Bravos com quem?

>

Queima de estoque

Terminada a Final da NBA, com Dallas Mavericks campeão, demos uma respirada por aqui. Não, o blog não acabou, não entramos em greve, não fomos raptados por alienígenas e nem passamos a fazer parte de uma gangue de anões que assaltam bancos, apesar dos boatos. Mas acompanhamos os últimos jogos da Final já meio aos trancos e barrancos, tentando assobiar e chupar cana ao mesmo tempo, então o final da temporada da NBA veio como um descanso necessário.

Agora, quase três semanas depois do título da Dallas, é oficial: temos greve na NBA. Jogadores e donos de equipes não entraram em acordo então todas as atividades relacionados à liga estão paralisadas – mais do que isso, estão proibidas, e por tempo indeterminado. Nada de trocas, contratos novos, treino, summer league, amistosos, viagens para a Europa para fazer propaganda da liga ou multas pro Gilbert Arenas no Twitter. Isso quer dizer que a NBA está congelada em carbonite, como o Han Solo no “O Império Contra-Ataca”, então teremos bastante tempo para postar por aqui longamente sobre cada um dos escolhidos no draft, as trocas que aconteceram até agora, e principalmente a greve – vamos analisar não apenas as regras, mas também a situação econômica, o capitalismo, a rotação da Terra, essas coisas, e até analisar algumas alternativas para o sistema salarial da NBA.

Podemos tratar dessas coisas com tanta calma, já que sabe-se lá quando a NBA vai voltar de novo, que vou até aproveitar para tratar um pouco da Final da NBA, agora longe do calor do momento. Até porque no calor do momento o que predominou foi só bordoada para todos os lados – contra o Heat, que amarelou; e contra o Mavs, que só ganhou “porque o Heat amarelou”. Foi melhor mesmo deixar as cabeças esfriarem no mundo ao invés de sair como um maluco lutando contra toda a internet, bloqueando oito manés no nosso Twitter por segundo, ou questionando cada um dos comentários infelizes nos sites por aí. Teria sido uma baita bobagem. Já escrevemos para o Bola Presa a tempo suficiente para entender que basquete não é tão sério assim e que perder minhas noites de sono discutindo contra odiadores na internet seria a segunda coisa mais inútil do mundo – só perdendo para aqueles botões idiotas que você precisa apertar para entrar em bancos agora; será que eles têm medo de ser assaltados por algum terrível ladrão sem dedos?

Confesso, no entanto, que mesmo sem ter tempo para postar acabei gastando mais tempo do que devia silenciosamente assistindo às reações diversas ao título do Mavs e a derrota do Heat. Blogs, comentários, Twitter, fóruns nacionais e gringos – aquele tradicional regime de masoquismo, em que se lê uma opinião mais estúpida do que a outra em sequência, sem parada, e que eu costumo chamar de “conhece a teu inimigo”. Dado o tempo necessário tanto para esfriarem as críticas quanto a minha recepção delas, talvez seja hora de voltar ao assunto. Simplesmente porque elas são muito surpreendentes e, como sempre, dedam um bocado nossa cultura e nossos tempos – algo que acreditamos firmemente aqui no Bola Presa.

Eu já estava preparado para um jorro de ódio concentrado em cima de quem perdesse quando escrevi sobre nossa cultura do ódio, sobre como achamos o ato de torcer algo natural que na verdade é construído, apenas um filtro para delimitar o que olhar, um filtro para encaixar o indivíduo em um grupo ou em uma identidade, e que esse filtro ignora as perguntas profundas e realmente importantes para se contentar com o que é mais superficial – “ele é melhor”, “ele é amarelão”, “ele é o inimigo”. Mas eu não estava nem um pouco preparado para que esse ódio recaísse tanto em cima dos perdedores quanto dos vencedores. A quantidade de horrores ditos ao Mavs – como se desse para ser campeão da NBA por acaso, “ops, escorreguei numa casca de banana e ganhei um título, hi-hi-hi, que divertido!” – me pegou completamente de surpresa e provou que o buraco é mais embaixo. Ninguém está a salvo.

Mesmo em meio à sua viagem interplanetária, o Denis fez questão de ressaltar os méritos do Mavs que levaram a equipe a ganhar um título. Às vezes parece que a vontade de desmerecer o Heat é tão grande que, para dizer que a equipe é uma merda e mesmo assim chegou a uma Final de NBA, é preciso desmerecer todo o resto – todas as outras equipes que perderam, todas as equipes fantásticas eliminadas, e até mesmo o Dallas Mavericks que, diabos, é “apenas” o campeão da budega inteira. É um dos claros exemplos de quando a vontade de rebaixar o adversário ofusca todo o resto e até o vencedor acaba indo pra casa melancólico, como se tivesse ganhado só porque todos os outros times eram uma porcaria. Por sorte, o Mavs foi lá e, com todo o dinheiro nerd do Mark Cuban (que pagou a festa em Dallas ao invés de deixar que a cidade tradicionalmente arque com os custos), fez uma festa monstruosa digna de um time fantástico que conseguiu superar uma NBA inteira – uma NBA forte, competitiva, de alto nível.

Eu entendo perfeitamente a vontade de torcer contra esse Miami Heat, do mesmo modo que se torceu tanto contra o Lakers com Malone, Shaq, Kobe e Payton, e até mesmo contra o Celtics que acabara de reunir Garnett, Pierce e Ray Allen. É a vontade de torcer contra o mais forte, contra o grande favorito, manter a esperança de que o fraco – como a maioria de nós, fracassados – ainda tem chances de superar o forte. Minha única ressalva é com o modo que essa torcida contra é feita, a ponto de acabar sobrando para o Mavs, diminuído como nenhum outro campeão da NBA na história recente. Isso porque se o Heat era tão ruim assim, tão amarelão, ou simplesmente “perdeu para si mesmo”, não há mérito que pertença ao Mavs – e aí lhes arrancamos aquilo que é mais precioso em uma vitória esportiva, que é não a conquista a qualquer custo, mas a conquista merecida, conquistada. Talvez por isso haja tanta torcida contra esse Heat, porque sentimos que uma vitória deles não seria conquistada, que o time era “uma trapaça”. Mas a derrota deles, ainda que na Final, prova que as coisas não são tão simples assim – não é trapaça justamente porque não adianta só juntar uns carinhas bons por aí.

Quando o Celtics foi campeão da NBA em 2008, Garnett, Allen e Pierce venceram o jogo coletivo do Pistons na Final do Leste. Muita gente torcia contra a apelação do trio. Mas bastou que eles vencessem o Lakers de Kobe na Final para se tornarem “a família que venceu o fominha solitário”. A mentalidade de analistas, técnicos e torcedores passou a indicar que o melhor modo para vencer seria juntar três estrelas e forrá-las com jogadores velhinhos disponíveis, aproveitando o fato de que todo mundo topa ganhar pouco para poder jogar com essas estrelas e ter chance de título. Nos dois anos seguintes, o “fominha” Kobe foi campeão da NBA ao lado de Pau Gasol, finalmente reconhecido como estrela depois de tantas críticas de amarelão. Novamente, era óbvio que para ser campeão era preciso ter mais de uma estrela no seu time e cercá-lo de jogadores secundários sólidos. LeBron, Wade e Bosh foram jogar juntos seguindo a nova lógica predominante na NBA, nada absurdo, mas repentinamente se tornaram “as estrelas fominhas” jogando contra o jogo coletivo “benéfico” dos adversários. É mais do que memória curta, é negar completamente qualquer senso histórico.

Mas a relação de ódio com o Miami Heat é – assim como acontece com o ódio por Kobe – diferente. As críticas direcionadas a eles não são de que não jogam bem, de que o plano tático está errado, de que os estilos de jogo não funcionam. As críticas são morais. Kobe e LeBron são egocêntricos, apaixonados por suas imagens, pedantes, desrespeitosos, farsantes, que absurdo dizerem por aí que são como Michael Jordan, merecem perder. As críticas nao são preferências pessoais dos torcedores, questões táticas, estilos de jogo – as pessoas estão verdadeiramente bravas. Elas acusam, ofendem, denigrem, diminuem. Muito, muito bravas. Mas com quem, afinal de contas?

Basicamente, são se suporta a ideia de que esses jogadores sejam tão anunciados e vendidos como algo que parecem não comprovar ser em quadra. É muito falatório, muita imagem, muitas comparações com Jordan, programinha pra mostrar onde o cara vai jogar, filme pra mostrar o cara treinando. É terrível, é uma overdose, é um exagero, e esses jogadores parecem acreditar em tudo que se diz deles – se acham os melhores jogadores do planeta, agem como se fossem os melhores do planeta, e quando perdem a torcida tem aquele gostinho saboroso de ver uma mentira sendo desfeita bem diante dos nossos olhos. “Eu sabia que ele não era tudo isso”. E a gente torce pra ele não ser tudo isso mesmo.

Estamos bravos com o marketing. Com a mídia. Com as campanhas publicitárias. Com imagens sendo vendida todos os dias. Estamos bravos, muito bravos, com uma cultura que cria imagens comercializáveis, que cria lendas, heróis, vilões, que trás de volta em versões em alta-definição todos os jogadores que já deram certo no passado. Bravos com essa realidade, na mídia, que tenta ser mais real do que o real.

Ninguém em sã consciência acha que LeBron não treinou o bastante, que ele e Wade se juntaram achando que iam ganhar sem ter que se esforçar. Todo mundo sabe que eles treinaram como malucos ao fim da última temporada, que o jogo dos dois ganha novas facetas a cada dia, que um dia o LeBron não teve mão esquerda, que o Wade não arremessava nenhuma bola de três pontos. Quando alguém diz que é bem feito que tenham perdido por acharem que podiam ganhar sem nenhum esforço ou treino, com certeza não acha de verdade que não houve esforço ou treino – isso seria ridículo, débil-mental. O que essa pessoa está dizendo, na verdade, é que está puto com a festa que o Heat fez ao contratar LeBron, Wade e Bosh, uma festa com fogos, música épica, luzes psicodélicas, e os jogadores prometendo oito mil títulos num discurso escrito horas antes por algum marqueteiro. Shaquille O’Neal prometeu títulos em todos os times em que jogou e só cumpriu no Heat, mas ninguém liga. Com ele não teve fogos, tecno, luzes piscantes e todos os jornais do mundo tagarelando sobre a mesma coisa. A dificuldade que o torcedor comum tem em engolir as besteiradas que os jogadores do Heat falam é como essas bobagens repercutem na mídia – como são criadas para e por ela, e tentam ser maiores do que qualquer realidade que o time tenha chances de apresentar em quadra. Nenhuma partida do Heat pode ser tão fantástica quanto o que aparece no comercial de TV e na campanha de internet. Não dá para comparar.

LeBron já mostrou que é decisivo nos playoffs. Fez um dos jogos mais espetaculares de todos os tempos, aquele em que marcou 29 dos últimos 30 pontos da equipe e levou o Cavs à vitória contra o Pistons fodão num Jogo 5. Mas isso nunca será o bastante se ele foi anunciado como o maior jogador de todos os tempos desde que tinha 16 anos de idade, se sua imagem é vendida todos os dias como sendo o melhor jogador do planeta, e se a mídia insiste em compará-lo com Michael Jordan. É por isso que eu digo, constantemente, que LeBron e Kobe não podem vencer: tudo que fizerem não será suficiente, e tudo que fizerem será criticado por gente que está de saco cheio do culto às suas imagens na era do 3D. É fato, essas imagens cultuadas são difíceis de engolir e só costumam descer pela goela dos próprios LeBron e Kobe – e mesmo assim só às vezes. O ponto é que se te dizem que você é um gênio desde os 16 anos de idade, se te dizem que você não precisa mais ser pobre, que sua mãe solteira não vai precisar mudar de emprego toda semana, e tudo porque você é fantástico e tem o poder não apenas para salvar a si mesmo, mas também sua mãe, seus amigos, sua comunidade, sua cidade, Cleveland inteiro… você acredita. É claro que acredita.

Crescemos com essa vontade enraizada de nos descobrirmos especiais. “Harry Potter” não é sucesso só porque a Emma Watson é a maior gracinha, todo mundo quer ser arrancado de sua família idiota e de sua escola imbecil e descobrir que é na verdade alguém fodão, essencial para a história da humanidade, alguém de que as profecias avisavam. Muitas das nossas lendas estão focadas na ideia do herói anunciado, e a cultura do capitalismo depende muito dessa ideia de que você pode se tornar herói do dia para a noite, basta se esforçar muito e ter um pouco de sorte. Então não adianta vir com falsa modéstia e dizer que qualquer um resistiria à chance de ser “O Escolhido” (como LeBron tatuou nas costas), o cara fodão que vai fazer história e salvar o seu povo. O capitalismo vive de vender essa imagem (“você também pode ser rico, se chegar até aqui”), as marcas vivem de vender o herói utilizando seus produtos (promessas de felicidade, de ser um pouco herói como eles se você usar um tênis novo), a mídia vive de vender esses heróis e o interesse por eles (“assista ao jogo, vai ser o melhor da história!”) , e é claro que esses supostos heróis acreditam em si mesmos – se não acreditarem não serão heróis ou, pior, serão criticados por serem “amarelões”, como assim o LeBron não quer decidir o jogo final? Não há a possibilidade do cara não comprar a imagem que tentam vender dele, dele não querer ser Michael Jordan. Estamos tão bravos com a imagem que é vendida que se o cara não for tão grande quanto a imagem que eu comprei, ele é uma farsa idiota. Mesmo que ele não tenha nada a ver, diretamente, com a imagem criada.

Há uma quantidade surreal de xingamentos direcionados, especialmente, a Kobe e LeBron em tudo quanto é site por aí, e nos comentários aqui no blog, no nosso Twitter e no nosso formspring. Nenhuma das ofensas ou acusações pessoais faz qualquer sentido porque não fazemos ideia de como essas pessoas são em suas vidas, ou de como seriam sem tamanho assédio, oportunidades, pressões, dinheiro, poder, idolatria, críticas, ofensas. É por isso que essas ofensas não são reais, são apenas uma raiva mal direcionada. A fúria é com a cultura que cria essas imagens enormes que não condizem – nem nunca poderiam condizer – com a realidade.

Nowitzki foi campeão e nunca haviam criado uma imagem dele. Não uma imagem positiva, pelo menos, só tacavam merda no alemão. Então ele vence, ganha um anel, e é o cara mais modesto do mundo, claro. Para os jogadores que, desde que nasceram, imagens foram criadas e talhadas a alturas impossíveis, nenhuma vitória poderá ser taxada de humilde, e nem mesmo de satisfatória. Todo erro, todo deslize será punido como um horror, uma discrepância inaceitável com a imagem que eu comprei e a realidade. Mesmo que LeBron e Wade estejam agindo como qualquer jovem da idade deles agiria na vida real. Mas eles não podem ser reais. Em nossa cultura, nunca ganharão essa chance.

Como funcionam as assinaturas do Bola Presa?

Como são os planos?

São dois tipos de planos MENSAIS para você assinar o Bola Presa:

R$ 14

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

R$ 20

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Como funciona o pagamento?

As assinaturas são feitas no Sparkle, da Hotmart, e todo o conteúdo fica disponível imediatamente lá mesmo na plataforma.