[Convidado] Identidade, passado e presente em Memphis

Murilo Basso, nosso amigo e leitor do Bola Presa, partiu numa peregrinação para San Antonio para assistir presencialmente à aposentadoria da camiseta de seu ídolo Manu Ginóbili. No processo acabou passando por outras cidades dos Estados Unidos e resolveu nos escrever sobre sua viagem, as cidades que visitou e a relação delas com os times da NBA que abrigam. Nesse primeiro texto abaixo Murilo resgata a relação de Memphis com a música, a dificuldade inicial de acolher o Grizzlies e a importância da identidade da equipe para a cidade.


Em meados do século XIX a Beale Street era um local esquecível, até que músicos, em sua maioria negros, começaram a se apresentar ali; foi o primeiro passo para que a rua se tornasse uma espécie de meca para os afro-americanos de todo o sul dos Estados Unidos. Mas foi apenas no final de 1800 que a Beale Street se tornou um centro de ebulição cultural. E logo ela estaria repleta de lojas, restaurantes e clubes.

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Era o cenário perfeito para que uma nova forma de expressão musical ganhasse vida: dos campos de algodão do centro-sul dos Estados Unidos, passando pelos ritmos africanos que foram mesclados às canções de igreja e em meio a um misto de personagens decadentes, dinheiro fácil e bebidas alcoólicas, surgiu o blues.

Foi ali que W.C Handy escreveu a primeira canção do gênero: embora originalmente um tema de campanha para Edward Hull “Boss” Crump, o “Boss Crump Blues” logo se tornou “The Memphis Blues” e ganhou os clubes da cidade. “St. Louis Blues” seria lançada três anos depois e enfim o primeiro estilo musical 100% americano estava criado: ali, em Memphis, outros nomes como Muddy Waters, Minnie McCoy e Riley “Blues Boy” King, que mais tarde seria conhecido como BB King, ascenderam.

Mas foi em 1954, em um estúdio na 706 Union, que Memphis se tornou, de fato, o centro dos EUA: se Elvis Presley foi o primeiro astro do rock e o elemento de propulsão de uma nova cultura popular, Memphis, enquanto cidade, negou a ideia de ser o berço do rock’n’roll; aqueles jovens perambulando pela Sun Records eram vistos apenas como um bando de irresponsáveis tentando romper o status quo – aquele misto de emoções desordenadas combinadas com o imediatismo urgente do rock and roll não combinava com as tradições conservadoras da cidade.

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Mesmo assim, Presley recebeu mais respeito local do que outros roqueiros da cidade; era impossível ignorar o músico mais bem sucedido da história, já que ele montara uma até então inédita grande explosão pop, alimentada pela televisão, para se tornar a primeira grande estrela de uma nova era: Elvis Presley não mudou apenas a música, ele mudou a forma como absorvemos e consumimos a cultura.


Lar improvável

Se Memphis demorou a aceitar a música como parte de sua história, a cidade também demorou a perceber o papel do Memphis Grizzlies na construção de sua identidade. E houve também enorme resistência para que a franquia entrasse em seu dia a dia: Memphis, claro, não queria arcar com os milhões de dólares para tornar o antigo Pyramid lar dos Grizzlies por três anos enquanto uma nova arena era construída. Aliás, Duncan Ragsdale, um advogado local, chegou a entrar com um processo legal afirmando que a construção do FedEx Forum seria realizada para beneficiar interesses de terceiros.

As semanas que antecederam a decisão final foram repletas de tensão: embora o então proprietário da franquia Michael Heisley falasse aos quatro ventos sobre seu interesse em deixar Vancouver, ele estava fazendo o possível para arrancar o máximo de Memphis – ele sabia que a cidade faria o que estivesse ao seu alcance para curar as feridas de inúmeras rejeições da NFL, então em diversas ocasiões as negociações simplesmente pararam. Afinal, era consenso que uma cidade fora dos grandes mercados não poderia fazer certas concessões para abrigar uma franquia da NBA, como por exemplo um acordo que responsabilizaria a cidade por todos os déficits operacionais da nova arena. Por 20 anos.

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Como a negociação parecia não caminhar, Dean Jernigan, empresário local, conseguiu reunir todos os envolvidos na mesa novamente e, mesmo que ali todos os cenários apontassem para o encerramento definitivo das negociações, os Grizzlies aceitaram o acordo: eles arcariam com as perdas operacionais em troca da hoje infame cláusula de não concorrência que deu ao Grizzlies prioridade na reserva de shows e eventos do gênero na cidade. Quase 25 anos depois, a música novamente definia o destino de Memphis.


Acredite em Memphis

Dez anos depois da realocação, você não se importa com um concerto musical. Volte aos Playoffs de 2011: foi quando Memphis percebeu que podia gritar para o mundo que estava ali. “Believe in Memphis” era um slogan tão clichê quanto desafiador, mas ele moldou uma identidade e, enquanto protagonizava umas das maiores “zebras” do basquete contemporâneo, mostrou aquilo que o Grizzlies é e sempre foi: uma franquia que não deveria estar ali, jogando um basquete que não deveria mais funcionar na NBA moderna, que se torna defasado ano após ano, com caras como Zach Randolph e Tony Allen que, bem, não deveriam ser capazes de liderar um equipe.

Ali Memphis percebeu que o Grizzlies não era apenas um time: era a cidade em quadra. E desde então, nada é fácil para o Grizzlies. É difícil vencer, mas também é, na mesma proporção, difícil perder. Cada cesta envolve exaustão, em cada arremesso é preciso certo nível de violência – na mesma medida, para defender, é preciso de alguma forma suar sangue.

Desde o início da década cada partida se resume a marcar o mínimo de pontos suficientes enquanto a defesa se transforma em um moedor. Temporada após temporada são 82 jogos em intensidade máxima – não importa se os velhos rostos não estão mais ali, ou se no final das contas a franquia não luta por mais nada além de sua identidade.

“Se você realmente quisesse criar um time de basquete que fosse uma metáfora para uma cidade, para as pessoas que ele joga, você deveria se inspirar no Memphis Grizzlies”, confidencia um torcedor, quando a vitória sobre o Oklahoma City Thunder já estava definida.

O Grizzlies parece fornecer uma perspectiva sobre o que é exatamente Memphis hoje: uma cidade que está perdendo para ela mesma, que abandona um de seus mais belos parques às margens do Rio Mississippi, uma das áreas metropolitanas mais pobres dos EUA e, claro, onde a maior parte da população não possui condições financeiras para pagar um ingresso para assistir a um jogo da NBA.

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Mesmo assim, um grupo de exilados (não há definição melhor para nomes como Joakim Noah, Justin Holiday, Bruno Caboclo & amigos) luta por dignidade enquanto equipes com muito mais “grife” visitam o FedEx Forum duas ou três vezes na semana.

“Você pode não gostar de nós, mas, bem, estaremos aqui mesmo que você não goste”.


Presente e passado

Mike Conley não estava em quadra contra o Thunder, mas é presença constante no coração de Memphis – hoje, ele é uma porta para relembrar o passado.

“Amamos Mike e o fato dele ainda estar aqui é um alento. Mas sabe quem amamos de verdade? Tony Allen”, diz meu colega de arquibancada. “Podem chamá-lo de sujo, mas o talento o manteve na liga por uma década – e, quando falamos sobre Tony, falamos sobre um artista. Assim como quando falamos sobre Elvis”, brinca.

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O passado, claro, é quase eterno em Memphis – se há lembranças do blues em cada esquina, há resquícios dos melhores dias do Grizzlies na memória de seus torcedores. E falar sobre a ausência de Marc Gasol é tocar em uma ferida que, obviamente, ainda não foi cicatrizada. É algo como perceber que, em algum momento, todos precisamos deixar nossa casa: deixar para trás o certo pelo incerto, e encarar a realidade de um mundo que não conhece nossa verdadeira identidade para começar um novo capítulo. Para os torcedores do Grizzlies, essa é a história de Gasol: o menino que veio a Memphis, fez da cidade sua prioridade, passou onze temporadas se confundindo entre o azul do uniforme e da Beale Street, e que agora está em busca de um recomeço.

Quando Zach Randolph e Tony Allen partiram, Memphis esperava que Marc se tornasse algo que ele nunca poderia ser. Gasol, porém, acreditou que ser aquilo que sempre foi seria suficiente: Memphis. Algúem que lutasse por cada posse e liderasse a franquia de uma maneira exclusivamente sua. “Ele era imperfeito e teimoso. Mas é, afinal, o que nós somos como cidade. É fácil compreender: não é mais sobre ver suas e nossas imperfeições, é sobre encontrar beleza em nossas falhas”, encerra a sabedoria de arquibancada.

Contra o Thunder, vencer ou perder não faria diferença para o futuro do Grizzlies. Mas Memphis é uma cidade em que uma vitória ou uma derrota pode definir o quão divertido será passar na Beale Street após deixar o FedEx Forum.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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