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Quando Tracy McGrady chegou ao Houston Rockets, era sua primeira chance de ser a estrela de um time de verdade. Isso porque, no caso do Magic, chamar aquela joça de “time” era ser bastante bonzinho – o único outro jogador de verdade era o Grant Hill, que não chegou a jogar por contusão. Em Houston as coisas mudaram bastante: T-Mac era o grande reforço que tornaria Yao Ming campeão, mas as contusões lascaram os dois. O time, que agora é um time de verdade, segura as pontas sozinho a ponto de nem pensar mais em McGrady. Em Orlando era ele quem segurava um time que não existia, em Houston o time é tão bom que não precisa dele.
Em nenhum desses dois extremos T-Mac poderia dar certo. Quando foi cestinha da NBA seus esforços eram inúteis e foi, como todo grande jogador em time medíocre, tratado como perdedor, nos moldes de Kevin Garnett. Quando jogou em um time coletivo, não conseguia produzir sem reter a bola e diminuir o ritmo da equipe, decidiu passar a bola e foi tratado como amarelão, assumiu toda a responsabilidade pelo time nos playoffs e aí o elenco lhe deixou na mão nos momentos cruciais. Nunca houve um momento de equilíbrio, uma situação em que ele precisasse do time tanto quanto o time precisasse dele.
O técnico Rick Adelman sempre sonhou com um tipo bastante específico de basquete: coletivo, em que todos participem do ataque, criativo, com total liberdade para os jogadores, e baseado na constante movimentação de cada uma das peças da equipe. Na teoria é lindo, cheio de borboletas e pôr-do-sol e fadinhas coloridas, mas na prática exige uma caralhada de jogadores inteligentes que entendam perfeitamente a filosofia por trás dessa brincadeira. O Kings regido por Adelman, quando finalmente pegou o jeito, era uma maravilha de ver. Não ganhou bulhufas, tinha problemas claros, mas funcionava tão bem basicamente pela inteligência de três jogadores:
Vlad Divac, Chris Webber e Mike Bibby. Os dois primeiros figuram entre os melhores passadores de todos os tempos dentre jogadores de garrafão. O terceiro estava sempre disposto a dar o passe certo, sem frescuras – motivo pelo qual foi amado-idolatrado-salve-salve quando chegou à equipe no lugar do firulento Jason Williams, que curte a ideia de passar bolas enquanto equilibra pratos no nariz. Quando mais Rick Adelman teria outra oportunidade de encontrar jogadores tão eficazes, inteligentes e capazes de colocar sua filosofia ofensiva em prática?
O Houston Rockets parecia uma boa ideia (o Yao Ming é um excelente passador, e não é porque eu tenho fetiche por chineses gigantes não), mas o time era lento, tinha dificuldades em correr, segurava demais a bola e faltavam arremessadores. Tanto Yao quanto T-Mac sofreram bastante tentando abraçar as ideias de Adelman, porque quando faziam a bola rodar, eram criticados por não serem agressivos. Por um bilhão de vezes, Yao chamou uma marcação dupla no garrafão e passou a bola para fora, onde ela girava de encontro a um arremessador livre. Não é exatamente o que se espera de uma estrela de seu calibre passar um jogo tendo arremessado apenas um par de vezes. Eu nunca aceitei muito bem como o Yao era mal aproveitado no esquema, mas era um caso em que a postura do técnico sempre falou mais alto do que os jogadores que deveriam obedecê-la. Não interessava se havia um chinês gigante e um dos maiores cestinhas de todos os tempos na NBA, a postura ofensiva do Rick Adelman já chegou montada e não era maleável. O time que se adaptasse a ela.
É por isso que, justamente nas contusões de Yao e T-Mac, o sistema ofensivo floresceu. O resto do time, inteligente mas com menos talento, pressão ou potencial, parecia perfeito para o Rick Adelman. A escolha do Houston por trazer Trevor Ariza foi tratada com dúvida, “será que ele é jogador para ser estrela, para ser cestinha, para jogar sozinho, liderar um time?”. Ninguém entendeu que a comissão técnica procurava justamente isso, um jogador que não fosse estrela, que não pudesse jogar sozinho, que não tivesse pretenções de liderar uma equipe. Esperava-se mais um jogador secundário e inteligente, e isso todo mundo que assistiu ao entendimento relâmpago do Trevor Ariza com relação ao sistema de triângulos do Lakers sabia que o Houston tinha conseguido.
Não há estrelas, não há líderes, não há jogadores que possam dominar o jogo sozinhos. Finalmente a presença de Rick Adelman é maior do que aquilo que está em quadra, é quase como se fosse ele a jogar ali todas as noites. Nunca um elenco entendeu tão bem sua filosofia nem executou tão bem seu plano ofensivo. É o elenco mais inteligente em que o técnico colocou suas mãos, a rotação é definida, todo mundo compreende seu papel e faz diretinho sem reclamar. Pode não dar certo sempre, mas mesmo as derrotas saem sempre como planejado. Durante as últimas temporadas, Rick Adelman passava todos os jogos chamando as jogadas ofensivas em voz alta no banco de reservas, decidindo o que o time deveria fazer em cada posse de bola, e quando parava de fazê-lo – deixando o time tomar as próprias decisões – a coisa descambava para a pourra-louquisse (algo tipo o Knicks de hoje em dia) e ele voltava a chamar as jogadas. Nessa temporada, a câmera durante as partidas insiste em mostrar um Adelman em silêncio, coçando a cabeça, cutucando a barba, apertando o nariz. É a imagem mais clara de que seu plano deu certo. E a constatação óbvia de que ter McGrady de volta lhe dá mais arrepios de medo do que ter que ver a Playboy da Fernanda Young.
Foi por isso que o T-Mac saudável recebeu a postura do “vamos fingir que ele não está aí para ver se desaparece”, algo que o Pacers fez com o Jamaal Tinsley e que todos os seres humanos fazem com novela da Record. Mas no caso do Tinsley, o time arrancou até seu nome dos armários da equipe, a gente fica imaginando ele chegando para o jogo e não ter sequer onde se trocar, ao ponto de se esconder num cantinho da parede e ficar cantando músicas de ninar. Com o T-Mac a coisa foi bem mais sutil, falou-se sobre o medo de sua condição física, de ritmo de jogo, pavor de que ele voltasse a desmanchar o joelho – tudo bastante infudado porque ele passou as férias inteiras treinando com os melhores e competindo com jogadores de peso da NBA. Mas tudo também bastante justificável, tendo em vista que voltas apressadas por parte do T-Mac tiveram resultados catastróficos. Então usaram isso como uma desculpa sincera e mantiveram McGrady longe das quadras o máximo de tempo possível, ao ponto da paciência torrar e do T-Mac aparecer para jogar, vestido com o uniforme, mesmo sem a liberação da equipe. Talvez o Rick Adelman quisesse sumir com a placa do T-Mac do vestiário do Rockets, mas preferiram uma abordagem mais diplomática. O problema é que, cedo ou tarde, não daria para manter a postura. Uma hora ele teria que entrar em quadra.
Quando o Trevor Ariza foi pentelhado o jogo inteiro pelo DeMar DeRozan e deu uma cotovelada no ar (louvada seja sua falta de mira), acabou suspenso pela NBA. Além de umas piadinhas na equipe chamando-o de boxeador frustrado e da própria compreensão do Ariza de que ele perdeu a paciência e foi só isso (“me suspende, pronto, e depois deixa eu jogar”), a suspensão lascou a rotação da equipe e deixou bem claro aquele Tracy McGrady quietinho sentado no cantinho do banco, no maior estilo gordinho descoordenado que fica sentado encolhido esperando alguém escolher ele pra jogar na Educação Física. Não havia qualquer desculpa que pudesse impedí-lo de jogar e então, contra o Detroit Pistons, T-Mac entrou em quadra.
Shane Battier foi para o banco depois de uns minutos de jogo e McGrady entrou em seu lugar. Jogou por 7 minutos, até o final do primeiro quarto, e depois não voltou mais, com a desculpa de que não tem ritmo de jogo e não valhe a pena comprometer o ritmo da equipe por isso. Já foram três jogos e o que ocorre é sempre igual, esses minutinhos poucos e controlados. A torcida foi à loucura quando ele finalmente entrou em quadra, teve orgasmos múltiplos quando ele converteu sua primeira cesta, mas lá no fundo todo mundo vê a verdade, um T-Mac com dificuldades para correr, que não sabe para onde deveria passar a bola e que não defende nem ponto de vista. Nessa altura das coisas, não há muito que McGrady possa acrescentar que o time já não faça bem – pontuar, encontrar companheiros livres, arremessar do perímetro – e, ao contrário, sua saída debilita o time defensivamente, já que Ariza e Battier são excelentes defensores. Contra o Nuggets chegou a ser ridículo: assim que T-Mac entrou em quadra o Carmelo Anthony começou a devorar o Houston vivo com azeite e sal. Para que ele entrou em quadra, então? Por mais triste que seja, ele não é mais necessário.
O bonitinho dessa história é o discurso de Tracy McGrady, de que ele não tem nada a provar a ninguém: já foi All-Star sete vezes, cestinha da NBA por duas, frequentou os playoffs com constância. Tá bom que nunca passou da primeira rodada, nunca ganhou nada, mas deixou seu nome na história como um dos grandes de seu tempo. O que T-Mac diz querer é provar coisas para ele, provar que ainda pode jogar, que venceu suas contusões, que pode se encaixar. Seu discurso nunca soube encontrar um equilíbrio, em horas colocava todo o peso nas suas costas, em outras responsabilizava seus companheiros. Agora ele sabe que é desnecessário e no discurso só quer entrar em quadra e mostrar que pode jogar. Sem ser líder, sem responsabilidades, sem ganhar um título. Até porque essa postura é a mais capaz de lhe levar a um título. Nem ele nem nós, torcedores, podemos esperar grandes coisas: uns minutos aqui, outros minutos ali, umas bolas no último segundo, dar uma força no ataque em momentos específicos do jogo. Ou seja, tornar-se mais um jogador secundário e inteligente nas mãos de Rick Adelman. Se ele compreender que é apenas um grão de areia nas mãos do todo-poderoso técnico, jogará pouco e conquistará muito.
Será uma pena ver seu talento mal aproveitado, e muito possivelmente ele procurará outro lugar em que possa ter a bola nas mãos na temporada que vem, quando seu contrato finalmente termina. Mas se o seu discurso for real, o Houston será uma oportunidade fantástica de lhe tirar o peso nas costas, o caráter de estrela que sempre lhe podou o estilo de jogo, a fama de amarelão, as contusões que sempre lhe cobraram por um corpo que se esforça demais. É a chance que T-Mac tem de ser livre – tudo que ele tem que fazer é se deixar escravizar por Rick Adelman. A torcida de Houston vibra quando McGrady entra em quadra, resquício dos velhos tempos, mas a real felicidade está em vê-lo funcionando num papel limitado. Aplaudamos Tracy McGrady por tudo que ele fez, mas sejamos abertos àquilo que ele quer e pode fazer agora: vencer jogos, liberto das pressões que colocou em si mesmo. O engraçado é que trata-se do mesmo futuro que aguarda Yao Ming, desnecessário, pressionado, contundido. Que os dois, então, pequenos perto de Rick Adelman, possam ser livres.