e não fazemos a menor ideia de como lidar com isso. Vamos agir normalmente como se o seu time do coração fosse o McDonald’s? Jogadores são apenas funcionários contratados para executar uma função, devem obedecer aos seus patrões, ir ao trabalho de terno e gravata e fim de história? Vemos jogadores de basquete assim como veríamos engenheiros, bancários ou médicos trabalhando? Essa é, cada vez mais, nossa nova realidade.

No entanto, o esporte não perdeu completamente a autonomia e não dá pra encarar um time exatamente como uma empresa. Donos de equipe são exatamente isso, empresários, e tirando o Mark Cuban (que é um nerd triliardário que só queria ver o Nowitzki campeão), estão atrás de lucros. Mas se uma empresa está dando prejuízos de centenas de milhões de dólares há anos, o que se faz? Corta-se custos, funcionários, e então se nada der certo a empresa vai à falência ou é fechada. Com equipes da NBA, isso não acontece porque o esporte está fora do mundo da vida e mexe com a paixão e o fanatismo de milhões. Um dono nunca vai aceitar fechar o Celtics só porque perdeu dinheiro, e nem os torcedores permitiram uma ação dessas.

O que temos, então, é um paradoxo só possível dentro de uma anomalia, de uma bagunça conceitual bizarra. Queremos que os jogadores joguem por amor (especialmente no que tange à seleção brasileira), vemos que eles são apenas funcionários que trabalham para quem paga mais como todo o resto do planeta, empresas que dão prejuízo deveriam ser fechadas, mas não aceitamos que o time que amamos feche as portas por culpa de uma relação com o mundo “real”. Na nossa cabeça, a autonomia do esporte por vezes vence como resquício de tudo aquilo que o esporte representa, e por vezes vira farofa como símbolo do mundo econômico em que vivemos. Confuso pra burro.

Equipes da NBA (e de futebol, e de vôlei, e de handball) não são feitas para darem lucro. O esporte não é feito para gerar dinheiro. O fato de que gostamos de assistir faz com que haja espaço para cobrar por isso, o esporte começa a gerar dinheiro, empresários querem criar modos de gerar ainda mais grana, os jogadores que participam do esporte se veem no direito de receber a maior parte dessa grana, e aí o circo está montado. Só que tudo isso acontece depois do esporte, o basquete não surgiu para encher os bolsos de ninguém, pelo contrário, ele não era para servir para coisa alguma. É normal, portanto, que essas equipes tenham prejuízo, e que decisões empresariais coerentes não sejam usadas quando está em jogo algo desimportante, apaixonante e autônomo como o basquete. Carinha sabe que pagar 20 milhões pro Rashard Lewis é a coisa mais imbecil do planeta, mas vale a pena pela chance de ganhar um título de campeão. O primeiro infeliz que fizesse isso no McDonald’s tava lavando privada pro resto da vida.

Isso não muda o fato de que a NBA gera uma grana surreal com venda de ingressos, camisetas, direitos de transmissão, jogo de videogame e alguns bilhões de chineses que só sabem dizer “Yao Ming“. É importante entender que não falta dinheiro entrando na NBA, se existem prejuízos é apenas porque se gasta mais dinheiro do que se ganha. Seja com decisões idiotas (Eddy Curry?), seja com decisões passionais (Rashard Lewis pela chance de título), seja com decisões de autonomia do esporte (manter equipes vivas mesmo em cidades de mercado pequeno que não podem bancar direito um esporte desse porte), seja com decisões individuais (os donos querem receber salários enormes, o David Stern quer um salário enorme, o vice-sub-semi-diretor da liga quer um salário enorme). O que os jogadores querem é receber a maior parte da grana que a NBA recebe (justo, já que são os grandes responsáveis), mas querem também que tudo aquilo economicamente relacionado com a autonomia do esporte (as decisões idiotas, passionais, etc) não influencie aquilo que eles conquistaram fora das quadras (o estilo de vida milionário, os salários exorbitantes). Ou seja, os jogadores querem manter os benefícios da NBA ter se tornado uma empresa, querem continuar com seus contratos de milhões de dólares, mas querem também um esporte autônomo e desligado do mundo da vida em que dirigentes continuem oferecendo contratos que não fazem sentido no mundo real, funcionam apenas no mundo fictício do jogo em que ser campeão é importante.

Os donos, por sua vez, querem que a NBA seja uma empresa que lhes dá lucros como qualquer franquia de praça de alimentação, mas querem que a economia possa ter menos influência no andamento das equipes – uma autonomia que seria conquistada com um teto salarial rígido (o “hard cap”), algo que obriga os times a gastarem exatamente a mesma quantia em salários, equilibrando equipes de mercados diferentes (e disponibilizando, com isso, contratos menores para os jogadores).

Um dos principais motivos para as negociações estarem indo tão mal entre donos de equipes e jogadores é que por vezes se requisita autonomia e por vezes se requisita avanço econômico – e é impossível chegar a um acordo que aloque ambas as coisas sem que haja perdas violentas de um dos lados. Mesmo que tentem sentar numa mesa de prédio de escritórios vestindo gravatas e sapatos desconfortáveis, discutindo finanças, é impossível deixar de lado o fato de que o esporte não é e nem pode ser apenas negócio. Não é apenas uma questão de fazer os números baterem, é também questão de manter o basquete um jogo e com isso o interesse do público (e até sua viabilidade econômica).

Incapazes de levar luz às negociações na NBA, talvez essa reflexão sirva para tentar uma consistência na hora de opinarmos sobre o esporte que amamos. Se o Nenê tem que jogar na seleção brasileira mesmo que não ganhe nada com isso, mesmo que lhe tratem mal, apenas em nome do esporte, então não dá para dizer que um jogador tem que fazer o que lhe mandam porque é um funcionário e recebe um salário para isso. Na hora de argumentar, é importante entender se você está exigindo autonomia do esporte para com o mundo da vida, ou então se pensa o esporte como empresa, com razões unicamente financeiras para existir. Embora convivam juntos até mesmo nas ações de donos e jogadores, esses dois modos de lidar com o esporte são excludentes e, se combinados, criam paradoxos impossíveis de se resolver.

Eventualmente, jogadores e donos de equipe provavelmente optarão pelo esporte como empresa e chegarão a um acordo econômico, mas haverá muita resistência até lá. Jogadores ameaçam migrar para a Europa justamente para mostrar que o esporte continua independentemente dessas questões, que podem jogar em qualquer lugar, que podem fazer aquilo que amam independente de questões econômicas (e ao mesmo tempo optam por ir jogar na China só porque é o mercado que paga melhor). Ninguém está sendo burro de abrir mão de seus 20 milhões de dólares em troca de apenas 1 milhão pra jogar num lugar bizarro na Turquia, trata-se de uma demonstração de autonomia (ainda que interesses econômicos ainda lhe caminhem de mãos dadas).

Nas próximas semanas, aqui no Bola Presa, vamos analisar uma série de possibilidades que resolveriam o conflito entre donos e jogadores. Algumas tornariam o esporte completamente autônomo, sem donos ou comissários, outras resolveriam apenas a parte econômica, e até dá pra deixar todo mundo contente – mas é preciso culhão pra jogar fora todo o modelo atual e começar do zero. Além de resolver as dúvidas dos nossos leitores sobre a paralisação (vulgo “greve”, vulgo “parou essa merda”), que podem ser colocadas nesse post aqui, vamos analisar à exaustão as possibilidades de resolução do impasse, e comentar o andamento das negociações. Ou seja, o Bola Presa é autônomo: não ganhamos um centavo, não temos basquete pra comentar, mas continuamos firmes e fortes com nossos posts gigantes por aqui!

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