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O Chaves, aquele do SBT, sem querer querendo nos apresenta a uma questão filosófica quando resolve vender refrescos na rua. Oferece aos seus clientes sempre três sucos diferentes: groselha, limão e tamarindo. Mas quando o Seu Madruga escolhe o suco de limão, Chaves faz uma pergunta genial:
“O que parece limão, o que é de limão, ou o que tem sabor de limão?”
A dúvida nos apresenta a diferença entre aparência e essência, e agora você já pode dizer que aprendeu Filosofia com o Chaves. Definimos as coisas pelo que elas parecem ser ou pelo que elas de fato são? E como podemos saber se uma coisa é algo que não parece ser?
Na NBA, isso se aplica bastante às posições dos jogadores. Por exemplo, o Chris Bosh sempre jogou de pivô durante toda sua carreira no Toronto Raptors, então ele sempre pareceu um pivô. No entanto, sempre fomos capazes de olhar para ele e, como se sua essência nos aparecesse revelada, saber claramente que ele não era pivô coisa nenhuma, era apenas um ala de força improvisado.
O Amar’e Stoudemire é um caso mais complicado. Todos sabemos que, em essência, ele é um ala de força. Mas após jogar toda a carreira no Suns como pivô, e ter um sucesso fantástico na posição contra outros pivôs, não deveríamos passar a considerá-lo um pivô legítimo? O próprio Amar’e se desesperava com a possibilidade de ser considerado um pivô e o técnico do Suns, Alvin Gentry, chegava a escalar o Channing Frye como pivô apenas para acalmar os ânimos, porque na prática o Amar’e ficava embaixo da cesta e o Frye nunca se atrevia a pisar no garrafão. E agora que o Amar’e está no Knicks, como devemos considerar sua posição? Pior: qual devemos considerar sua posição natural?
Essas questões me atingiram no exato momento em que LeBron James deu 14 assistências na derrota para o Jazz e a transmissão gringa afirmou que ele havia quebrado o recorde de assistências para um ala jogando pelo Heat. Um ala? Sim, porque todos nós sabemos que o LeBron James é, em sua essência, um ala. E esse conhecimento está impedindo muita gente esperta de perceber que LeBron é, desde que chegou a Miami, o armador principal da equipe.
Não se deixe enganar pelo boxscore, que escala LeBron como ala (SF) e Carlos Arroyo como armador principal (PG). O Arroyo só está lá porque o Heat tem uma falta brutal de bons arremessadores, não é nunca ele o responsável por armar as jogadas. É LeBron quem traz a bola para o ataque, quem chama a jogada e quem a faz acontecer. Quando está no banco, a função passa para Dwyane Wade. Arroyo só é o armador em uma ou outra posse de bola, ou em emergência caso LeBron e Wade não estejam em quadra (embora eu tenha visto até o Eddie House armando mais do que ele). LeBron James joga de armador em tempo integral, mais até do que em seu ano de novato com o Cavs, em que tinha essa função. É uma volta aos seus tempos de colegial, em que atuava como armador.
É estranho ver tanta gente dizer que falta ao Heat um armador, alguém para iniciar as jogadas, porque o Arroyo fede. De fato, o Arroyo fede, quem sou eu para negar. Mas o problema é outro: quando LeBron está armando o jogo e atraindo a marcação, sobra muito espaço no perímetro. Como Wade e LeBron são conhecidos pelas infiltrações e Bosh está mais perto do aro, as defesas estão se focando no garrafão. Wade é então obrigado a usar o espaço livre na linha de três pontos, e quando a marcação adversária corre para ele, é LeBron quem fica livre para o arremesso de três. Para os adversários tá ótimo, porque nenhum dos dois é um grande arremessador – aliás, o Wade não dava um arremesso de três sequer uns dois anos atrás, e o LeBron também começou a explorar mais o arremesso faz pouco tempo, desde que jogou com a seleção americana.
É por isso que o Heat precisa ter na escalação o Eddie House, o Carlos Arroyo, o James Jones. Os arremessadores ficam constantemente livres e a equipe de Miami precisa usar as bolas de três. Mike Miller, que deve ser o melhor arremessador do Heat, só deve voltar no final de dezembro ou começo de janeiro, então até lá o cargo de melhor arremessador vai para um jogador inusitado: Udonis Haslem.
O Haslem não arremessa de três, é verdade, mas seu arremesso da cabeça do garrafão e de dois passos à frente da zona morta é simplesmente mortal. Quando as defesas adversárias estão lá se amontoando no garrafão, o único arremesso confiável do elenco inteiro é do Haslem, e LeBron tem constantemente achado o companheiro livre. Só é uma droga que quando você precisa muito de uma bola de segurança ou arremesso decisivo, tem que passar para o Haslem ou para o Eddie House na linha de três. Bizarramente, é melhor do que deixar Wade ou LeBron arremessarem.
O Heat não precisa de um armador. Apesar de acharmos que LeBron é essencialmente um ala, ele é e sempre foi um armador – mas com tamanho para tapar o buraco na ala, e até no garrafão, de elencos menores. Pode não parecer de limão, e a maioria acha que ele não é de limão, mas basta ver um jogo para perceber que ele tem sabor de limão. O babaca que afirmou que o LeBron bateu o recorde de assistências de um ala tem cocô na cabeça. Por isso, o que o Heat precisa mesmo é de arremessadores que, preferencialmente, não comprometam na defesa como Arroyo, Eddie House e – futuramente – Mike Miller comprometem.
A defesa do Heat é a maior decepção desde a Playboy 3D da Larissa Riquelme (que apenas me lembrou aquelas revistas 3D com dinossauros da minha infância). Quando ela funciona, gera contra-ataques mortais e o Heat parece imbatível, mas a defesa só é realmente sufocante contra os times mais fracos. Contra equipes com garrafões fortes, a defesa do Heat não consegue acompanhar, não sabe quando dobrar, erra as coberturas de marcação, não sabe rodar atrás do arremessador livre e – o que é pior ainda – começa a se desesperar e tentar roubar bolas para iniciar o contra-ataque. Contra o Celtics, a frustração com o garrafão verde era tanta que todo mundo do Heat tentava interceptar os passes, não conseguia, e aí o adversário já estava com o caminho livre para a cesta. É o que os gringos chamam de “gamble”, ou “aposta”: se você intercepta o passe tem um contra-ataque mortal nas mãos, mas se não intercepta então você está batido na jogada e o cara que você deveria estar marcando é que tem uma cesta fácil. Nenhum time que se presa permite esse tipo de coisa e o Heat faz isso o tempo inteiro porque estão desesperados com a desorganização defensiva e com a falta de tamanho no garrafão. O Celtics, por exemplo, é um time fantástico e o ataque funciona cada vez melhor nas mãos do Rajon Rondo, mas a defesa do Heat fez com que eles parecessem o melhor ataque da NBA, coisa que eles estão longe de ser. Fora que contra o Jazz eles fizeram o limitado Paul Millsap ter uma partida de Karl Malone (tirando as bolas de três pontos, que foram simplesmente uma falha na Matrix). Essa defesa ainda vai se arrumar com o tempo, mas quanto mais tempo levar para isso, mais o time vai ficar com a água batendo na bunda e passará a se desesperar mais e mais, perdendo mais jogos. É capaz que isso vire uma baita bola de neve.
O ridículo é que todo mundo imaginava um ataque demorando para se encontrar mas uma defesa fantástica, nos moldes do Celtics. Todo o esforço nas férias foi para que a defesa do Heat ganhasse jogos sozinha. Realmente o ataque vai levar um tempo para funcionar e a falta de arremessadores sólidos vai exigir uma ou outra gambiarra, mas a defesa é que tem perdido jogos para eles. Pra mim, é uma decepção tão grande que até esconde um pouco a decepção que é o Chris Bosh.
Voltando ao suco de limão do Chaves, o Bosh é um ala de força em essência que rendia bem como pivô mas que sempre soubemos que estava jogando ali improvisado, contra a própria vontade. Mas a surpresa é que Bosh rende muito mais como pivô do que jamais renderá como ala. Defendendo mais longe da cesta, Bosh não pode utilizar seu bom tempo de bola nos tocos, não usa sua velocidade para cobrir os dois lados do garrafão, e sofre ainda mais com o contato físico dos jogadores que estão infiltrando rumo à cesta. No ataque, seu jogo de pernas perde valor quando ele não está próximo à cesta porque está sendo marcado por jogadores mais leves e rápidos e ele acaba utilizando demais o seu arremesso – pelo qual ele é apaixonado, e que é bem razoável, mas que não se compara com seus movimentos debaixo do aro. Acho que no caso do Bosh, todos nós (e até mesmo ele próprio) confundiram imagem e essência. O Bosh não parece ser pivô, é magro demais, rápido demais. Mas é como pivô que essas características tornam-se qualidades. Bosh não parece ser de limão, mas é de limão. Se o Heat quer estabelecer um jogo legítimo de garrafão, o primeiro passo é cortar o chororô do Bosh e colocá-lo como pivô imediatamente. Udonis Haslem, que merece ser titular, agradece.