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Meio que caiu no meu colo, muito em cima da hora, a chance de ir em uma clínica ministrada pelo Larry Brown no Clube Paulistano aqui em São Paulo. O Larry Brown, pra quem não lembra, é o único técnico campeão da NBA e da NCAA na história do basquete americano, tem entre seus times famosos o Indiana Pacers do fim dos anos 90, o Philadelphia 76ers de Allen Iverson que foi para a final de 2001 e o Detroit Pistons campeão da liga em 2004 em cima do Fab Four do Los Angeles Lakers. Já escrevemos sobre ele duas vezes, uma em 2008 e outra em 2010. Bom, o cara manja, tem história e a chance tava lá, eu fui.
O público-alvo do programa eram treinadores e eles estavam até que em peso por lá. Não sou grande conhecedor do meio basquetebolístico nacional, mas vi caras conhecidas e uniformes de pelo menos uns 6 ou 7 times da NBB, além de uma porrada de desconhecidos que se anunciavam como treinadores de categorias de base, deu pra encher uma arquibancada do ginásio. Querendo conhecer o seu público, em certo momento o Larry Brown perguntou “Quantos de vocês são técnicos de High School?” e o tradutor mandou “Quantos de vocês são técnicos de categorias de base?”, Coach Brown nunca vai saber que a relação escola-esporte não é nada como no país dele.
Nos dois dias de clínica, sábado e domingo, Larry Brown mostrou o que é ser um técnico old school dos Estados Unidos: Cobrou muito, com gritos, os jovens garotos-cobaia que mostravam seus exercícios, enfatizou o jogo de equipe, a defesa forte, os fundamentos e fez questão de deixar claras suas raízes no basquete, principalmente quando encerrou a clínica fazendo um breve discurso em que mostrou como estava a apenas algumas pessoas (entre seus técnicos e técnicos de seus técnicos) do próprio James Naismith, criador do jogo de basquete. Ele queria dizer que o que estava ensinando lá é do jeito que foi ensinado desde o princípio.
Mas nem precisava de tudo isso, dava pra ver como ele era da velha geração pelos seus exercícios. Nada de mirabolante, nada que usasse aparelhos modernos, trocentas pessoas ou movimentações revolucionárias, eram aquecimentos simples, movimentações de bola básicas e sistemas de ataque e defesa que vemos qualquer dia na televisão. Isso provocou algumas reações negativas da platéia, ouvi vários “Isso eu faço todo dia nos meus treinos”, mas o segredo estava nos detalhes. Larry Brown, chato, não deixava passar nada. Cobrava intensidade e velocidade dos movimentos (não o mais intenso possível e nem o mais rápido possível, tudo do jeito certo), o pé que começava os movimentos, a cabeça levantada, a altura dos passes, o movimento das mãos na hora de passe e bandeja, em que altura driblar a bola, se o drible deve ser ao lado do corpo ou na frente, etc, etc, etc. Um simples “oito”, aquele exercício em que três jogadores correm trocando passes, sem drible, até a cesta, era desculpa para milhares de pequenos comentários que nunca passariam pelas nossas cabeças.
Não quero ser preconceituoso com o basquete brasileiro, até aproveito pra divulgar aqui que tinha bastante gente lá e vários estavam até filmando e fazendo toneladas de anotações, mas não faltavam também bocejos e comentários como o que eu citei antes dizendo que ele não estava apresentando nada de novo. Não estava mesmo, mas estava apresentando o bem feito, o que é bem mais difícil. Afinal, quem de nós não morre um pouquinho por dentro sempre que vemos erros primários mesmo em jogos entre os maiores times e melhores jogadores aqui do Brasil? Não queremos admitir, é chato, mas somos ruins pra cacete nesse esporte que a gente tanto gosta.
Uma coisa que parece ter decepcionado parte da platéia e animado outra é que muitas vezes os comentários e exercícios mostrados pelo Larry Brown eram voltados para quem está ensinando crianças e adolescentes a jogar basquete, não para os profissionais. Uma vez perguntaram sobre pick-and-roll e a resposta dele foi “NUNCA usem pick-and-roll com os mais novos”, a dica era ensinar o básico, a jogar, passar, driblar, arremessar, defender e só depois, muito depois, complicar com o pick-and-roll. Ele também é cegamente contra o uso de defesas por zona nas categorias de base. Os jogadores, para ele, devem aprender os princípios de defesa individual, só marcar assim e, no futuro, aprender a zona, que é mais posicionamento do que a técnica de defender o seu homem. Ah, ele também disse algo que eu espero que todos os técnicos lá tenham anotado: não force os meninos novinhos a jogar em uma posição apenas. Todo mundo tem que fazer todos os exercícios em todas as funções e aprender a jogar nas cinco posições, quando forem mais velhos, com o físico e a altura mais definidos, aí sim vão se especializar em algo. Não precisamos de mais pivôs de 1,95m que só sabem jogar de 5 porque eram os mais altos da escola.
Na parte ofensiva os times do Larry Brown sempre foram muito simples, e tudo ficou bem claro depois de ouví-lo falar. Ele explicou que nas primeiras semanas de treino com qualquer equipe ele só treina defesa, defesa, mais defesa e rebote. Depois de um tempo um pouco de contra-ataque e só semanas mais tarde algumas movimentações ofensivas mais simples. Quando ele mostrou essas movimentações – simplíssimas e que os técnicos das categorias de base podem usar quando bem entenderem com qualquer pirralho – ele ia dizendo como as usava nos seus times da NBA! Apontava para um garoto e dizia “Essa a gente fazia em Philadelphia, esse é o Allen Iverson” e mostrava como isolar o segundo armador no lado da quadra. Os exemplos da NBA, aliás, deixavam tudo mais fácil de entender. Uma jogada fazia mais sentido se você tivesse um cara como o Tim Duncan na posição 4, ou a defesa do pick-and-roll muda se um dos envolvidos for um arremessador como o Dirk Nowitzki.
O Allen Iverson foi o jogador mais comentado do fim de semana. E nem é porque todo mundo queria saber dele, simplesmente o Larry Brown o citava a todo momento! O assunto poderia ser ataque, defesa, disciplina, futebol de botão, não importa, Iverson era o exemplo. Quando estava pregando a obediência às regras e horários disse que quando o ônibus de um time seu tem hora marcada, sai naquela hora e quem ficou pra trás não joga. Mas quando o Allen Iverson certa vez, em um jogo importante, se atrasou, ele mandou o motorista ir arrumar o motor, que ficou pronto justamente quando o AI entrou pela porta do automóvel.
O curioso é que ele falava de indisciplina com certa raiva, como se fosse um câncer para o time, ele é do tempo (que nunca acabou aqui no Brasil, especialmente no basquete) em que o técnico é um líder-general e os jogadores são soldados jovens, burros, submissos e sem vontade. O técnico fala, grita, dá ordens, broncas e o jogador deve fazer tudo em nome da equipe, é uma visão militar do esporte que, confesso, me perturba um pouco. Alguém já presenciou a cena de um técnico gritando com um jogador profissional? E não pela TV, mas ao vivo, vocês já viram um marmanjo de 30 anos levando um esporro humilhante só porque executou uma função de maneira inapropriada em um jogo? É uma cena bizarríssima, pelo menos pra mim. Não vejo razão alguma para um homem adulto gritar com outro homem adulto dessa forma, ainda mais em um contexto esportivo, mas vai saber, pode ser só porque eu não sou do meio. Bom, Larry Brown é desse tempo e dá esporros, mas quando conta de Allen Iverson é sempre com uma pitada de humor e nostalgia. Embora o Detoit Pistons tenha tido mais sucesso, a impressão que temos é que ele se orgulha mesmo daquele Sixers, de como fez aquele time limitado render muito, jogar como time unido e como domou o indomável Allen Iverson.
Um time que ele citou no máximo uma vez foi o seu último trabalho, o Charlotte Bobcats, mas estava implícito em diversas outras falas. Pra quem não lembra, há duas temporadas o Bobcats acabou com 44 vitórias, 7º lugar no Leste, primeiro playoff da história do clube e a melhor defesa, disparada, de toda a liga. Larry Brown disse incontáveis vezes que não importa o elenco que você tem e a incapacidade deles de marcar pontos, jogando com mais vontade e jogando bem na defesa (o que é possível, segundo ele, mesmo sem os melhores defensores individuais) é possível vencer qualquer um. Defesa foi a palavra mais falada do fim de semana, até quando estava ensinando movimentações de ataque ele terminava dizendo “treinar isso é também um bom jeito de treinar sua defesa”. Obsessivo.
Em um dos intervalos eu consegui chamar o Larry Brown de lado para uma conversa, disse que queria fazer uma entrevista rápida e ele topou com um sorriso no rosto. Eu estava animado e com umas trezentas perguntas pra fazer, mas não consegui fazer nem 10% delas. Primeiro porque o tempo era curto, depois porque fomos interrompidos um gazilhão de vezes por uma caralhada de gente querendo tirar fotos. Larry Brown, sempre sorrindo, aceitava todos os pedidos e eu até fui o fotógrafo algumas vezes. Quando finalmente começamos a conversar apareceu um cara nos interrompendo e dizendo que tinha morado na Philadelphia na época que ele treinava lá e que era uma honra conhecê-lo e blá blá blá. Ou seja, foi uma conversa curta e picotada, mas foi uma conversa com o Larry Brown.
Como o assunto anterior ao intervalo em que conversamos tinha sido a dobra defensiva (como fazer, onde fazer, em que situação) eu trouxe à tona aquele fatídico lance do jogo 5 da Final de 2005 quando o Pistons, em casa, perdeu para o Spurs com uma bola do Robert Horry depois que o Rasheed Wallace dobrou a marcação no Manu Ginóbili. É a última bola desse vídeo:
O Larry Brown riu quando mencionei esse lance e comentou com o seu pessoal, “Ah não, ele está me perguntando daquela bola de 2005”, ao que seu assistente respondeu “Aquilo não foi culpa nossa”. Disse que no tempo pedido logo antes da jogada tinha dito apenas que seus jogadores não dessem a chance da bola de três pontos e nem dobrassem a marcação de maneira alguma, depois até me falaram pelo Twitter que em um DVD do Spurs tem a cena dele dizendo isso. Rasheed Wallace simplesmente não obedeceu. Mas ele me explicou o motivo daquilo ter acontecido, disse que o Rasheed era o líder defensivo daquela equipe, que não parava de falar em uma posse de bola sequer comandando onde todo mundo deveria estar, avisando onde estavam os bloqueios, onde estava a ajuda, era uma matraca com total consciência do sistema defensivo do time. E completou falando que os jogadores tinham a liberdade de improvisar na defesa quando vissem algo diferente acontecendo, e foi o que o Rasheed viu e fez quando percebeu Ginóbili no canto da quadra. O Larry Brown até deixou claro que a dobra foi bem feita e o argentino teve que fazer um passe muito difícil, mas ei, é o Ginóbili, fazer coisas difíceis pra ele é mais fácil do que fazer o básico. Foi um erro que não foi dele, mas que ele parecia aceitar.
Logo depois conversamos sobre o seu trabalho no Charlotte Bobcats. Ele contou com certa alegria como os jogadores abraçaram a idéia de que poderiam vencer qualquer um mesmo tendo consciência de que, como elenco, não eram os melhores. Então eu perguntei da fama de alguns jogadores do time de serem difíceis de treinar, em especial o desobediente Stephen Jackson e o preguiçoso Boris Diaw. Sobre o francês ele disse na hora que isso é lenda, que Diaw é um dos melhores caras que ele já treinou, mas que Stephen Jackson, esse era um inferno mesmo. Brown me disse que no seu primeiro ano o time estava indo bem e o Jackson atuando muito bem dentro de quadra, então que fingiu não ver muitas bobagens no seu comportamento, mas que no segundo ano ele chegou para Michael Jordan e o resto da direção do time e disse que eles não iriam longe com aquele cara no elenco. “Então alguns meses depois eles não tinham mais o Ray Felton e o Tyson Chandler, mas o Stephen Jackson ficou lá. É por isso que eu não sou mais o técnico daquele time”.
Conversamos também sobre a clínica em si, sobre a motivação dele. Pela dedicação que ele demonstra não parece que faça isso só pelo dinheiro, ele realmente se dedica a ensinar tudo e não sossega até ver que tudo foi assimilado pelos jogadores e que os técnicos não têm mais perguntas. Ele também já tem dinheiro de sobra para o resto da vida, nem poderia ser isso também. E nem digo isso porque o coitado tá com idade avançada, mas seus contratos como treinador foram zilionários, o que teve com o Knicks logo depois que saiu do Pistons daria pra acabar com a fome na África e ainda criar um problema de obesidade no continente. Ele me disse então do prazer de ensinar, que gosta de basquete e quer que o jogo seja mais praticado ao redor do mundo e, mais do que isso, jogado do jeito certo. Larry Brown realmente acredita do fundo do coração dele que o seu jeito de ensinar é o melhor e quer compartilhar isso, é algo impressionante mesmo que você não compartilhe de tudo o que ele fala.
Eu perguntei para ele sobre o uso de estatísticas avançadas na NBA atualmente, ele disse que odeia, que é coisa criada por gente que nunca jogou ou treinou basquete e que não sabe o que se passa lá dentro, uma bobagem cara e desnecessária. Em alguns momentos ele também pareceu muito descrente de times muito velozes ou com ataques complexos cheios de invenções. O negócio do Larry Brown é defesa e simplicidade, é como ele aprendeu, como ele construiu sua carreira e como quer ensinar para o mundo todo. Old School, como disse antes.
Como fã de NBA eu não estou 100% com ele. Acho que o uso das estatísticas pode fazer muita diferença na hora de arrumar um time e que quando se tem os jogadores mais talentosos do planeta nas mãos, até deve-se tentar ser inventivo, criativo e tentar coisas novas para tirar o máximo deles. Mas entendo o lado dele também, na hora de espalhar o basquete pelo mundo você deve ensinar o pessoal a como bater a bola certo e não dar um passe no pé, depois de décadas aprendendo isso é que você começa a pensar em um time jogando no run-and-gun. É quando os times já sabem jogar e estão nivelados num nível alto e em um campeonato estável que as estatísticas podem fazer mais diferença, as duas coisas, de certa forma, podem se completar. Ele não acha isso, mas concordamos pelo menos que o seu jeito clássico de ensinar é bastante indicado para qualquer tipo de iniciante, seja um garoto querendo evoluir como jogador ou um país precisando de uma leva desses garotos.
Pessoalmente eu não consegui tudo o que eu queria. Ainda poderia conversar muito mais sobre aquele Pistons de 2004 e 2005, sobre o que ele achava do Raymond Felton como armador principal e porque brigava tanto com o DJ Augustin, também se ele vai mesmo ser assistente do Celtics no ano que vem e, claro, sobre o Iverson. Mas foi corrido, não dava tempo e, no fundo, o negócio lá era para os técnicos. Espero que eles tenham feito mais do que tirar fotos de tiete e aproveitado todas as dicas dadas para a preparação de novos jogadores, por incrível que pareça os conselhos de um cara tão conservador da velhíssima guarda americana podem ser úteis para revitalizar o esporte por aqui.