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Exausto, dolorido, contundido, criticado, humilhado, vindo do banco de reservas e boicotado por seus companheiros de equipe como o João Kleber quando descobriram que o Teste de Fidelidade era fajuto: resta pouco de Allen Iverson, que deixou claro que não passará por essa situação novamente. Mesmo que, para isso, tenha que se aposentar do basquete.
O Pistons afunda cada vez mais, vem de duas derrotas seguidas e agora agarra-se precariamente à sétima posição do Leste, praticamente empatado com o Chicago Bulls e com possibilidades reais de, até mesmo, ficar de fora dos playoffs. A subida de produção que deu novas esperanças ao time veio, ironicamente, quando Iverson não entrava em quadra, vítima de suas contusões. Não há quem, em Detroit, não olhe para ele com ar de acusação, como se o peido dado no elevador fosse dele. A situação é insuportável para Allen Iverson.
Como insiste em dizer, vir do banco de reservas é uma situação complicada para ele tanto física quanto psicologicamente: seu corpo não está acostumado a, completamente frio, pegar o ritmo repentinamente quando chamado à quadra, para então esfriar novamente no banco poucos minutos depois. Do ponto de vista psicológico é ainda pior, o banco de reservas representando o fim de sua carreira no estrelato, relegado a segundo plano como se fosse a Adriane Galisteu no SBT. Lembrar de tudo que fez em sua carreira enquanto assiste a um jogo completamente passivo, mero espectador, é uma situação inédita e desesperadora para Iverson, acostumado a carregar times nas costas.
Suas costas, agora, não aguentam mais o mesmo peso. Nunca, na história da humanidade, um ser humano tirou de letra uma quantidade tão exorbitante de contusões. Iverson jogou com lesões sérias em todas as partes do corpo, de dedos quebrados a torções nos joelhos, e nunca ousou reclamar. Entrar em quadra parecia curar todas as suas chagas e não havia qualquer sinal de que seu jogo estivesse prejudicado. Lembro como a mídia tirou sarro quando Iverson não entrou em quadra certa vez não por reclamar do tornozelo torcido ou da lesão no ombro, mas sim porque foi tirar o dente do siso. O homem é capaz de aturar quaisquer provações físicas, prováveis resquícios de seus tempos jogando futebol americano universitário. Agora, as costas dóem e ele senta-se, o pé coça e ele senta, qualquer coisa é motivo para ficar de lado, deixar para lá, não se meter num grupo que não quer intrusos. Allen Iverson não está velho, com um corpo que o abandona – ele apenas não se importa. Não quer jogar.
Sua ameaça, após a derrota contra o Bucks em que ele mal participou do jogo, foi aposentar-se caso não encontre uma situação adequada. Para alguns, isso significaria um time vencedor, capaz de ganhar um anel de campeão (basta perguntar para o Malone), mas para Iverson tem outro sentido.
“Eu sou um competidor. Eu amo jogar. Não há mais nada que eu goste de fazer além de jogar basquete. Eu amo jogar. Não acho que eu seja bom jogando basquete se eu não estou feliz. Não acho que muita gente seria.”
A situação adequada, o time que ele procura, é um time que o deixe feliz, não um time que lhe dê chances de título. Ele só quer ter prazer em jogar.
“Nesse ponto da minha carreira, eu só quero estar num lugar em que eu possa ser feliz. Essa é a coisa mais importante pra mim. Eu não quero não querer ir pro trabalho.”
A vida inteira, Iverson foi o gerente de uma loja de colchões. Agora, ele é apenas um funcionário, tirando xerox e servindo café, em uma gigante dos automóveis. Com Larry Brown, levou a loja de colchões a ser uma das mais lucrativas do mundo, mas agora está afundando uma empresa que ia muito bem sem ele. Não é o sucesso que parece importar, no entanto. Tudo que ele quer é voltar a ser gerente, é o que ele sabe fazer.
Já critiquei muito o mal uso de suas habilidades, o comparável a pegar um piloto de foguetes e contratá-lo para fazer aviõezinhos de papel. Ele é bom demais para ser reserva no Pistons, mas agora arrisco ir um pouco além: ele é bom demais para ser titular em um time ruim.
Ou seja, ele é bom demais para um time que fede, e bom demais para um time que chuta traseiros. Ele é tão bom que não tem lugar no esporte. Está fadado ao fracasso como o meu querido e amado Tracy McGrady.
Vejam só: Mcgrady já foi um dos melhores jogadores da NBA, cestinha da NBA por anos seguidos e capaz de carregar nas costas (sempre tão doloridas) aquele Orlando Magic que era horroroso. Gastou os melhores anos de sua carreira num time que não poderia lhe fornecer chances de título, exatamente como Allen Iverson. Quando foi para um time de verdade, no entanto, McGrady provou que não poderia render do mesmo modo. Seu estilo exige que a bola passe muito tempo em suas mãos, suas qualidades exigem um contexto muito específico, uma situação muito ideal. Se seu elenco for muito forte, T-Mac não movimentará a bola o suficiente para fazer uso dele – e caso movimente e passe menos tempo com a bola nas mãos, será menos efetivo e duramente criticado. No caso de McGrady, a situação no meu Houston Rockets não era especialmente favorável: ele nunca foi um arremessador competente com os pés parados, preferindo sempre criar o próprio arremesso, mas o time sempre se focou no pivô Yao Ming para gerar situações de arremesso para os outros companheiros, algo que T-Mac tinha certa dificuldade em aproveitar. Caso T-Mac criasse todos os arremessos o tempo inteiro, de modo a produzir tudo aquilo que todos nós sabemos que pode, Yao Ming não seria um fator decisivo e seria uma estrela desperdiçada, o resto do elenco ficaria apenas parado assistindo, e aí teríamos o Washington Wizards comendo pipoca vendo o Arenas jogar.
O estilo de jogo de Iverson e Mcgrady parece trabalhar contra eles, é como se seus talentos fossem tão específicos que não se encaixassem em lugar algum. Também não é como se não tivessem tentado: Iverson aprendeu a ser armador titular, chegou a dar quase uma dezena de assistências por jogo, sempre lutando para conciliar isso com seu talento real como pontuador. T-Mac aprendeu a encontrar seus companheiros livres, a atacar menos a cesta, a não precisar tanto do seu físico que sempre o deixava na mão, ano após ano. Os dois evoluíram, modificaram-se, aprenderam a ser mais agressivos, menos agressivos, a arremessar menos, a arremessar mais, mas nada disso jamais foi o bastante.
Sempre digo que alguns jogadores, como Kobe Bryant, nunca podem vencer: se envolve os companheiros, não assumiu a responsabilidade; se toma o jogo para si, é individualista demais. Mas para Iverson e T-Mac isso é ainda pior porque eles não conseguiram vencer mesmo, ou seja, nunca foram campeões. Os dois deixaram seus nomes na história do basquete, o Iverson em especial por ter cravado no coração dos homens uma importante lição sobre tamanho, mas o fracasso em conseguir transformar suas marcas no esporte em vitórias concretas jamais será esquecido. Há algo no modo com que jogam, na situação em que sempre se enfiaram, no que arrisco ser simplesmente “talento demais”.
O Pistons está usando “O Segredo“, fingindo que o Iverson não está lá para ver se ele desaparece de verdade. Dará certo, ele vai dar no pé e procurar outro time para a temporada que vem, mas em que situação conseguirá se encaixar? Ele quer ser a peça principal para ser feliz, ele precisa de um time ruim para desperdiçar os últimos anos de sua carreira, e não acho que nenhum time em más condições se atreva a comprometer-se com ele.
Tracy McGrady deixou para trás um Houston melhor, mais concentrado, mais competente, confiante e coletivo. Luis Scola, particularmente, é um jogador muito superior quando T-Mac não está em quadra, talvez porque ele seja um jogador coletivo por excelência – sinal de falta de talento individual, ou de excesso de inteligência, fica a critério de cada um. Fico escrevendo na minha cabeça o tempo inteiro aquele post grandioso, maravilhoso, em que anunciarei no Bola Presa que meu Houston Rockets finalmente passou da primeira fase dos playoffs – sem McGrady.
Não fico feliz com isso. Acho que será apenas o ponto final em uma carreira já muito criticada e estigmatizada. Penso a mesma coisa quando alguém chama Allen Iverson de perdedor: é triste que ele tenha alcançado tantas coisas, como jogador, como homem, como ser humano, e tudo isso vire farofa porque ele não pode se encaixar. Quando meu filho tiver um metro e meio e quiser jogar basquete, mostrarei para ele que Allen Iverson provou que era possível. Também contarei para ele sobre McGrady, seu estilo de jogo único, mostrarei minha camiseta dele.
Mas, por fim, contarei que o Sixers se deu melhor com jogadores piores, tipo o Iguodala e meia dúzia de manés mais-ou-menos. Contarei que o meu Houston finalmente passou da primeira fase com o Aaron Brooks de titular e o Von Wafer no banco. A vitória sempre se mantém na história, é que na maioria das vezes ela não é feita pelos melhores indivíduos.