Interpretando um urso

Depois das primeiras derrotas do Sixers na temporada passada, ficou óbvio que ninguém – nem mesmo o próprio time – esperava que eles vencessem. Derrotas, que são uma coisa perfeitamente normal dentro de qualquer prática esportiva e que acontecem com qualquer equipe por melhor que ela seja, se tornaram para o Sixers muito mais do que meros acidentes de percurso – viraram a própria identidade do time. Perder se tornou uma marca, uma característica fundamental, um traço identitário. Ficou evidente na primeira metade da última temporada que ninguém no elenco sequer julgava que vencer fosse uma possibilidade válida.

Todos nós que já passamos por uma vida escolar sabemos que a historinha que contamos ao nosso respeito determina em grande medida aquilo que somos dentro de um ambiente social restrito. Isso é particularmente verdadeiro em escolas, já que os alunos são crianças ou adolescentes com pouca experiência de vida, poucas vivências significativas fora do ambiente escolar, e fica muito fácil acabar acreditando que a escola é todo o mundo que existe. Quando nesse mundo se espera que você seja engraçado, é muito difícil acordar de manhã e não tentar ser engraçado. O mesmo vale para a alcunha de preguiçoso, de inteligente, de burro, de simpático ou qualquer outra que lhe seja imposta. Vejo cotidianamente na sala de aula alunos muito novos, já munidos de uma história que os chama de inteligentes, tentarem desesperadamente responder a perguntas e resolver problemas que eles sequer possuem as ferramentas para lidar. Mas é que na narrativa em que eles habitam é necessário tentar, responder, resolver, se desafiar – e isso acaba se tornando uma profecia auto-realizável. Por tentarem tanto, por perguntarem tanto, por ousarem responder até às perguntas mais complexas, naturalmente entram em contato com o conhecimento e se tornam “inteligentes” naquele contexto. Enquanto isso, alunos taxados de “burros” interpretam esse papel, jamais ousam tentar uma resposta, nunca se arriscam frente a um desafio, não fazem perguntas porque já imaginam que não entenderiam a explicação. É menos sobre o que está de fato presente no mundo e muito mais sobre a história que contamos em cima disso, sobre o significado com o qual recobrimos a realidade, e a partir daí agimos de acordo e colhemos os resultados. Ambientes sociais viram muito rapidamente um jogo de interpretação de papéis em que a expectativa dos seus membros determina a caracterização dos personagens. Arrancar alunos para fora desses papéis pré-fabricados costuma ser uma experiência violenta porque é difícil convencê-los de que se trata apenas de uma narrativa. Para nós, humanos, a narrativa é a própria verdade.

É por isso que costumo afirmar a importância na NBA de times escolherem para si mesmos uma identidade. Mesmo com jogadores de diferentes personalidades, com diferentes experiências e múltiplas histórias, é importante inventar uma narrativa para o time inteiro, uma historinha capaz de ligar os eventos aleatórios em um todo coerente, capaz de criar sentido e, portanto, motivação para os envolvidos. Essas narrativas criam realidades que são maiores do que nós mesmos e mudam completamente o modo como vemos a nós mesmos e aos outros. Se a história do Spurs é de uma franquia vencedora e de jogo coletivo, mesmo quando isso não está acontecendo – mesmo quando Kawhi Leonard está fazendo jogadas inteiramente individuais, quando LaMarcus Aldridge está forçando arremessos aleatórios por cima dos seus marcadores, ou quando o time está perdendo – nós tentamos enxergar nesses atos isolados um basquete coletivo e uma vitória iminente, tentamos encontrar nas frestas uma maneira de encaixar a realidade na história que nos foi dada. Quando isso chega nos jogadores, uma certa maneira de jogar se consolida e surge uma postura específica frente ao jogo, às derrotas e às vitórias.

Poucos times tornam esse fenômeno tão evidente quanto o Memphis Grizzlies. Sua narrativa é de um time “moedor”, auto-entitulado “Grindhouse”, em que jogadores desajustados ou mal recebidos pela liga podem fazer parte de uma grande família de açougueiros que compensará qualquer falta de talento eventual com muita garra, defesa, jogo físico e uma total e irrestrita ausência de NOÇÃO DE PERIGO. O time joga contra o Sixers ou contra o Warriors da mesma maneira, acreditam INSANAMENTE que podem ganhar de qualquer um na base da MOEÇÃO DE CARNE, e todas as derrotas são recebidas como mais um motivo para eles MOEREM MAIS CARNE na partida seguinte. É um time bizarro, com um basquete antiquado e uma narrativa completamente insana – mas afinal de contas, qual narrativa não é em alguma medida insana, já que nenhuma delas se encaixa perfeitamente na realidade?

Quando o Grizzlies anunciou que estaria abandonando o velho modelo tático e adotando um basquete mais “contemporâneo”, tememos no Bola Presa pelo fim dessa historinha, pelo fim do Grizzlies enquanto PERSONAGEM. Com um monte de times da NBA que não possuem identidade, que jogam um basquete padronizado e não produzem qualquer história interessante, o Grizzlies – mesmo não tendo reais chances de título – se tornou uma narrativa deliciosa de se acompanhar, tornando épicas partidas que de outra maneira seriam completamente esquecíveis. Ver isso ser deixado pra trás seria o fim desse personagem e, portanto, o fim do Grizzlies como o conhecemos. O novo técnico, David Fizdale, chegou dizendo que o time focaria em bolas de três pontos e basquete de transição, o oposto de tudo que vimos o Grizzlies fazer nos últimos anos. Tememos pelo pior.

Até que, ainda na pré-temporada, Fizdale interrompeu um treino aos berros porque os jogadores estavam diminuindo a intensidade sob a desculpa de que o horário do treino estava acabando. Nas semanas seguintes, nenhuma palavra foi dita nos vestiários sobre esquemas táticos: o novo técnico limitou-se a explicar o que era ou não era permitido caso eles quisessem criar uma cultura vencedora, ter atitude de campeões e disputar um título. Com a prancheta de lado, David Fizdale resolveu simplesmente contar historinha, lapidando a narrativa que já estava lá quando ele chegou. Contou para seus jogadores que derrotas não seriam toleradas em nenhuma hipótese, que todos os jogos eram passíveis de serem vencidos, que eles iriam moer todo mundo pelo caminho – e chutar umas bolas de três pontos no processo porque ISSO LHES DARIA O CANECO. Comprando essa narrativa, o Grizzlies é um time medíocre – mas que AGE como se fosse o Heat de LeBron, Wade e Bosh.

Fizdale foi o assistente técnico principal do Heat que foi para os Playoffs cinco vezes seguidas, chegou nas Finais da NBA quatro vezes seguidas e ganhou dois anéis de campeão. Lá, a narrativa sempre envolvia um caminho histórico rumo às Finais e qualquer lombada era apenas mais um elemento numa história de superação. O corredor que liga os vestiários à quadra em Miami é forrada de fotos dos times campeões, numa lembrança de que cada jogador faz parte de uma história maior, de longa duração, em que a vitória é inevitável. É esse tipo de “cultura da vitória” que Fizdale levou para Memphis antes mesmo de falar sobre esquemas táticos – sua primeira ação na franquia foi forrar o corredor do ginásio do Grizzlies de fotos de Mike Conley, Marc Gasol e Zach Randolph vencendo jogos. Os jogadores falam abertamente que o novo técnico está trazendo a “receita do sucesso”, o que me parece claramente a água do Michael Jordan no “Space Jam”, uma lorota que serve apenas para que os jogadores comprem a narrativa e acreditem em si mesmos.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Lesionou todo mundo mas sobrou esse cara, que você não reconheceria na rua”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/12/Troy-Who.jpg[/image]

Justiça seja feita: vindo da “escola Erik Spoelstra“, Fizdale é rigoroso e objetivo na parte tática, fez ajustes pontuais na defesa e reformulou por completo a movimentação ofensiva em apenas 2 meses de basquete. Mas nada disso deveria ser suficiente quando se tem um elenco DESMANTELADO por lesões e outras eventualidades. Mike Conley, ainda mais fundamental para a equipe agora que o ataque de Fizdale exige um armador que puxe o ritmo de jogo, tem uma lesão nas costas que o deixará fora até o ano que vem. Zach Randolph se ausentou da equipe após o falecimento de sua mãe. Chandler Parsons, a grande contratação da equipe para essa temporada, lesionou novamente o joelho e não tem qualquer previsão de retorno. Vince Carter lesionou o quadril, que é lesão de vovô. Brandan Wright dá a impressão de que nunca mais vai jogar basquete, agora passando por uma nova cirurgia no joelho. E AINDA ASSIM o Grizzlies está em quinto lugar no Oeste com 17 vitórias, 8 derrotas e uma sequência de 6 vitórias seguidas com uma dupla de armação composta por dois novatos, Troy Williams e Andrew Harrison. E foi com eles que o Grizzlies deu uma SURRA no todo-poderoso Warriors, tão surreal que os titulares nem precisaram jogar o último período inteiro. É quase como se o Grizzlies não soubesse que eles DEVERIAM PERDER jogos assim. São a equipe que mais disputou jogos decididos por 10 pontos ou menos e GANHOU TODOS. Quando a coisa aperta, quando eles enxergam uma brecha para a vitória, possuem a NARRATIVA certa para ir lá e abocanhar o que ACREDITAM LHES SER DE DIREITO. Enquanto o Sixers pensaria “lá vamos nós perder de novo”, o Grizzlies pensa “precisamos moer esses caras porque só a vitória é uma opção”.

No papel, esse Grizzlies é questionável até quando completo. Forrado de lesões, é muito possivelmente uma das piores equipes da NBA. O engraçado é que eles NÃO SABEM DISSO, não cabe na narrativa que lhes foi entregue. Mike Conley, em sua primeira conversa com Fizdale, recebeu a promessa de que ele seria All-Star esse ano. Marc Gasol recebeu a “ordem” de arremessar de três pontos sem parar nas férias porque isso seria a chave para que eles fossem CAMPEÕES. O resultado é um Mike Conley que quer voltar às quadras a todo custo – já dizem que ele retornará bem antes da previsão inicial – e um Marc Gasol que já decidiu três jogos com arremessos de três pontos nos segundos finais, ajudando o Grizzlies a conseguir a marca absurda de DOZE VITÓRIAS e nenhuma derrota em jogos que chegaram ao minuto final com uma diferença de três pontos ou menos no placar.

São bolas de três pontos, Marc Gasol arremessando sem parar fora do garrafão, um ataque minimamente organizado, Zach Randolph no banco de reservas e UMA TONELADA de jogadores desconhecidos que eu não saberia quem são se cruzasse na fila do pão, mas ainda assim esse Grizzlies ainda é o Grizzlies: moendo carne para o jantar, resistindo às lesões e à falta de talento, acreditando que vencer ainda é possível. São a prova de que é importante ter bons jogadores e uma boa comissão técnica, mas a construção de uma equipe começa – como tudo na humanidade – com a construção da historinha que usaremos para que tudo tenha algum sentido. O Grizzlies escolheu interpretar o urso de seu nome, um papel destemido, agressivo e um tanto estabanado. Agora é tarde demais: não há ninguém capaz de convencê-los de que a história não é a própria realidade.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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