Mente sobre a matéria

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“Papai do céu, não me permita perder do Nets, amém.”
Às vezes um time não tem os jogadores mais talentosos. Muitas vezes falta força física, ar nos pulmões, pernas jovens para correr de um lado para o outro da quadra, velocidade, e até coisas menos importantes, tipo saber jogar basquete. Mas um número enorme de partidas é decidido apenas com aquela coisa oval e esquisita que fica acima do pescoço e de que a Carla Perez nunca ouviu falar: a cabeça.
O Dallas Mavericks pode não ser um time perfeito, e eu vou continuar incrédulo e achando que eles não tem chances reais de ganhar um título, mas pelo menos eles podem se gabar de ser um time inteligente. Umas semanas atrás, escrevi um post sobre como a troca pelo Jason Kidd passava a fazer sentido graças ao técnico Rick Carlisle, que decidiu usar melhor o armador do que acontecia no antigo esquema tático, em que Kidd apenas passava a bola para o lado iniciando jogadas de isolação de Nowitzki e Josh Howard. O Devin Harris é um jogador fenomenal, tem uma velocidade absurda e pune times que não conseguem marcar armadores que infiltram sem parar, mas ele não é nenhum gênio da física moderna. Seus passes são descabidos e seu jogo é muitas vezes afoito, o oposto perfeito de Jason Kidd, uma mente de cientista maluco num corpo castigado pela idade.
Antes o Mavericks tinha problemas de defesa, já que apenas Shawn Marion é um defensor considerável no elenco, todos os outros fedem nesse quesito, e o Marion acaba prejudicando o ataque porque o Mavs gosta de jogar no contra-ataque mas atrás da linha de três pontos, onde seu aproveito vem sendo pífeo. Por isso, a troca com o Wizards foi tão importante: trouxe defesa, arremessadores de três pontos e versatilidade ao time. As novas aquisições teriam seu primeiro teste de verdade contra o Lakers, mas aí o Caron Butler teve uma reação alérgica a um medicamento e não conseguiu jogar. Todo mundo pergunta se o Mavs tem chances de título, mas no papel simplesmente faltam as armas necessárias: Kidd está velho, corre pouco e marca mal; sem Butler o titular foi DeShawn Stevenson, que caiu de qualidade rapidamente no Wizards e não acerta mais seus arremessos; Shawn Marion tem problemas até hoje para se adaptar à vida sem Steve Nash; Eric Dampier nunca mais jogou bem desde que assinou seu contrato milionário, é lento, pesado e parece que está jogando debaixo d’água quando tenta defender; Nowitzki é criticado pela sua defesa, por não atacar a cesta e por ser incomodado por defensores mais baixos e mais fortes do que ele. Como o Mavs pode parar Kobe, como impedir que Bynum e Gasol destruam no garrafão, como acompanhar a velocidade e a versatilidade do Odom, e quem do banco pode ajudar a equipe que não sejam simples arremessadores?
É nessas horas que a mente vence. O Mavs é um time experiente, focado, perfeitamente dentro de um esquema tático que finalmente envolve todos os jogadores sem ser previsível, e que coloca poder de decisão e controle do ritmo de jogo nas mãos do Kidd. Por isso, é um time com menos jogadas de isolação sem, no entanto, ter que aumentar desnecessariamente a velocidade da partida. É um time controlado, vivido, com experiência nos playoffs, e que de repente após as trocas começou a acreditar que pode ganhar um título. Não é aquela merda de “O Segredo”, em que você acredita e o troço acontece, mas saber que você pode ganhar faz com que o time lute até o fim pela vitória. Se a vitória deveria estar vindo, perder é um absurdo que deve ser combatido, enquanto se a derrota é esperada, ter o traseiro chutado é comum e não provoca reações. O Mavs achou que deveria vencer o Lakers e venceu, com DeShawn Stevenson marcando bem o Kobe, Kidd tomando todas as decisões certas e Nowitzki simplesmente destruindo a partida. Lembra quando ele era previsível e só arremessava de longe? Passado. O Kidd soube quando acionar o alemão, que foi marcado por quase todo mundo do Lakers (Odom, Kobe, Gasol, Artest) e tinha uma surpresa guardada para cada um: terminou o jogo com 31 pontos, atacou a cesta, e cobrou 11 lances livres.
Na partida seguinte, contra o Hawks, o Mavs chegou a estar perdendo por 15 pontos no quarto período. Mas o time agora acredita que pode vencer, que deve vencer, e os jogadores são experientes e inteligentes. Jason Kidd pegou a bola nas mãos e assumiu o jogo: foram bolas de três, passes precisos, faltas cavadas, roubos de bola, rebotes ofensivos e uma mudança total da cara do jogo. E tudo isso com aquela corridinha migué que ele dá agora, sem nunca colocar a língua pra fora. Perdendo por 2 pontos a 1:30 do fim, o Jason Kidd mostrou que não é preciso ser atlético como o Josh Smith – que jogou um absurdo e fez a cesta que levou o jogo para a prorrogação – para conseguir uma cesta, nem ter o arremesso do Kobe Bryant para pontuar – o Jason Kidd ainda é chamado de “Ason Kidd” por não ter o “j” de “jumper”, ou arremesso. Basta ser inteligente: vendo Mike Woodson, técnico do Hawks, dentro da quadra dando ordens à equipe (algo que todo técnico faz o tempo inteiro, nem adianta culpar o coitado), Kidd correu em sua direção, forçou um contato intencional mas moderado, e aí fingiu ter sido brutalmente atrapalhado. Foi o bastante para qualquer árbitro do planeta ser obrigado a marcar uma falta técnica no Woodson – que o Nowitzki cobrou numa boa e, claro, acertou. O engraçado foi ver vários jogadores do Hawks (e um assistente técnico) correndo para cima do Kidd, provavelmente para lhe dar uma surra, enquanto o Kidd mantinha um sorriso que escapava da cara séria que tentava manter, repetindo sem parar “Foi a coisa certa a se apitar”.


Dá pra ler os lábios dele no vídeo acima reiterando como a arbitragem foi correta, e ele tem razão. A arbitragem foi inevitável, não dava pra fingir que ele não foi tocado pelo técnico (por mais que o Mike Woodson tenha tentado sair da frente, mas é que esses técnicos são velhos e fora de forma), e não tem nada mais inteligente em quadra do que tornar as coisas inevitáveis: das marcações dos árbitros aos passes precisos. A opção do Kidd pode não ter sido a mais correta do planeta, mas a arbitragem foi, o lance livre foi, a partida do Kidd foi. Foram 19 pontos, 16 rebotes e 17 assistências para o armador – nada forçado, tudo simples e inevitável. Fiquei pensando em como Devin Harris ficaria batendo para dentro do garrafão jogada após jogada, tentando cavar faltas, para diminuir uma diferença de 15 pontos no último período, e que talvez até desse certo, mas Kidd fez isso como apenas os mais experientes e inteligentes podem fazer. E foi parar nas nossas memórias e no YouTube com uma jogada genial e inesperada, digna de quem devora o livrinho de regras do basquete enquanto faz cocô todas as manhãs. O Devin Harris se tacando pra dentro do garrafão teria, inclusive, tirado o ritmo do Nowitzki, coisa que o Kidd consegue manter mesmo quando dá seu showzinho particular. Foram 37 pontos para o alemão, ele engoliu sozinho o Hawks na prorrogação, mas é a calma do Kidd que permitiu tudo isso. Dá pra ver nos olhares que o time do Mavs troca durante a partida que todos eles sabem que são experientes, confiam uns nos outros, apanharam na carreira, e que agora é a hora de vencer. Uma mentalidade capaz de levar um time ainda limitado rumo a um anel de campeão.
O contrário está acontecendo com o Celtics. Na primeira vez em que eles enfrentaram o Cavs após as trocas que levaram Jamison para Cleveland, parecia que estavam preparados para a derrota. No quarto período, Mo Williams acertou duas bolas de três seguidas, o Ray Allen errou feio uma bola marcado por um LeBron furioso, e no contra-ataque James deu um passe para a terceira bola de três em sequência de Mo Will. Naquele instante o Celtics simplesmente desistiu de um jogo que, até então, parecia disputado. Dois anos atrás o Garnett teria arrancado o braço do LeBron, palitado os dentes com os seus ossinhos, e babado sangue gritando com cada companheiro porque não deram a vida para tentar reverter o resultado. Agora, Garnett parece cansado, exaurido, comedido, triste, e o time faz apenas o essencial. Ainda jogam muito, defendem bem, tem um dos elencos mais talentosos da NBA, mas falta cabeça, intensidade, a mentalidade de quem sabe que vai vencer. Parece reinar na equipe o medo de perder – afinal, Ray Allen, Garnett e Pierce (atualmente contundido) estão ficando velhos, lesionados, e seus contratos, prestes a terminar, podem desmanchar a equipe – além de um desinteresse por se doar ao jogo que só acontece em vestiários problemáticos. Pra mim parece óbvio que Garnett foi criticado demais por ser muito exigente com os companheiros (provavelmente criticado até dentro da equipe) e agora não é mais tão vocal, além de ter voltado de contusão mais frustrado com seu próprio jogo e desanimado com os rumos que a equipe toma sem ele. A simples presença de Rasheed Wallace no Celtics tem também um peso enorme nesse desânimo: ele é um jogador espetacular, poderia ser uma estrela, mas joga como se não desse a mínima, não se esforça no Celtics, não consegue dar o suor que só aparecia quando jogava “pela sua família” (ou seja, o Pistons), e o resto do elenco parece não se conformar. Ele toma frias terríveis quando erra seus insistentes arremessos de três, olhares furiosos quando faz cagadas na defesa, e parece não aceitar as críticas que recebe dos companheiros. É um clima de bunda, uma mentalidade de quem agora acha que perder é normal quando antes uma derrota qualquer – mesmo para os melhores times da NBA – era inconcebível.
Por isso foi tão engraçado ver como o Celtics, que agora acha perder uma possibilidade, encarou o Nets, que agora acha vencer uma possibilidade. Já que por algum motivo bizarro que nem os melhores psicólogos do mundo poderiam explicar eu assisti uma caralhada de jogos do Nets nessa temporada (possível traço de masoquismo?), sempre insisti que eles não tem um time tão ruim a ponto de terminarem a temporada com a pior campanha de todos os tempos. Pelo contrário, o time é bom o bastante para um bom punhado de vitórias, deveria estar quebrando um belo de um galho contra os times mais-ou-menos da NBA. Mas é que com as trocentas contusões que assolaram o time no começo da temporada, a pirralhada do Nets sem confiança, sem cabeça e sem experiência começou a achar que tinha tudo ido pra merda. Todos os jogos já estavam perdidos antes de começar, não havia qualquer esperança, a vida era horrível e o melhor era sentar num canto e ouvir NX Zero. Com o tempo, uma melhora aqui, uma melhora ali, um bom psicólogo acolá, o Nets foi começando a achar que poderia vencer, talvez um dia quem sabe. Estão melhores a cada jogo, evoluindo aos poucos, mais confiantes. Jogaram uma partida impecável contra o Celtics, achando que dava pra ganhar, e quer saber? Ganharam.
O Celtics de antes nunca permitiria essa derrota, Garnett degolaria os juízes responsáveis pelo placar e mudaria o resultado na unha se fosse preciso. Mas não, jogou silenciosamente (e bem!) e assistiu a seu time apático que jogou como sempre, como se fosse qualquer outro jogo, contra qualquer outro adversário, e como se eles não estivessem perdendo para a pior campanha da NBA. Ficaram arremessando de longe, sem se aproximar do garrafão (a fobia de garrafão do Rasheed se alastra pela equipe), enquanto o Nets batia para dentro em toda posse de bola. O Nets cobrou 41 lances livres, o Celtics cobrou 11. Nisso o jogo já estava perdido, mesmo se as bolas de longe do time verde tivessem caído. Mas não caíram, e aí está: um time vencido por sua mentalidade, enquanto o Nets passa a vencer por ter uma mentalidade correta. A cachola acima do pescoço tornando possível superar a falta de talento. É por isso que o Jason Kidd vai estar paraplégico, preso numa cama de hospital, e ainda vai dominar a NBA com sua telecinese paranormal. O Celtics não tem chances de título nessa situação, e agora eu tenho medo do Mavs. Podem não ganhar um anel, mas pelo menos sabem resolver alguns sudokus – e isso, na NBA, já é muito raro.

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