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Já escrevi minha despedida ao Yao Ming faz tempo, mais de um ano atrás. Na época, a lesão no tornozelo adquirida na série de playoff contra o Lakers já havia se mostrado mais problemática do que se esperava, tudo indicava que ele perderia toda uma temporada da NBA e que, quando voltasse, teria minutos limitados em quadra. Era o decreto de que sua carreira não guardava mais surpresas, e lhe restava apenas um papel secundário no mundo do basquete. Sua função de unir o mercado americano e o chinês, derrubar fronteiras culturais entre os dois países e voltar os olhos do mundo para a NBA numa época em que o interesse do público diminuia mais e mais já estava completa. Yao Ming parecia se despedir aos poucos das quadras deixando como legado uma NBA que lucra horrores com consumidores chineses, e uma China que vê o resultado de um longo processo de reconstrução de sua própria imagem. Seu lugar na história independe, portanto, de seu rendimento nas quadras a partir de agora. Basta aquilo que ele apresentou no pouco tempo em que esteve saudável o bastante para competir em alto nível. Mas é impossível não ficar triste com sua aposentadoria. Que se dane a história, seu papel na cultura chinesa, seu legado para o mercado, a camiseta dele que eu comprei aqui no Brasil. O que realmente importa é outra coisa: o Yao jogou basquete a vida inteira, ama o basquete, e é o que ele sabe fazer de melhor. Nunca é legal, não importa qual tenha sido seu papel na história, ser obrigado a parar de fazer aquilo que você ama.
É por isso que recebi com alegria os relatos de que sua recuperação havia sido fantástica. Ele voltou a treinar novamente, recebeu um lugar garantido na equipe para essa temporada e não sentia mais nenhum rastro da lesão. Era possível imaginar que o Yao seria uma versão bizarra do Ilgauskas, que também sofreu lesões similares e que nunca mais foi estrela em quadra, se movimenta como se estivesse correndo dentro de uma piscina, mas consegue ajudar e muito qualquer equipe em que estiver com seus arremessos. Mas quanto nos aproximamos do começo da temporada, surgiu a notícia de que os minutos de Yao Ming seriam limitados a 24 por partida, no máximo. Não porque ele estivesse fora de ritmo, preocupado com a lesão ou cansado dos trabalhos nas férias, mas sim porque finalmente os médicos de Houston foram capazes de enxergar a verdade: um ser humano não deveria correr de um lado para o outro por 82 partidas inteiras por temporada tendo 2,29m de altura. Nenhuma estrutura óssea foi concebida para essas proporções.
É claro que tentamos esconder essa verdade. Queremos que os jogadores corram, se esforcem, joguem com garra e potência, alcancem um aro colocado lá no alto, e nos entretenham enquanto fazem isso por 82 vezes em um ano, fora os playoffs. Poucos corpos podem suportar esse tipo de coisa, independente de sua altura. No caso de Yao, isso é ainda mais terrível. Rapidamente os 24 minutos por partida mostraram que não seriam suficientes para salvar sua carreira e a lesão combatida por mais de um ano voltou novamente. Essa é, então, uma despedida final – e eu não vou ter nenhuma vergonha de ficar brega nela, combinado?
Com Yao jogando minutos limitados, meu Houston Rockets não iria muito longe na NBA, provavelmente chegaria aos playoffs mas não teria reais chances de título. Yao sabia disso e reclamava constantemente da limitação, queria ficar mais em quadra, sabia que podia render mais se ficasse mais tempo em jogo – e o time, como já comentei aqui, pararia de sofrer com uma terrível falta de padrão de jogo. Pelo modo como estava jogando, realmente poderia levar o time nas costas se tivesse mais oportunidades. Mas seu fisico não permitiria e sabotou novamente sua temporada na primeira oportunidade. Yao não queria ser o Ilgauskas, queria quebrar o limite de minutos, não queria ficar mofando no banco. Como ele será capaz de lidar, então, com uma aposentadoria inevitável?
“Eu não morri”, foi sua resposta. “Nesse momento estou bebendo uma cerveja e comendo frango frito. O que vocês estava esperando, um funeral?”
Seu contrato termina nessa temporada e nenhuma equipe lhe dará milhões apenas para frequentar o departamento médico. Mesmo que ele ainda sonhasse com mais minutos, que ele quisesse mais oportunidades, sua aposentadoria será praticamente forçada. No entanto, não há nenhum funeral. Yao já havia dito que o mais importante é que ele pudesse levar uma vida saudável fora das quadras, brincar com sua filha, sair com sua esposa. Sim, ele tem uma filha. É claro que quando se sente saudável a história é outra, ele quer entrar em quadra e produzir mais e mais, mas não lhe falta a consciência de que o basquete está em segundo plano frente à saúde necessária para seguir uma vida normal. Yao agora é um homem casado, com um filhinha que não tem nem 1 aninho ainda, e construiu uma vida fora das quadras. É triste que ele não possa jogar basquete, ele se esforçará para voltar, mas durante todos esses anos de carreira ele construiu uma vida adulta na qual pode se escorar.
O Houston Rockets não é bobo nem nada. Sabe que Yao tem uma das personalidades mais cativantes da NBA nas últimas décadas e conhece bem os lados positivos de ser bem visto pelo mercado chinês (que compra qualquer coisa com a marca do Rockets, até tênis do Shane Battier ou do cocô do Rafer Alston), então já avisou que manterá Yao por perto. Ele pode até ter seu contrato renovado por uma ninharia só pra estar no banco, mas deve mesmo é virar assistente técnico, auxiliar, engravatado, burocrata, garoto da água, qualquer coisa que exista ao redor do basquete. A vida continua, e Yao teve a sorte de ter sido capaz de construir uma vida por entre as frestas que a NBA permite a seus funcionários que nunca descansam.
Não podemos dizer o mesmo de todos os jogadores, no entanto. Greg Oden, por exemplo, sofre com lesões desde seu primeiro minuto na NBA e não teve tempo de construir coisa nenhuma. Assim como Blake Griffin, Oden não jogou uma única partida sequer em sua primeira temporada, então estreiou como novato apenas em seu segundo ano de NBA. O Blake Griffin voltou voando, pulando até a Lua para dar uma passeada, mas o Oden voltou com muitas dificuldades. Primeiro pelo físico, com o joelho que ainda incomodava. E depois pela sua personalidade, tão insegura dentro e fora das quadras. Ainda no hospital depois de sua primeira cirurgia no joelho, Greg Oden pediu desculpas em prantos para o dono do Blazers, prometendo que ele não se arrependeria de tê-lo draftado. Oden tem medo de não conseguir ser aquilo que esperavam dele, tem medo de não levar ao campeonato um time que só precisava dele para ter chances reais de título. Admitiu que as críticas lhe comiam o cérebro, e que as reações da torcida de Portland lhe tiravam completamente a cabeça do jogo. Quando começou a pegar confiança devagarinho, se contundiu de novo. E de novo. Esperava voltar às quadras nessa temporada mas constantemente viu as previsões sendo adiadas, até que teve que fazer nova cirurgia e perderá toda essa temporada. Não será, como no caso do Yao, uma impossibilidade de sua estrutura física? Mas Oden tenta ao máximo escapar dessa teoria:
“Me perguntam bastante: você acha que seu corpo simplesmente não foi feito pra isso, ou você é só azarado? Mas tem que ser que eu sou só azarado.”
Greg Oden se agarra como pode ao azar, e fico feliz que seja assim. Afinal, nos últimos anos sua tendência foi sentir-se culpado, como se ele tivesse algum controle sobre as lesões que sofre. As pessoas criticaram tanto o coitado por não conseguir ficar saudável que ele começou a acreditar que era um merda e responsável pelo que acontecia com ele. Procurou uma série de especialistas para saber se fazia algo errado, se seu corpo era mal formado, se havia alguma questão óssea. No final, o único especialista que o ajudou foi um psicólogo, alguém para lhe explicar que um garoto de sua idade não deveria lidar com esse tipo de culpa ou pressão. Agora ele acha apenas que é azarado e vai continuar se reabilitando até que seu corpo desista de ficar lhe puxando o tapete. Mas a pergunta é: e se o corpo dele continuar se desintegrando?
Greg Oden tem apenas 22 anos. Não tem uma vida formada e nem fez nada relevante na NBA. Não receberá ofertas para cargos técnicos ou executivos, e nem tem um povo que lhe apoia incondicionalmente. Não tem muitos amigos, está sempre isolado dos seus companheiros de equipe porque treina em separado, e não tem nada no que se segurar caso não possa mais jogar basquete. Enquanto isso, o Blazers simplesmente se esfarela embaixo dos seus pés, porque o time reuniu talento demais, jovem demais, e a falta de um grande pivô podou as chances reais da equipe nos playoffs antes que os egos se chocassem. Agora, os jogadores do Blazers querem mais dinheiro, mais minutos, mais arremessos, mais a bola nas mãos, e parece que a chance de ganhar um anel com esse elenco se perdeu nas lesões do Greg Oden. O grupo virou um barril de pólvora e o Oden continua lá se sentindo o pior dos mortais, o homem em que se colocou todas as fichas e não conseguiu sequer entrar em quadra. É tipo o Kwame Brown, mas ao invés de feder, foi o corpo que lhe deixou na mão – o que pode ser ainda mais frustrante.
Se já é injusto o tipo de ódio e agressividade que o Kwame recebe por ser ruim, ignorando todas as suas questões psicológicas e as dificuldades que passou na vida, o tipo de coisa que se diz sobre jogadores que estão constantemente lesionados é mais injusta ainda. Como se o Oden, ou o Yao, ou qualquer um, preferissem andar de muleta do que estar chutando traseiros nas quadras. Eu sei que, nos minutos que teve, o Greg Oden não era nenhum gênio e cometia uma falta toda vez que tentava coçar o nariz, mas não temos sequer como imaginar como ele seria se tivesse um pouco de tranquilidade, padrão de jogo e consistência de minutos. Talvez fedesse, talvez fosse uma estrela, sei lá. As exigências físicas da NBA não permitirão que possamos ter um julgamento sobre o pobre do Greg Oden.
Só sei que a NBA seria mais divertida com Yao Ming e Greg Oden. Finalmente vemos a retomada do jogo de garrafão na NBA, com uma nova e habilidosa geração de pivôs chutando traseiros todas as noites, mas Oden e Yao apenas acrescentariam a esse grupo. As lesões não apenas retiram das quadras jogadores divertidíssimos de acompanhar, elas também limitam jogadores que continuam competindo. Estrelas jovens como Brandon Roy e Tyreke Evans já estão caindo aos pedaços, e já não consigo lembrar qual foi a última vez que Kobe Bryant entrou em quadra completamente saudável. Mesmo os que continuam atuando em alto nível estão baleados, como o Kobe e seu dedo que daqui a pouco vai desistir dele e transformar o Kobe no Lula. Eu, como fã, estou disposto a diminuir o número de jogos de uma temporada para poder ver mais jogadores capazes de jogar com todas as suas forças, mais gente saudável no ápice de sua forma física, e mais jogadores que de outra forma abandonarão as quadras. O espetáculo agradeceria o menor número de jogos em uma temporada ao ver Yao Ming e Oden se enfrentando, e um Kobe saudável marcando 81 pontos numa partida. E, se deixarmos o espetáculo de lado e notarmos que os jogadores são pessoas, gente comum com dores e medos e vidas dedicadas a um esporte que lhes toma todo o tempo, a redução do tamanho da temporada é ainda mais urgente.
Já levantamos aqui a questão de um novo modo de estrutura salarial para a NBA, em que o jogador seria pago por minutos jogados e que leva os técnicos a colocarem sempre seus melhores em quadra, independente de quem sejam, e cada jogador receberia por sua importância na equipe. O Denis acabou de levantar a questão sobre a diminuição do número de times na Liga, o que aumentaria a qualidade das equipes restantes. Lavantemos também, já que estamos nessa utopia inofensiva, uma temporada de NBA em que todos os times se enfrentassem apenas duas vezes, em regime de ida e volta. Seriam 58 partidas por temporada, com mais tempo para descanso e sem as temíveis partidas em dias seguidos que o Denis já apresentou com detalhes. Às vezes, é preciso repensar toda uma estrutura que parece funcionar porque algumas coisas dentro dela não funcionam. Temos jogos demais, não há como questionar esse verdade.
A falta de Yao Ming me enche de tristeza, e nem quero discutir suas qualidades técnicas com os odiadores por aí. Só acho importante direcionar o ódio por esses jogadores constantemente lesionados para o lugar certo. Greg Oden diz que as pessoas lhe olham com raiva e perguntam, indignadas, se ele está lesionado “outra vez”. Sim, ele está, e não pode controlar. Essa agressividade idiota deveria se voltar para o exagero no calendário do esporte que amamos, e que o torna cada vez mais e mais desfalcado, diluído, porque insistimos em colocar cada vez mais água no feijão.