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Já faz um tempinho desde que o Ron Artest ficou provocando o Kobe no último período da vitória do Lakers em cima do meu pobre Houston Rockets – que, aliás, acaba de perder Carl Landry graças a um tiro na perna (já se foi o tempo em que dava para brincar de pião na rua, se bem que ninguém está exatamente atrás de piões quando está na rua às 4 da manhã, claro).
O vídeo do bate-boca entre Kobe e Artest pode ser visto no post do Denis sobre a partida e a discussão entre os dois gerou muita atenção por aí, afinal esse tipo de coisa fica cada vez mais e mais rara na NBA. Um jogo sem muita importância acabou ganhando um outro clima, e no fundo um outro desfecho, porque o Kobe acabou chutando o traseiro do Houston depois das provocações. É o tipo de coisa que transforma completamente o esporte que conhecemos, nos faz penser por alguns segundos que aquilo é um combate, uma batalha, e que os adversários se odeiam e reagem uns aos outros espontâneamente.
Na linha de lances livres, o Artest grita “Você não está pronto pra mim“, ao que Kobe responde, com cara de surpresa e deboche: “Quê? Não estou pronto pra você? Agora você é um comediante, é?” O Artest faz então a ameaça, prometendo dar o troco no próximo jogo entre as duas equipes, lá em Houston: “Espere por mim.” Há confronto, um par de empurrões, nenhum dos dois calou a boca um segundo e os olhares foram ameaçadores. Mas uma provocação do Artest, feita em quadra com ar jocoso, estava no fundo dedando a verdade – batendo no peito e apontando para o Kobe, ele repetia: “Eu te amo, eu te amo.“
Ali no palco estava a luta, o duelo, mas nos bastidores não poderia haver outra coisa além de amor – não quero dizer que o Artest quer levar o Kobe para cama, até porque o senhor Bryant parece mais interessado em baranguinhas de 19 anos – mas um amor de respeito, de admiração. Bem-vindos ao mundo da luta livre, do telecatch, dos Gigantes do Ringue, do filme O Lutador: inimigos na arte do espetáculo, admiradores fora da brincadeira. E a prova surgiu para mim justamente procurando o bate-boca da partida entre Lakers e Houston: encontrei o Artest entrevistando o Kobe, pouco depois do prêmio de MVP ter sido entregue na temporada passada.
Por diversas vezes durante a entrevista, Artest diz que o Kobe é seu jogador favorito, e relembra a vez que jogaram, um contra o outro, ainda adolescentes:
“Falaram pra mim que eu podia marcá-lo. Me colocaram em você, e você acabou comigo. Foi bem legal, sempre vou ser um grande fã.“
O Artest ganhou fama sendo briguento, polêmico e encrenqueiro, mas bastam alguns segundos de entrevista para que ele deixe aparecer toda sua humildade. Ele está feliz e emocionado de entrevistar o Kobe, e por vezes parece até que está constrangido e envergonhado como uma garotinha perto de um Backstreet Boy (principalmente aquele loiro que a mãe não deixava tirar a camiseta nos clipes). A admiração óbvia pelo Kobe é explicada pelo próprio Artest:
“Você é um dos caras que nunca desistem. Você e o LeBron deveriam ser os caras que eu não gostaria de enfrentar, mas eu não gosto dos caras que não competem! Você tem o estilo de assassino, se o cara não compete você marca 100 pontos nele!“
Um dos jogos em que o Artest mais se divertiu foi quando ele estava enfrentando o Matt Harpring, ou seja, ele só está interessado em caras que não desistem mesmo (os leitores do Bola Presa que torcem para o Jazz indicam no post abaixo justamente que tipo de jogador o Harpring é, embora não gostem muito do CJ Miles, provavelmente porque ele é negro). Ele prefere ser humilhado num jogo espetacular e ficar provocando o adversário do que participar de um jogo porcaria sem qualquer emoção, sem ninguém que ele possa respeitar. O tipo de coisa que anima o Artest chega a ser engraçado, como ele diz pro Kobe, com um sorriso na cara: “Uma vez você falou que esperava ancioso pra jogar contra mim e eu pensei, diabos, ele vai marcar 50 em cima de mim!”
Eu me divirto quanto o basquete deixa entrever as vidas que correm por baixo dele, quando percebemos que o espetáculo acontece por cima de um outro espetáculo: o da vida. Eles são seres humanos, afinal de contas, e é natural que dois jogadores que levam a sério suas paixões discutam animadamente em quadra, principalmente quando ninguém sai com o olho roxo. Por causa do Kobe, pela sua admiração, Artest quer ser um jogador melhor:
“O Wade perguntou por que eu estava lhe marcando tão duro, e eu respondi: estou me preparando para o Kobe Bryant!”
Os olhinhos do Artest brilham o tempo todo, principalmente quando ele parabeniza o Kobe por ter sido escolhido para o Time de Defesa da NBA, que ele afirma ser um prêmio “mais importante do que o de MVP” que o jogador do Lakers recebeu. A humanidade do Artest fica explícita não apenas na conversa sobre a arte que eles compartilham, com as dicas de como envolver o resto do elenco e o foco na defesa ao invés de no ataque, mas também na comparação de suas vidas pessoais. Kobe tem uma filha de 6 anos, Artest uma de 11 anos, e eles trocam experiências sobre serem abordados por fãs quando estão passando um tempo escasso com suas crianças. Eles são de carne e osso, vejam só, e por isso mesmo eu jamais me atreveria a lhes pedir um autógrafo. Como disse a filha do Kobe, “é só um pedaço de papel” e eles têm mais o que fazer da vida. Seja na vida pessoal, seja na quadra de basquete, o que eles fazem é para eles mesmos, é uma piada interna, uma arte compartilhada entre artistas, uma expressão pura e simples, mas há um pouco que é direcionado para nós, fãs. Há um pouco de espetáculo que nos leva aos ringues de luta livre, amando e odiando quem somos levados a amar e odiar, e que estão ali para nos entreter.
Pra mim, a NBA é um pouco confusa com relação a isso. Tenta inibir a expressão pessoal dos jogadores, qualquer ato humano, espontâneo, qualquer ato de fúria ou desconcerto, na desculpa de que a NBA tem que ser espetáculo e “dar bom exemplo”. Mas ao mesmo tempo o espetáculo está morrendo junto com a expressão de seus atletas, não há mais gente batendo no peito e chamando a torcida, não há ninguém interpretando vilões para que possam existir heróis. Agora, tudo é por baixo dos panos, quase inexistente, velado, sem graça. Legal, existem punições e multas terríveis para faltas, xingamentos, gente que levanta do banco de reservas e usa roupas não definidas, mas isso deveria melhorar o espetáculo? Quando foi a última vez que dois jogadores realmente competiram de forma espetacular (ainda que cômica) um contra o outro, chamando a torcida e despertando paixões? Confesso que estou com saudade do Gilbert Arenas falando demais, incitando os torcedores e seus adversários. Mas a NBA faz de tudo para evitar as transgressões e o espetáculo morre junto.
Dia desses, Stephen Jackson e seu técnico-cientista-maluco Don Nelson foram expulsos com três faltas técnicas em questão de segundos. O caso do Don Nelson, gravado com direito a close pelas câmeras de televisão, beira o ridíclo: ele olhou para o juiz, encarou, falou alguma coisa e foi mandado para o chuveiro. Não se deve falar com juízes, não se deve sair da linha, muito embora algumas estrelas possam papear com os juízes quanto quiserem. As regras são burras, idiotas e subjetivas. No basquete universitário, recentemente, um jogo começou com a cobrança de uma falta técnica, na linha do lance livre. Tudo porque um dos jogadores deu uma enterrada durante o aquecimento, o que é proibido pelas regras. Deviam proibir os dois times de fazer cestas também, quem sabe o jogo não fica bem legal? O vídeo das expulsões no Warriors vocês podem conferir aqui.
Aguardo feliz o próximo confronto entre Kobe e Artest, não apenas porque é o nosso semi-consagrado “Bola Presa Bowl” em que o meu time enfrenta o time do Denis, mas porque é uma das poucas relações de respeito na NBA que se transformam em paixão e espetáculo para nós, torcedores. O esporte é apaixonante mas cada vez temos menos jogadores para admirar porque, quando ninguém pode abrir a boca, todos acabam sendo iguais. E se todos são iguais, qual é a graça da brincadeira?
O próprio Artest diz gostar de poucos jogadores, como fala pro Kobe: “Eu tenho 28 anos, você tem 29, e você é um dos meus heróis! O LeBron tem 23, ele é o meu favorito depois de você, e depois tem o Tim Duncan e acaba por aí.“
Ou seja, o Artest respeita três jogadores na NBA e só. Mas o mais engraçado é o Tim Duncan estar nessa lista, parece que não tem ninguém que jogue basquete e não admire o maldito. Não abre a boca, não mexe os músculos faciais, mas temos que admitir que ele é um pintor que domina o pincel como nenhum artista de sua geração, mesmo que só pinte em preto e branco. Mas acho que vou ficar com o Artest: atualmente, ele deixa a NBA colorida. O vídeo abaixo, por exemplo, não mente:
Ron Artest canta “Paul, eu sinto muitíssimo por ter humilhado você na televisão baixando sua bermuda, não farei isso de novo!” e depois explica que Paul Pierce estava acabando com ele desde o começo do jogo e que abaixar suas calças não serviu pra nada, já que tomou uma bola de três pontos na cara mesmo assim. Da próxima vez, acrescenta, “vou ter que tirar tudo dele, bermuda, meias, tênis, tudo!” Longe de ser um desrespeito, Artest oferece um espetáculo de certa forma lisongeiro para Pierce e a regra poderia tê-lo punido com prisão perpétua. Parece que eu reclamo das regras da NBA uma vez por semana, mas é que por diversas vezes elas são uma barreira que nos separam da diversão que o basquete deveria nos proporcionar. Quem gosta do esporte precisa saber quando jogá-las fora e agradecer, todas as manhãs, pelo Ron Artest. E pelo Tim Duncan também, vai, eu também sei dar meu braço a torcer.