>É marmelada

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Já vi o LeBron cobrar tantos lances livres que o meu cérebro até derreteu
Volta e meia, lá na nova casa do “Both Teams Played Hard” (onde respondemos mais de 1.150 perguntas em menos de um mês), aparece alguém reclamando que basta assoprar o LeBron, ou o Kobe, para que seja marcada uma falta. Parece ser uma boa hora, portanto, para comentar a arbitragem da NBA e dar uma olhada nas acusações que um ex-árbitro, o Tim Donaghy, andou tacando em cima da liga.
Para quem não lembra, Donaghy deixou de ser juiz da NBA em 2007 para ir ver o sol nascer quadrado. Foi preso após confirmações de que havia influenciado os resultados de alguns jogos para favorecer apostas e ganhar uma baita grana. Depois de sair do xilindró, tentou lançar um livro sobre os bastidores da arbitragem na NBA, mas o livro sofreu processos, foi cancelado muitas vezes e só recentemente encontrou uma editora disposta a publicá-lo. O livro se chama “Personal Foul”, dá pra comprar pela internet, mas foi bastante ignorado pela mídia esportiva. Parece que todo mundo resolveu ignorar qualquer coisa que o Donaghy diz porque ele é um safado e pode estar mentindo apenas para sujar a imagem da NBA assim como acabou sujando a sua própria. Do tipo “vou pra merda mas te puxo junto”.
Muitas coisas que ele afirma em seu livro podem ser exageradas ou simplesmente mentirosas, mas algumas não apenas são interessantes como também mostram-se essenciais para compreender como árbitros são seres humanos dotados de emoções e opiniões. Mais do que tornar óbvio uma trapaça por parte da arbitragem, vejo algumas acusações do Donaghy como simples constatações de que juízes são mamíferos bípedes dotados de polegar opositor, com vidas que vão além das quadras e que, portanto, podem errar simplesmente porque dois seres humanos não podem, jamais, olhar para um mesmo evento e ver nele as mesmas coisas. Separei então alguns trechos do livro e traduzi livremente para podermos comentar a respeito:
“Allen Iverson nos dá um bom exemplo de um jogador que gera fortes reações, tanto positivas quanto negativas, dentro do grupo de árbitros da NBA. Por exemplo, o juiz veterano Steve Javie odiava Allen Iverson e detestava lhe marcar algo favorável. Se Javie estivesse na quadra quando Iverson estivesse jogando, eu iria sempre apostar no outro time para vencer ou ao menos ter uma chance disso. No importava quantas vezes Iverson fosse parar no chão, ele raramente veria a linha de lances livres. Por outro lado, o árbitro Joe Crawford tinha um neto que idolatrava Iverson. Uma vez vi Crawford trazer o garoto da arquibancada para dentro da quadra durante o aquecimento para conhecer a grande estrela. Iverson e o neto do Crawford estavam lá, se cumprimentando, sorrindo, falando sobre todos os tipos de coisas. Se Joe Crawford estivesse na quadra, eu tinha certeza de que o time de Iverson ganharia ou teria ao menos uma chance disso.”

Pode parecer horrível, mas é completamente natural. Se eu fosse apitar um jogo, por mais imparcial que eu tentasse ser, seria incapaz de não marcar quinhentas faltas no Bruce Bowen imediatamente, porque sei que o cara é sujo. Seres humanos não são imparciais, suas opiniões, gostos, visões de mundo, sentimentos e interesses guiam aquilo que é visto e aquilo que passa despercebido. Enquanto um sujeito olha a Alinne Moraes e vê apenas um par de seios, o outro pode olhar e notar apenas os brincos, depende da preferência sexual de cada um. Uma falta nunca é óbvia, ela depende de interpretação e, portanto, depende de como um juiz se sente naquele momento. Donaghy descreve como alguns juízes gostam de alguns técnicos e odeiam outros, assim como qualquer um de nós gosta de alguns colegas de trabalho e odeia o gordo de bigode que fica fazendo trocadilhos quando você tenta se concentrar procurando pornografia no escritório. Por mais que tentemos tratar todas as pessoas da mesma maneira, é impossível não deixar que nosso afeto guie, mesmo que inconscientemente, o modo com que lidamos com o mundo.
O papel da NBA é guiar um pouco o olhar dos árbitros para aquilo que julgam ser o mais importante, o mais necessário, mas não podem formar o olhar por completo, do zero, porque o ser humano que apita o jogo já está lá antes da NBA chegar. No entanto, é o modo que a NBA guia o olhar da arbitragem que merece atenção:

Raja Bell, antes parte do Phoenix Suns e agora membro do Charlotte Bobcats (…) foi um especialista em defesa durante toda sua carreira (…), tendo uma reputação de ser um “defensor de estrelas”. (…) Kobe Bryant muitas vezes se viu frustrado pela tenacidade de Bell na defesa. Você deve pensar que a NBA amaria um cara que defende tão bem assim, mas pense de novo! Defensores de estrelas estragam a exibição dos jogadores importantes. Fãs não pagam ingressos caros para ver jogadores como Raja Bell – eles pagam para ver superestrelas como Kobe Bryant marcar 40 pontos.

Se um jogador de peso como Kobe colide com alguém como Raja Bell, o apito vai quase sempre soar a favor de Kobe e contra Bell. Como parte de nosso treinamento constante e da preparação para os jogos, árbitros da NBA regularmente recebem vídeos com trechos de jogos enviados pelo escritório da liga. Durante anos, revi muitas horas de vídeos envolvendo Raja Bell. As gravações que analisei geralmente mostravam faltas sendo marcadas contra Bell, raramente a favor dele. A mensagem era sutil mas clara – apite faltas contra o defensor de estrelas porque ele está prejudicando o jogo.”
É bem óbvio que a NBA quer que as grandes estrelas sejam um sucesso absoluto entre os fãs. As estratégias do David Stern com relação à arbitragem para aumentar o placar dos jogos e favorecer as estrelas são conhecidas: com o passar dos anos, mais faltas são marcadas, menos contato com as mãos é permitido e mais lances livres são cobrados. Mas o que não sabemos é que, sutilmente, a NBA está mesmo treinando árbitros para que os jogadores de ataque – especialmente as grandes estrelas – passem mais tempo na linha de lances livres. Não se trata de algo específico para o Kobe, ou para o LeBron, mas sim algo geral em toda a liga para proteger as estrelas. Kevin Martin cobra milhares de lances livres e é tão famoso quanto o padeiro aqui do lado de casa, o que importa é que ele é um jogador puramente ofensivo e por muito tempo representou todo o ataque do Kings. A NBA guia o olhar dos árbitros a defender as estrelas, privilegiar o ataque e marcar muitas faltas, mas os juízes são humanos e acabam seguindo essa instrução dentro de seus próprios critérios e opiniões. Com alguns, Kobe cobrará mais lances livres do que com outros.
Donaghy também aponta, horrorizado, como juízes inventam marcações para compensar cagadas. Todos nós sabemos que os árbitros estão sujeitos a cometer erros e que deve ser uma merda colocar a cabeça no travesseiro depois pensando que você prejudicou a temporada de alguém com um erro seu – isso em qualquer esporte, emprego ou vida familiar. Nada me parece mais óbvio do que juízes tentando arrumar as besteiras que acabaram de apitar, ou se borrando de medo de apitar alguma coisa muito errada na frente de uma torcida furiosa ou de um técnico babando sangue. Temos que lembrar que árbitros trabalham na frente de todo mundo e suas marcações são avaliadas o tempo inteiro por trocentas câmeras – tente fazer isso no seu trabalho e com certeza não teremos cutucadas de nariz, Orkut sendo usado no escritório, cochilos tirados na privada do banheiro, e certamente sobrará apenas um pânico enorme de fazer alguma burrice.

“Se o Kobe Bryant tem duas faltas no primeiro ou segundo quarto e vai pro banco, um árbitro vai dizer para o outro: Kobe tem duas faltas. Vamos ter certeza de que, se marcarmos uma falta dele, seja uma falta bem óbvia, porque senão ele vai voltar para o banco. Se ele estiver em uma jogada em que marcarmos uma falta, dê a folta para outro jogador”.
Mandar um mané para o banco talvez ninguém perceba, se for alguém como o Darko nem a mãe dele vai notar que ele não está na quadra. Mas mandar o Kobe pro banco será algo recebido com críticas, reclamações, vaias, punições, a não ser que sejam faltas incontestáveis. É por isso que um juiz vai preferir mandar o Darko para o banco do que o Kobe, simplesmente porque o Kobe interfere mais no andamento da partida e, portanto, uma cagada com relação a ele tem mais repercussão. Some a isso o fato de que a NBA privilegia os jogadores de ataque quando ocorre contatos e colisões e temos a junção perfeita: um ser humano com medo de errar, opiniões próprias sobre os jogadores e um olhar conduzido a proteger a estrela no ataque. Essa é a receita para que LeBron, Wade e Kobe tenham cobrado lances livres suficientes para queimar suas imagens em nossas córneas.

“As Finais da Conferência Oeste de 2002 entre o Los Angeles Lakers e o Sacramento Kings mostram um terrível exemplo de manipulação de jogos e séries do modo mais feio possível. Enquanto os times se preparavam para o Jogo 6 no Staples Center, Sacramento liderava a série em 3-2. Os árbitros designados para apitar o Jogo 6 eram Dick Bavetta, Bob Denelay e Ted Bernhardt (…).

Na reunião antes do Jogo 6, o escritório da liga nos avisou que algumas marcações – que teriam beneficiado o Lakers – não estavam sendo apitadas pelos árbitros. (…) Depois de receber a mensagem, Bavetta falou abertamente sobre o fato de que a liga queria um Jogo 7. “Se dermos preferência nas marcações para o time que está perdendo a série, ninguém vai reclamar. A série vai estar empatada em três jogos para cada, e o melhor time poderá ganhar o Jogo 7″, Bavetta afirmou. Como a história nos mostra, Sacramento perdeu o Jogo 6 numa virada eletrizante que viu o Lakers repetidamente ser mandado para a linha de lances livres pelos árbitros. Para os outros árbitros da NBA assistindo ao jogo na televisão, foi uma performance vergonhosa do Bavetta e seu grupo, um dos jogos mais mal apitados de todos os tempos.”
Onde Donaghy vê uma conspiração da NBA para favorecer o time com mais torcida e ganhar mais dinheiro com um jogo 7, só consigo ver a NBA cometendo um erro para tentar concertar outro. O Lakers havia sido levemente prejudicado e os engravatados tentaram compensar isso mudando a arbitragem da partida seguinte para que os fãs não pudessem reclamar. Mas é claro que com a pressão por parte da NBA, tanta gente assistindo e o medo de errar, as recomendações simples acabaram virando um festival de péssimas marcações. Só no quarto período, o Lakers cobrou 18 lances livres a mais do que o Sacramento Kings.
Há muito de “teoria da conspiração” no livro de Donaghy, mas aquilo que podemos apreender com segurança é que os árbitros erram o tempo inteiro e tentam concertar imediatamente, nem que para isso tenham que inventar faltas. Mas por medo de interferir ainda mais no jogo, não inventarão faltas em cima das grandes estrelas. Enquanto isso, são instruídos para permitir que os ataques da NBA fluam e as estrelas pontuem, sem que um ou outro time seja especificamente favorecido. Então, da próxima vez que o LeBron ou o Kobe cobrar quarenta lances livres e alguém te disser que estão roubando, que o Spurs é sempre favorecido, que o Lakers é sempre prejudicado ou alguma outra besteira desse tipo, apenas lembre que seres humanos se borrando de medo estão apitando esses jogos – com a NBA cochichando em seus ouvidos para que os placares possam continuar inflados para que os fãs não acabem pegando no sono em casa.
A possibilidade de rever jogadas nos minutos decisivos por várias câmeras foi um passo importante para tentar diminuir o medo de marcações que influenciem todo o andamento de uma partida, ou de uma série de playoff, ou de uma temporada. Mas o tipo de olhar que se coloca na NBA não vai ser alterado pelas câmeras: hoje em dia, busca-se o espetáculo dos pontos, os ataques bonitos, e é com esse olhar que os torcedores vibram, os engravatados instruem e os árbitros apitam. Não há certo ou errado nas marcações, é apenas o filtro pelos quais os olhares da nossa época passam antes de chegar no objeto. Antigamente, o olhar era voltado para o combate dentro do garrafão, o jogo físico, a pancadaria. Cada época exige sua abordagem, tem um público diferente e pede um novo modo de arbitragem. Tem muita gente por aí que gosta de ver é defesa, e o Spurs provou que pode construir uma dinastia defendendo bem pra burro, mas isso não traz novos fãs para o esporte e nem vira vídeo popular no YouTube. Pode ser um saco ver o LeBron cobrar 40 lances livres, mas isso não é ladroagem, não é um horror deturpado para os amantes dos tempos áures do passado da NBA, é apenas diferente. Um olhar diferente sobre o esporte, algo que sempre continuará acontecendo, de tempos em tempos, enquanto os humanos continuarem torcendo, jogando e apitando partidas.

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