Em 22 jogos na temporada até aqui, o Houston Rockets converteu 307 bolas de três pontos, recorde da história da NBA em arremessos do perímetro convertidos em tão pouco tempo. Nesse processo, chegou a arremessar 50 bolas de três pontos numa partida contra o Kings (acertando 21 delas) para estabelecer o novo recorde de bolas de três pontos tentadas numa partida. Também quebrou o recorde da NBA com 17 jogos consecutivos com ao menos 10 bolas de três pontos convertidas por partida. Eric Gordon, lentamente definhando em sua passagem pelo Pelicans, converteu 4 ou mais bolas de três pontos nos últimos 7 jogos pelo Rockets, número recorde para a franquia. Quando vemos esses números se aproximando no horizonte, atravessando a muralha, invadindo os vilarejos, sabemos que só podem significar uma coisa: Mike D’Antoni está chegando. Pensamos que ele estivesse há muito perdido, que ele não passasse de uma lenda antiga de tempos mais ingênuos. Ignoramos os sinais, ficamos confortáveis demais. Deixamos que ele se juntasse a James Harden e Daryl Morey, agora já é tarde. O Rockets está em quarto lugar no Oeste e melhorando a cada dia. Foi contra D’Antoni que o Warriors teve sua única derrota nos últimos 17 jogos, um embate de duas prorrogações em que o Rockets mostrou que o perigo é real. Como foi que não percebemos essa ameaça chegando?
A queda de Mike D’Antoni ao terreno da piada e do ostracismo é uma das histórias mais estranhas do passado recente da NBA. No começo dos anos 2000, seu Phoenix Suns era modelo de eficiência ofensiva, de criatividade e de inovação. Os técnicos adversários diziam que o Suns era um dos times que mais exigiam mudanças táticas para se enfrentar, graças a um esquema que punia ferozmente os erros do oponente e criava um ambiente de pressão constante que induzia que esses erros acontecessem. Tentando terminar a maior quantidade possível de jogadas dentro dos primeiros 7 segundos do relógio de arremessos, as defesas adversárias precisam estar imediatamente prontas para contestar qualquer finalização logo depois de atacarem, o que cria um clima de paranoia em que não há tempo para respirar, se organizar ou comemorar. Além disso, esse ritmo frenético é uma BILADA, CINO, porque incentiva os adversários a também tentarem acelerar o jogo e atacarem mais rapidamente, o que acaba abrindo ainda mais o jogo e beneficia o esquema tático melhor montado para se aproveitar dessa correria – no caso, sempre o Suns. A NBA se apaixonou pelo esquema tático, os jogadores desejavam jogar para D’Antoni, vários se apaixonaram pelo técnico em sua passagem pela seleção americana, Phoenix virou uma cidade que todos os jogadores eram obrigados a considerar na hora de assinar novos contratos, os torcedores se encantaram com a equipe numa época em que as defesas eram dominantes e até a própria NBA se beneficiou do aumento de popularidade que o Suns trouxe ao esporte como um todo num momento em que a audiência da Liga não estava indo muito bem. A única ressalva a essa história de amor entre D’Antoni e o basquete foi que o Suns foi constantemente eliminado pelo San Antonio Spurs nos Playoffs, um time que sabia não cair na armadilha, impunha um ritmo mais lento de jogo e explorava as limitações defensivas do adversário. Depois do fracasso eterno na pós-temporada, a saída de D’Antoni do Suns ganhou uma narrativa muito específica: “o fim de uma era” com a determinação CIENTÍFICA de que um basquete de “correria” nunca seria capaz de vencer as defesas verdadeiramente organizadas. Os resultados tornaram D’Antoni uma nota de rodapé da história, uma atração de circo incapaz de competir com os times “de verdade”, com os times “sérios”, com o San Antonio Spurs.
O problema dessa leitura é que aquele San Antonio Spurs dos anos 2000 era um eclipse, um fenômeno raro da natureza, um modelo impecável com todas as peças adequadas para ser executado à perfeição. É difícil imaginar qualquer equipe da história da NBA que pudesse bater de frente com eles, de modo que o simples fato de que o Suns levou essa equipe ao limite – perdendo partidas em arremessos decisivos, em Jogos 7, com Steve Nash fora da quadra porque ele não conseguia parar de SANGRAR, etc – já deveria mostrar quão poderoso era o modelo proposto por D’Antoni. O técnico até teve outras oportunidades desde então, mas a narrativa já era tão ruim contra ele, com tão pouca gente levando seu projeto realmente a sério, que as oportunidades que teve foram muito distantes das condições ideias que encontrou em Phoenix. Tanto em New York quando em Los Angeles, D’Antoni sofreu resistência por parte de dirigentes e jogadores, gente que não acreditava no sistema, gente que queria abordagens conservadoras, defesas fortes e ataques no mano-a-mano. D’Antoni tentou se adequar, mudar um pouco o estilo, acolher as diferentes opiniões presentes nas franquias, mas como assumiu depois, não há sucesso possível quando se usa um esquema tático “pela metade”: ou acredita-se numa visão de basquete que é levada até o fim, ou é melhor escolher um caminho completamente diferente. É o famoso “pisou na merda, abra os dedos”. A falta de sucesso no Knicks e no Lakers cuidaram de tirar D’Antoni por completo da lista de possíveis técnicos de qualquer equipe da NBA.
Ainda assim aquele Suns deixou frutos internos, abrindo um campo maior de possibilidades para técnicos, assistentes e dirigentes ao redor da Liga. Daryl Morey, general manager do Houston Rockets, passou a dedicar-se a análises estatísticas avançadas inspirado na eficiência de modelos pouco tradicionais como o Suns de D’Antoni. Sua conferência anual de análise científica de dados esportivos passou a reunir cada vez mais membros da NBA que percebiam que outros caminhos para a eficiência eram possíveis numa quadra de basquete, sempre amparados pelos números. Essa “revolução estatística” resgatou o basquete de ritmo acelerado, as bolas de três pontos e o basquete ultra-coletivo de D’Antoni nos últimos anos, mas não foi suficiente para resgatar a imagem destroçada do técnico. Contra ele, as duras críticas inevitáveis contra quem faz algo antes do seu tempo, o peso cruel da ausência de títulos e o humor-de-internet que muitas vezes torna algo tão ridículo que torna-se impossível encontrar qualquer redenção.
Tentando há quase uma década montar times inteiramente focados em bolas de três pontos, infiltrações e lances livres – e tendo no processo forçado para fora da zona de conforto técnicos tradicionais, conservadores e focados integralmente no jogo de garrafão – Daryl Morey finalmente conseguiu carta-branca para colocar Mike D’Antoni, seu amigo pessoal, nas rédeas do projeto. O engraçado dessa aposta é que se nos anos 2000 a abordagem de D’Antoni era completamente inesperada e parecia impossível copiar seu esquema tático, agora tudo que ele oferece já é razoavelmente banal, testado por dezenas de franquias em dezenas de graus distintos de intensidade. Precisando se destacar, teria o Houston Rockets apostado em mais do mesmo, num visionário desnecessário depois que sua loucura virou – através de planilhas e tabelas – tendência geral? Seria ele incapaz de adaptar seu esquema às peças disponíveis, ainda mais porque James Harden sempre foi um jogador de jogadas individuais?
Agora estabelecido como o point guard da equipe, Harden é o primeiro a defender seu novo técnico. As experimentações e as inovações na movimentação ofensiva não param de acontecer, mas todas elas passam primeiro por James Harden, tentando adequá-las a seu estilo de jogo e a suas dificuldades reais em quadra. Trata-se da junção de alguém que possui carta branca para levar seu modelo ao limite, mas com a percepção de que seu modelo depende das peças envolvidas. É por isso que mesmo tentando jogar de maneira mais acelerada possível, o Rockets é apenas o décimo time em termos de ritmo de jogo, numa lista encabeçada por Suns, Nets, Warriors, Thunder e Lakers. James Harden é um jogador de ritmo mais lento do que Steve Nash, por exemplo, gosta de caminhar em direção ao ataque antes de chamar as jogadas, ler a quadra e recuperar o fôlego. Com isso em mente, o Rockets passou a ser um dos times de ritmo mais intenso da NBA, mas só DEPOIS QUE A BOLA PASSA A METADE DA QUADRA. Antes disso Harden pode trazer a bola lentamente e encontrar os mismatches, ver se os pivôs chegaram no ataque antes dos defensores e determinar se a melhor jogada para atacar em 7 segundos ou menos será um arremesso no mano-a-mano contra seu defensor ou se chamará alguma jogada.
Não há esquema ofensivo fluido e orgânico sem uma relação de confiança entre técnico e armador, em que o armador precisa determinar como bem entender o ritmo do jogo e as movimentações, e D’Antoni conseguiu estabelecer essa confiança e esse diálogo com seu armador principal. Curiosamente, quando Harden sai de quadra e Patrick Beverley assume a armação, o Rockets passa a ser um time de contra-ataque puro, correndo para o ataque sem nenhum tipo de restrição, sinal de que D’Antoni continua encontrando outras possibilidades, outras abordagens e sabe adequá-las aos seus jogadores. O que não faz sentido é pedir que ele encontre possibilidades que estejam FORA de sua maneira de entender o basquete, que sejam distintas daquilo que ele considera eficiente e produtivo. Um bom técnico adapta sua visão aos seus jogadores, mas não adapta sua visão a uma outra visão. É uma questão de autoria, de entendimento, e se a visão específica de um técnico vai contra a visão da equipe ou da diretoria, então ele simplesmente não é o técnico correto para o trabalho.
D’Antoni disse que está tentando coisas que nunca conseguiu tentar numa quadra de basquete porque as pessoas ao seu redor não estavam prontas – porque havia medo de cobranças, porque os jogadores desconfiavam, porque aquilo nunca havia sido feito. Arremessar CINQUENTA BOLAS DE TRÊS NUM JOGO poderia parecer loucura, poderia render uma crise nos bastidores. Mas agora, o homem que quer tentar todas essas loucuras encontrou uma franquia que está disposta a topar esses experimentos, numa NBA que já está calejada de ver o Warriors jogar, e com jogadores, como James Harden, desesperados por um ambiente saudável e prazeroso após o desastre de vestiário na temporada passada. Parece que finalmente D’Antoni está no lugar certo na hora certa e, ainda que talvez esse Rockets não consiga conquistar nada de muito relevante, o técnico volta a ser considerado importante para o basquete atual simplesmente porque consegue criar ambientes criativos e estimulantes que levam estrelas tradicionalmente individualistas a se tornarem máquinas coletivas de pontuar. Com o sucesso momentâneo do Lakers nas mãos de Luke Walton, mais e mais franquias estão de olho na transformação psicológica que essa abordagem técnica pode trazer aos seus elencos. Estamos vendo a mudança de rendimento e de postura no Rockets e no Lakers e às vezes esquecemos que ambos estão apenas no começo de um processo. Cada vez mais o ataque do Rockets se torna uma máquina imprevisível, Harden está cada vez mais confortável em sua posição e os jogadores mais contentes com seu papel. A tendência é só melhorar – especialmente quando Jeff Bzdelik, responsável por simplificar a defesa e garantir que ninguém tenha que “improvisar” defensivamente, notoriamente a maior falha de Harden, tiver jogadores acostumados com seu modelo. É apenas questão de tempo para que melhores resultados venham e outros técnicos, crias diretas do que D’Antoni começou há quase 15 anos atrás, comecem a encontrar espaço em qualquer franquia que queira consolidar seus jovens elencos e criar ambientes saudáveis para seus jogadores.