Meu pedido de desculpas para Tim Duncan

Vinte temporadas em uma única equipe, cinco títulos da NBA, nome garantido no Hall da Fama do basquete: foi com esse currículo exemplar que Kobe Bryant se aposentou após um tour de despedida em que cada jogo de sua derradeira temporada foi celebrado como se fosse o último. Quando o último jogo de fato chegou, contamos com transmissão televisa e cobertura total para uma partida que de outra maneira seria inteiramente desimportante. Com 60 pontos em sua despedida, Kobe deixou a NBA com todos os holofotes sobre si, monopolizando a atenção de uma Liga que não precisava mais dele. Tivemos toda uma temporada para trabalhar o luto, preparar a despedida, organizar as memórias e acrescentar uma última, o brilho mais intenso de uma estrela a instantes de se apagar para sempre. Torcedores atravessaram o planeta para acompanhar seus últimos momentos, com fãs mais devotos de diversos países abandonando suas vidas cotidianas para seguir Kobe jogo a jogo até o apoteótico fim.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Na temporada de despedida de ambos, Duncan quase soltou um sorriso”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/07/Duncan-e-Kobe.jpg[/image]

Dezenove temporadas em uma única equipe, cinco títulos da NBA, nome garantido no Hall da Fama do basquete: Tim Duncan só precisava de mais uma temporada, a vigésima, dedicada a um tour de despedida para igualar a história acima. Um dos jogadores mais importantes de sua geração, o rosto inegável de uma franquia que foi o exemplo máximo de sucesso nas últimas duas décadas, Tim Duncan merecia uma temporada em que cada minuto seu em quadra fosse celebrado como o último, em que as memórias fossem reunidas, que os rancores de antigos rivais fossem deixados de lado e que quaisquer ressalvas relativas à sua personalidade fossem abandonadas frente ao medo de que tenhamos lhe dado qualquer coisa que não a máxima admiração. Os fãs precisavam de uma oportunidade para preparar o luto, construir mentalmente uma Liga sem a presença do jogador que pautou tudo aquilo que aprendemos a considerar como eficiente e inteligente numa quadra. Os fãs precisavam de uma oportunidade para admirá-lo a plenos pulmões, de remediar os erros de julgamento aos quais o submeteram no passado. Eu precisava celebrá-lo como forma de lhe pedir desculpas.

Quando mergulhei a fundo no basquete, a NBA era uma Liga recheada de grandes estrelas e grandes personalidades. Em todo meu deslumbramento adolescente, eu vibrava com as enterradas, os dribles e as demais jogadas de efeito. Ia ao delírio com os duelos individuais, com as finalizações que deixavam o adversário inerte no chão. Conforme minha empolgação com o basquete aumentava e mais apaixonado pelo esporte eu ficava, mais me identificava com os jogadores que demonstravam em quadra a mesma paixão que eu sentia. Quando Tim Duncan começou a despontar na NBA, todo meu foco estava em Kevin Garnett, um jogador que gritava, urrava, se jogava no chão e enterrava com agressividade. Seu domínio físico e suas emoções à flor da pele representavam para mim a sensação de ser arrebatado pelo amor ao basquete. Enquanto isso, Tim Duncan estava sempre lá com a mesma cara, uma ausência absoluta de expressões faciais que pareciam ter vindo de um acidente com Botox ou um tédio irremediável com a existência humana. Ao invés de incríveis jogadas de efeito e gritos delas resultantes, Tim Duncan me oferecia arremessos burocráticos usando a tabela e uma indiferença inabalável ao resultado desses arremessos. Quando sua breve rivalidade com o Phoenix Suns de Mike D’Antoni e Steve Nash começou, amaldiçoei Duncan com toda minha força por seu estilo robótico e mecânico naufragar constantemente o time que representava a criatividade, a velocidade e as jogadas de efeito. Não era uma raiva real por Tim Duncan, mas um descontentamento por suas vitórias serem fruto de um estilo desinteressante, pouco memorável, nada palatável para o meu paladar infantil.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”O resumo de Garnett e Duncan: enquanto um grita e tira roupas, o outro faz cara de pôquer”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/07/Garnett-e-Duncan.jpg[/image]

Amadureci como pessoa enquanto amadurecia também como fã da NBA. Aos poucos a gritaria, as enterradas e o trash talk começaram a se mostrar sem substância, mera virtuose. O jogo invisível de Tim Duncan – que enchia as tabelas estatísticas do boxscore mesmo que nada parecesse ter sido feito em quadra para os nossos olhos leigos – era, pelo contrário, a substância pura, a máxima eficiência com o mínimo possível de futilidades. A beleza de suas jogadas estava na economia de movimentos, no uso controlado da força, dos ângulos, dos espaços, dos vazios. Seu estilo minimalista era fruto de enorme dedicação, estudo e paixão – uma paixão menos explícita do que os berros ensandecidos de Kevin Garnett, mas necessária para que seja possível dedicar-se por dezenove temporadas aos mais mínimos detalhes de movimentos considerados banais no basquete. O filósofo Hegel diz que aquilo que é mais conhecido é, justamente por isso, o menos conhecido – que as coisas que todo mundo acredita saber são exatamente aquelas que ninguém acredita valer a pena se dedicar a conhecer a fundo e, por isso, passam invisíveis pelos nossos olhos escondendo nossa ignorância. Oras, todo mundo sabe dar um passe picado, fazer uma bandeja e estabelecer um corta-luz, por isso queremos ver as enterradas, os dribles absurdos, o impossível. Mas Duncan foi aquele que se debruçou sobre o dado, sobre o banal: aquele que levou o passe picado, a bandeja e o corta-luz ao seu ápice. Duncan mostrou que amar os fundamentos do basquete é verdadeiramente amar o esporte, para além da dança vazia de significado dos dribles complexos que levam do nada a lugar algum.

Quanto mais o basquete se tornava um assunto complexo para mim, digno de estudo, escrita e dedicação, mais a simplicidade de Duncan se descascava como a verdadeira complexidade – aquela que, ao atingir seu ápice de detalhes, finalmente se resolve em aparente simplicidade para quem não acompanhou o processo. É aquilo que Hegel chama de “dialética”: um elemento que parece banal (“é apenas uma bandeja”, dirão) mas que é formado por tantos pequenos detalhes que apenas aquele que o destrincha com afinco é capaz de vê-lo como o que ele realmente é. Para todos os outros, que o taxam de “simples” ou “banal”, resta apenas o equívoco da ignorância, a cegueira para os detalhes que fazem o todo. Foi minha ignorância de jovem fã da NBA que me levou a ignorar os fundamentos que compunham o jogo de Duncan, a dedicação e paixão que ele punha na quadra, e como sua ausência de expressões era apenas a coroação de uma escolha minimalista, retirar tudo aquilo que é supérfluo, sem pompa, para encontrar apenas os detalhes que compõe a mais pura simplicidade e eficiência.

E foi assim, sem o tour, sem a despedida cheia de pompa, sem os 60 pontos que não mudariam o rumo do campeonato, que Tim Duncan deixou o basquete. É claro que sabíamos que sua aposentadoria iria ocorrer uma hora, especialmente com seus minutos diminuindo a cada temporada e seu papel na equipe sendo substituído pelos novos jogadores no elenco. De invisível em quadra, a pedra essencial disposta a passar desapercebida para todos os olhares leigos, Duncan passou a ser invisível em quadra por sequer estar nela, resultado de uma equipe que, assim como Duncan, preza pela eficiência e não tem tempo ou espaço para ritos sentimentais desnecessários. Se o melhor é que Duncan sente no banco, assim será – e se o melhor é que ele se aposente, basta que uma breve nota oficial encerre seus vínculos com a NBA. A paixão e a dedicação pelo basquete são de tal tamanho que os indivíduos às vezes somem por trás delas, servindo apenas como canal para que vejamos o melhor que o esporte pode nos oferecer, a execução dos fundamentos e seus detalhes levados à perfeição. Fica o esporte, o apreço pelos detalhes, a dedicação às estatísticas que tanto ajudaram a ver que aquilo que estava ocorrendo de maneira pouco vistosa em quadra era de uma eficiência incomparável, mas vai-se o jogador que serviu de canal para que pudéssemos ver tudo isso.

Perdi tempo demais não admirando Tim Duncan ao longo de sua carreira porque eu não era capaz de entender o que estava acontecendo em cada bandeja, em cada passe e em cada rebote; porque eu não conseguia entender que analisar o fundamental a fundo é tão ou mais revolucionário do que apressar-se na invenção do novo; porque eu não conseguia ver o basquete para além da face – tanto da face do esporte e a plasticidade de suas jogadas, quanto da face de Tim Duncan, espelho mais do basquete do que de si próprio. Perdi tempo demais lamentando as derrotas do Suns ao invés de aplaudir as vitórias metódicas do San Antonio Spurs, o sucesso do seu modelo e o que ele representava para o esporte. Talvez uma temporada a mais fosse o suficiente para que eu cuspisse uma dúzia de posts no Bola Presa para tentar me redimir, levantando cada recorde, cada marca, cada título conquistado por Tim Duncan ao longo de um ano inteiro de despedidas. Mas assim como o estilo de Tim Duncan passou invisível por tantos, ficando longe de receber a admiração devida, assim se foi o próprio Duncan, aposentado antes de que pudéssemos lhe dar uma última rodada de aplausos. É por isso que hoje não lembrarei dos recordes, das marcas e dos títulos, lembrarei apenas da necessidade de darmos atenção às pequenas coisas, aos pequenos detalhes, a tudo aquilo que por nos ser evidente não nos chama atenção. Duncan sempre foi uma estrela evidente e talvez justamente por isso tenhamos o negligenciado, da mesma maneira como negligenciamos uma simples bandeja. Olhemos para o evidente antes que ele parta, antes que ele se aposente, antes que seja tarde demais.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

Como funcionam as assinaturas do Bola Presa?

Como são os planos?

São dois tipos de planos MENSAIS para você assinar o Bola Presa:

R$ 14

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

R$ 20

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Como funciona o pagamento?

As assinaturas são feitas no Sparkle, da Hotmart, e todo o conteúdo fica disponível imediatamente lá mesmo na plataforma.