Contra uma maldição

 

– Eu juro tacar a bola pra cima.
– Eu juro enterrar a bola, então.

Quem acompanha a NBA há pouco tempo nem imagina que o Los Angeles Clippers seja a franquia mais amaldiçoada da liga, mas quem é velho de guerra sabe que o Clippers foi fundado em cima de um cemitério indígena e usa a expressão “que Clippers” para designar qualquer coisa que deu muito errado sem nenhum motivo aparente. Guardou a chave direitinho no bolso e ela sumiu mesmo assim? Deixou o bolo o tempo certo no forno e ele virou carvão? Puxa, que Clippers!

Basta voltarmos um pouco ao passado recente da equipe para vermos o festival de horrores. São falhas de planejamento, escolhas táticas ruins, mas tem também muito azar puro e simples: escolhas de draft que pareciam geniais e foram horríveis, contusões sérias que terminaram carreiras, times talentosos que não se entrosaram, e uma caralhada de jogadores que simplesmente fugiram da equipe assim que tiveram chance.
Michael Olowokandi, escolhido em 1998, foi sem sombra de dúvidas a pior primeira escolha de um draft na história da humanidade. Se você acha que o Kwame Brown fede, então lembre que ao menos o Kwame continua arranjando emprego na NBA enquanto o Olowokandi coça o saco em casa. Já Shaun Livingston, que foi a quarta escolha do draft de 2004, era genial mas teve o joelho desmontado como se fosse construído com peças de Lego, e tudo numa jogada completamente banal. Dá pra ver o lance no vídeo abaixo, mas primeiro tire as crianças da sala:

O próprio Blake Griffin, que é uma das sensações da NBA e tem tudo para ganhar o campeonato mundial de seres humanos, não jogou toda sua primeira temporada de NBA graças a uma lesão adquirida numa jogada fantástica antes da temporada começar. Acabou fazendo sua estreia como novato apenas um ano depois, na temporada 2010-11. Já que o Griffin era a salvação da franquia, a maldição do Clippers deu um jeito de adiá-la ao menos por um ano com a lesão que acontece no vídeo abaixo:

Ao menos o Griffin é uma salvação que deu certo, apesar do susto da lesão inicial. Outros jogadores que carregaram promessa semelhante na franquia não conseguiram se estabelecer: Darius Miles nunca conseguiu render ao ser afastado do seu amigo de infância Quentin Richardson (há até mesmo um documentário fantástico sobre a dupla, chamado “The Youngest Guns”) e depois se lesionou gravemente; Chris Kaman tinha tudo para ser o pivô mais dominante da sua geração mas nunca conseguiu consistência graças às lesões constantes;  e até o Al Thornton, que não se contundiu e teve ótima temporada de novato, acabou sendo trocado por um pacote de bolachas graças a problemas de vestiário que nunca foram completamente esclarecidos.

Em 2006, o Clippers enfim foi aos playoffs e venceu sua primeira partida de pós-temporada em 13 anos, chegando até uma semi-final de conferência histórica. Acabou perdendo aquela semi-final para o Suns num jogo 7 dramático, numa série cheia de prorrogações, e desde então foi ladeira abaixo – na temporada seguinte, o joelho do Shaun Livingston viraria farofa. Um ano após isso, seria a vez da então estrela Elton Brand perder a temporada com uma lesão gravíssima (da qual, aliás, ele nunca parece ter se recuperado).
Tirando o azar, os novatos e as contusões (que ocorrem apesar de um dos melhores centros de treinamento de toda a NBA), o Clippers sempre teve problemas para contratar ou manter seus jogadores. Todos os jogadores sem contrato ignoravam as propostas do Clippers, enquanto os jogadores da franquia pareciam apenas aguardar o fim dos seus contratos para fugir para as colinas em liberdade. Elton Brand, estrela do Clippers durante anos, foi mantido à força na equipe quando virou free agent restrito, mas fugiu para o Sixers quando seu segundo contrato terminou. Os elencos no Clippers são notoriamente formados por descontentes, jovens jogadores que sentem-se ignorados pela NBA, presos na franquia mais amaldiçoada e ignorada das últimas décadas. É uma espécie de Sibéria do basquete.

O Clippers é um excelente exemplo de como funciona a distribuição de estrelas na NBA. Apesar de estar num dos chamados “grandes mercados”, cercado por uma grande economia, ter bom público, ser economicamente viável e se situar em uma localidade em que qualquer jogador gostaria de viver, nenhuma estrela importante aceita jogar no Clippers – franquia perdedora, com poucas aparições na televisão gringa e, por isso mesmo, com pouquíssima exposição na mídia. Nos Estados Unidos, dá pra acompanhar pela televisão todos os jogos da sua equipe local, de onde você mora, mas para assistir aos jogos das equipes do resto do país depende-se das redes nacionais, como a TNT, a ABC e a ESPN, que passam poucos jogos por semana e sempre com as equipes mais badaladas do momento. Hoje em dia, o Elton Brand joga no Sixers – em uma equipe que supostamente montou-se para disputar o Leste – e é motivo de piada por não jogar bulhufas e estar num time meia-boca. Ou seja, Elton Brand gastou seus anos de ouro, em que foi um dos melhores alas de força da NBA (por vezes o melhor) e fazia 20 pontos com 10 rebotes com a facilidade com que se cutuca o nariz, num time que não tinha qualquer tipo de exposição. A gente até ouvia falar que tinha um cara fodão lá no Clippers, mas ele nunca teve o reconhecimento que merecia. Num exemplo mais recente, podemos citar o Chris Bosh, que chutava traseiros no Raptors mas ninguém nunca viu, afinal a televisão nunca passava jogos da equipe. Agora que está no Heat e não é sombra do que foi, todo mundo pode dizer com propriedade que o Bosh “nunca foi grandes merdas”. Aí está, o jogador punido por ter jogado seu melhor basquete em Toronto, e motivo suficiente para demais jogadores pensarem três vezes antes de assinar com a equipe canadense.

É normal alegar-se que jogador nenhum quer morar no Canadá, ou em Milwaukee, ou em Minessota, assim como eu não quero ir morar em Tangamandápio, mas jogadores vão topar qualquer coisa por uma franquia vencedora, com chances de título, e com ampla exposição na televisão. Ninguém quer gastar seus melhores anos na NBA sendo ignorado pela mídia ou, como foi o caso do LeBron por exemplo, tendo seus recordes desdenhados pela falta de um título no currículo. Exposição na tevê, no entanto, não precisa ter a ver necessariamente com vitórias: pode ser simplesmente uma boa história, um time que as pessoas queiram assistir, a presença de uma ou mais estrelas juntas.

Nessa temporada, por exemplo, a ESPN gringa passará 16 jogos do Heat, 15 do Bulls, 15 do Lakers, 14 do Celtics, 14 do Knicks e 12 do Mavericks. O Knicks reconstruído com Amar’e e Carmelo, mais a chegada do Tyson Chandler, é história melhor e mais vendável do que o Mavs campeão mas com elenco desfeito. Já na TNT os times com mais aparições serão Celtics e Lakers, com 10 cada, o Heat com 9, e Knicks e Mavs com 8 jogos cada um.

Mas eis que, olhando mais pra baixo nas tabelas, encontramos finalmente o Clippers: são 3 jogos na TNT, 10 jogos na ESPN e 9 jogos na NBATV, que também é uma rede nacional. Ao todo são 22 jogos na televisão, recorde absoluto da história da franquia. É porque o Clippers é uma equipe vencedora, com chances de títulos? Vale lembrar que a programação das televisões saiu antes da troca do Chris Paul. Então a resposta é não: a presença do Clippers na televisão nacional se deve ao Blake Griffin.

Depois de tantas escolhas frustradas de draft, lesões e dificuldades de sequer chegar aos playoffs, Blake Griffin passou a colocar constantemente o Clippers na TV de um modo inusitado: através das melhores jogadas do dia. Foi uma tonelada de enterradas, bagos na cara de defensores desavisados, faltas-e-cestas, e até um tipo de “melhores momentos” que nunca existira antes: as melhores enterradas que não aconteceram, aquelas em que o Griffin pula por cima de todos os defensores dando uma pirueta e acaba enterrando no aro. De repente todo mundo queria ver os jogos do Clippers graças a essas jogadas, as vitórias são o de menos.

Ainda assim, quando Billups foi liberado pelo Knicks usando a regra de anistia, deixou claro que queria ir para algum time com chances de título e ficou puto da vida de ser chamado pelo Clippers. A NBA deixou claro que pelas regras o Billups não poderia negar o chamado, mas não queria ir nem a pau. É a história eterna do Clippers, o pessoal só fica por lá se for amarrado, se for dopado, se receber uma grana absurda que não se pode negar ou se for alguma brecha legal como no caso do Billups. Mas eis que a troca por Chris Paul, que comentamos aqui, acabou rolando e o Clippers ganhou subitamente chances de título. Escassas, é verdade, o elenco não está terminado, não teve tempo de treinar junto, não teve pré-temporada de verdade, não tem identidade tática. Mas a chegada de Chris Paul consolidou algo tão importante quanto: ao receber a notícia de que o armador fora trocado para o Clippers, Blake Griffin afirmou: “vai ser a cidade do lob“, ou seja, a cidade do passe para o alto, a cidade de jogar a bola para cima para que alguém venha enterrar. Além de Griffin e suas enterradas fantásticas, DeAndre Jordan é um pivô fantasticamente atlético que, na impossibilidade intelectual de criar o próprio arremesso (em palavras menos nobres: é uma anta), ao menos consegue pular até a Lua e enterrar os passes que chegam para ele.

Por enquanto, o Clippers não pode ser considerado verdadeiramente como um time de elite no Oeste. Ainda são apenas jogadores aleatórios, reunidos um tanto ao acaso. Chris Paul e Billups estão jogando ao mesmo tempo em quadra, então não há ainda uma definição sobre quem inicia as jogadas, quem finaliza, os armadores estão muito presos no perímetro, há pouca agressividade e muitos passes para o lado, tudo normal para quem ainda tenta se acostumar com um sistema tático meio feito às pressas. Ainda há indecisão nos contra-ataques e muitas jogadas de isolação, também comuns nos ataques em que as movimentações não foram aprendidas (ou que não existem, algo que só vamos descobrir se é o caso com o tempo). Mas mesmo com tantas indefinições, falta de entrosamento evidente e dúvidas sobre quem exerce a liderança da equipe (Billups pode arremessar 20 bolas num jogo como fez, Chris Paul deve segurar a bola, ou Blake Griffin deve ser o foco do ataque?), uma coisa é certa: o Clippers está consolidado como uma equipe que todos querem assistir. As ponte-aéreas têm presença garantida em todas as partidas, tanto para Griffin quanto para DeAndre Jordan, os contra-ataques quando funcionam geram jogadas espetaculares, e a presença na televisão vai ser cada vez maior. Para a próxima temporada, com certeza os jogos mostrados na íntegra serão vários, talvez no mesmo nível de equipes como Lakers, Heat, Knicks e Mavs.

Frente a esse tipo de exposição, com tanta atenção da mídia, com certeza Chauncey Billups está repensando seu desgosto em ter sido contratado – na marra – pelo Clippers. Do mesmo modo, Chris Paul vai ter muitas dificuldades em escolher deliberadamente abandonar a equipe ao fim da temporada, quando se encerra seu contrato. O Clippers, claro, não estava nos planos de nenhum dos dois. Mas depois de uma pré-temporada arrasadora com jogadas fantásticas, e de uma estreia contra o Warriors em que o Clippers conseguiu impor seu ritmo, a atenção da mídia – e os papos de que a equipe pode ter mais vitórias do que o Lakers, algo que não acontece desde a temporada 2004-05 e só havia acontecido antes em  93 – com certeza deixou os dois recém-chegados com água na boca. A derrota para o Spurs, que veio em seguida, veio apenas para mostrar em definitivo que a equipe tem muito a arrumar, mas o potencial dessa equipe é inegável.

Como convencer jogadores como Chris Paul e Billups a ficarem numa equipe fracassada? Fazendo trocas ousadas, arriscando, ganhando espaço na mídia com jogadas de efeito, e tendo um novato capaz de atrair a atenção de todo o planeta. Se o Clippers der certo nessa temporada, mais jogadores importantes vão querer entrar nessa brincadeira. Se der errado, se não chegar nem aos playoffs, ainda assim os jogadores que já estão lá serão obrigados a encarar a atenção que receberam, e as possibilidades futuras da franquia. Esse é o tipo de reconstrução que equipes desconsideradas pelos free agents precisam planejar, porque simplesmente abrir espaço salarial – que é a estratégia que toda equipe pequena usa – não serve para nada. De que adianta poder oferecer todo o dinheiro do universo se ninguém vai topar jogar no seu time porque ele não aparece na televisão e não tem chances de título? Por sorte, o Heat abriu o espaço salarial e convenceu a ficar e trazer seus amiguinhos. Mas se Wade fosse embora, o que o Heat iria fazer com aquela grana toda? Que jogador iria topar jogar numa franquia como o Heat, apesar das gostosas nas praias de Miami?

O Clippers está no caminho certo porque seus jogadores sabem fazer pontes-aéreas. É estranho de ouvir e pouco ortodoxo, mas é a mais absoluta verdade. E continuará funcionando até que a maldição retorne, puxe o pé do Blake Griffin enquanto ele dorme, e o avião da equipe caia no oceano. São 30 equipes, 66 jogos nessa temporada, uma caralhada de viagens de avião, e se um avião tiver que cair, já sabemos qual será. Na pior das hipóteses, se ninguém morrer e nenhum avião cair, o Clippers pode chegar à beira do título e aí estaremos em 2012: o mundo acaba e vamos todos pro saco. Esse Clippers fez tudo certo, mas não ignorem a maldição. Ela está à espreita.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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