>O caminho, não o fim

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Da esquerda para a direita: fede, fede, fede,
fede, fede, até que sabe jogar, e o Kobe

Pra mim, ter um anel de campeão não é critério pra porcaria nenhuma. Funciona como dizer que ganhar um Oscar é um modo de definir quem são os melhores atores do planeta, o que é ridículo. Basta forçar um pouco a memória e lembraremos que Darko Milicic foi o primeiro da sua turma (os draftados em 2003, que incluem LeBron, Carmelo e o Wade) a ganhar um anel. Quando a gente pensa que a Reese Witherspoon ganhou um Oscar, dá pra perceber que é mais ou menos a mesma coisa.

Não me entendam errado, não é como se ganhar um campeonato caísse mal para qualquer um, como é o caso do prêmio de melhor técnico do ano, por exemplo – que é praticamente um critério para saber quais são os piores da categoria (nos últimos três anos, o prêmio foi dado para Sam Mitchell e para Mike Brown, facilmente dois dos piores técnicos da atualidade, sem falar que dos últimos seis ganhadores, quatro perderam o emprego e o quinto deve vir em breve, já que o Mike Brown deve ir em breve para o olho da rua). Ser campeão faz bem para o currículo, para o ego e pega bem entre as mulheres, aumenta o salário e por vezes até o tamanho do pênis, mas não dá pra afirmar que é um divisor entre os jogadores grandes e os medianos, um critério para afirmar quem é realmente importante para a história.

Embora tenha uma atitude bastante contraditória a respeito, Kobe Bryant por vezes parece entender isso em algum grau. Para conseguir os seis anéis de campeão que Michael Jordan ostenta, Kobe poderia passar a vida inteira ao lado de Shaquille O’Neal, com quem ganhou três campeonatos. Não seria difícil imaginar um Los Angeles Lakers em que Kobe aceitasse ganhar apenas comida e o dinheiro do busão de modo a manter Shaq, um forte elenco de apoio, e superar o número de anéis de Jordan sem grandes dificuldades. Mas, ao lado do pivô, Kobe sabia que teria seus méritos questionados, sua importância diminuída e sua participação podada. Mais importante do que ganhar o título da NBA ano após ano, para Kobe o essencial era provar até onde ele poderia chegar sozinho, com suas próprias mãos. Sua jornada para tornar-se o melhor de todos os tempos, em sua cabeça, deveria exigir total controle sobre um time limitado e incapaz de dominar o esporte como fazia com Shaquille O’Neal e aquele time com complexo de Schumacher.

Mas sem Shaq aquele time simplesmente fedia. Em 2004, no que podemos dominar o primeiro ano do Kobe em carreira solo (Bochecha sem Claudinho), a equipe sequer foi para os playoffs. Mudanças foram feitas e Caron Butler, que chuta traseiros, foi trocado pelo Kwame Brown, que é uma afronta à raça humana. Andrew Bynum foi draftado sem sequer saber que meninos têm piupiu e meninas têm vagina. E foi então que Kobe Bryant pediu para ser trocado e seu plano de fazer tudo sozinho foi por água abaixo.

Se por um lado há uma intensão clara em tornar-se um jogador melhor, mais completo, mais capaz (algo que só vem com o peso da pressão e a responsabilidade de liderar um time), por outro lado Kobe é um maníaco pela vitória. Sua relação com o esporte parece pautada por esses dois sentimentos e um é obrigado a dar espaço para o outro constantemente, gerando constantes paradoxos. Ser o melhor da história por vezes parece exigir que ele esteja num time ruim, mas por vezes parece exigir anéis que só podem ser alcançados com elencos de primeira. Kobe não jogaria no Celtics ao lado de Garnett e Paul Pierce, por exemplo, sob o risco de diluir demais sua própria importância em quadra e tolher seu amadurecimento pessoal. No entanto, também não toparia jogar pelo Clippers e arrancá-los do fundo do poço com um milagre que dificilmente viria (mesmo com Kobe, o time continuaria em cima de um cemitério indígena).

Esse confronto de necessidades coloca Kobe numa posição extremamente delicada, já que exige um conjunto muito específico de circunstâncias para que o rapaz fique feliz e talhe seu nome na história do jeito que ele quer. Em 2006, ao não ter sido trocado, Kobe deparou-se subitamente com um time que fedia terrivelmente no ano anterior mas que parecia mais maduro, mais competente e finalmente compreendia o que o técnico Phil Jackson estava querendo dizer. Ali estava a combinação perfeita: um time porcaria, quase de dar vergonha, mas que conseguia fazer o trabalho em quadra e ganhar partidas. Cabia ao Kobe apenas definir qual seria o seu papel, como ele queria definir a si mesmo no time e na história: se jogaria para os companheiros, transformando o time cocô em ouro, ou se jogaria em seu máximo para garantir ao time horrível a presença do melhor jogador do planeta. Eliminado nos playoffs contra o Suns em dois anos consecutivos, Kobe e o resto do time foram pouco a pouco tentando encontrar suas identidades, tentando fazer aquele casamento estranho funcionar. Na temporada 2007-08, mesmo antes da troca-comadre por Pau Gasol, o Lakers já estava no topo do Oeste. Kobe havia conseguido.

Grandes jogadores nunca ganharam um anel de campeão. Michael Jordan, por mais que muitos tentem negar, estava numa situação perfeita, com um elenco de apoio fantástico que casava com seu estilo de jogo e as orientações de um dos maiores técnicos de todos os tempos. Kevin Garnett passou a vida com elencos mequetrefes, técnicos picaretas e sem quaisquer oportunidades para sagrar-se vencedor. É necessário, sempre, questionar as condições que cercam um jogador antes de constatar sua importância. O anel de campeão no dedo do Garnett arrepia, coroa uma carreira, e é uma história bonita para contar para os filhos (fica até mais bonita quando a gente pensa que o técnico era o Doc Rivers, que fede muito, e mesmo assim o time conseguia jogar defensivamente). Mas esse campeonato não pode, de modo algum, ofuscar tudo que o Garnett fez antes, sem as condições propícias para chegar no topo.

É por isso que, quando aquele Lakers sem Gasol começou a chutar traseiros, eu já me recostava no sofá e sorria feliz por estar presenciando história sendo feita. Não me importava se o Kobe ganharia anéis de campeão ou não, o fato dele ter construído circunstâncias desfavoráveis propositalmente de modo a superá-las mostrava que o caminho era mais importante do que o objetivo final. É claro que o caminho não faz sentido sem que exista um objetivo final, e o anel de campeão sempre foi claramente o motivo pelo qual o Kobe acorda todas as manhãs e escova os dentes, mas sua preocupação com o modo com que esse objetivo deveria ser alcançado coloca o próprio objetivo em segundo plano. Levar aquele time (que fedia, como fedia) para as Finais seria espetacular de um modo que derrota alguma poderia apagar.

Em geral, torcedores não conseguem compreender isso muito bem. Vivemos numa cultura completamente bitolada nos fins e nunca no meio pelo qual os fins são atingidos (é uma cultura como essa que permite e louva a existência do Bruce Bowen, por exemplo). LeBron James carregou nas costas, de forma inacreditável, um Cavs horripilante rumo a uma Final de NBA. O Spurs chutou o traseiro da equipe e deu vergonha alheia, mas era o modo como LeBron havia chegado ali que importava realmente, o objetivo final de ser campeão era apenas uma desculpa, um motivo para que o caminho ocorresse. A história pode lembrar apenas do Spurs campeão, porque ela é cruel com os perdedores, mas quem ama o basquete sabe o que o LeBron fez contra o Pistons para chegar ali. Sabe que o time era pior do que programa do Gilberto Barros, e que esperar um anel do Cavs seria mais cruel do que o Silvio Santos com a Maísa.

Confesso que a chegada de Pau Gasol tirou um pouco da graça daquele Los Angeles Lakers risível que mesmo assim caminhava sobre as próprias pernas. Mas Gasol não desequilibra jogos, casou-se bem com o Lakers porque é inteligente, e evoluiu seu jogo junto com todos os outros jogadores da equipe. Frágil, limitada (opa, melhor não usar essa palavra, digamos apenas “inconsistente”), a equipe do Lakers mostrou-se capaz de superar os próprios limites quando realmente importava. E Kobe não apenas tem um anel (que poderia não ter vindo e não mudaria nada), tem também uma história de superação e amadurecimento que é apaixonante. Criticado por arremessar demais, por arremessar de menos, por chamar muito a responsabilidade, por fugir da responsabilidade, por desfazer um time bom, por reclamar de um time ruim, Kobe passou por tudo e mostrou sua total capacidade de adaptação.

Evoluir não é apenas fazer melhor, é também descobrir como reagimos em situações que desconhecemos, é saber como somos frente a adversidades que poderíamos ter evitado. Há muito de punição e sofrimento naquilo que compreendemos como jornadas de auto-conhecimento, do jejum cristão no deserto à privação material budista, e Kobe puniu-se com um time ruim e tentou superá-lo (não foi, também, o que Jordan fez ao tentar retornar à NBA pelo Washington Wizards?). Kobe fraquejou (“me troquem!”), errou, criticou e foi totalmente bitolado, mas saiu uma pessoa diferente dentro de quadra e, tenho certeza, fora dela também. O que vemos agora é um Kobe mais espontâneo, seguro de si mesmo, capaz de falar em voz alta, ter amigos, lidar com pessoas, liderar pelo exemplo. Não muitos anos atrás ele era solitário, fechado, antipático e incapaz de trabalhar em equipe. Agora ele consegue agradecer o Odom olhos-nos-olhos, motivar sua equipe, sorrir, ser acessível e até ir na televisão fazer piadinhas sobre a cara-de-Kobe. Consegue fazer o que é necessário para seu time e, quem diria, ganhou seu quarto anel de campeão, dessa vez sem Shaquille O’Neal. Criou suas próprias circunstâncias (fora o Gasol, que caiu do céu) e conseguiu as duas coisas: a jornada de amadurecimento, de evolução, de adversidade; e também o anel para a história, para aqueles que querem compará-lo ao Jordan utilizando números e bijouterias. O paradoxo está calado: Kobe conseguiu tudo. Abraçou o mundo.

Não alcançou isso com um time ruim demais e nem com um time bom demais (é como diz o filósofo, “não precisa ser muito bonita, e nem muito feia“), não foi nas costas do Gasol ou do Bynum ou do Ariza, mas também não foi apesar deles. Conseguiu as circunstâncias ideais para superar-se e alcançar o objetivo ao final. Mas eu realmente não poderia me lascar menos para esse título de campeão (estava muito mais interessado em ver o Magic ganhar porque sem o anel eles vão ser esquecidos em cinco minutos), foi o caminho que o Kobe percorreu desde 2004 que o coloca realmente entre os grandes. Sorte de quem assistiu de perto e consegue se despir de estatísticas e comparações desnecessárias por aí.

Para ser campeão de novo, o Lakers deveria renovar o contrato de Lamar Odom e Trevor Ariza, fundamentais nos playoffs, mas a tarefa não será nada fácil com o salário monstruoso que o Bynum ganha para cometer faltas a cada três segundos. Kobe pode optar por terminar seu contrato com o Lakers e assinar outro, ganhando menos grana. Não vejo o Kobe saindo da equipe, já que batalhou tanto para construir as condições para fazer as coisas funcionarem – e do seu jeito. Mas não sei até que ponto ele estará disposto a abrir mão de sua grana para manter a equipe intacta. De todo modo, outras dificuldades aparecerão, outros jogadores desaprenderão a jogar basquete (quem será o próximo Sasha Vujacic?), e não posso imaginar algo mais delicioso do que assistir ao Kobe criando modos de passar por cima disso. Mesmo que o resultado final não seja aquilo que as pessoas esperem, esse Lakers frágil escalando a NBA é uma das coisas mais legais que temos no basquete em muito tempo. A hora é de, mais do que de parabenizar, admirar. A cara-de-Kobe mostra foco no objetivo final, dedicação, exagero, cotovelada no Dwight Howard, e toda aquela nerdisse basquetebolística que no Kobe achamos até bonitinho. Mas o sorriso dele, sua relação com o resto da equipe, o amadurecimento do seu jogo, tudo isso mostra o caminho que ele percorreu. E esse Kobe, que vimos caminhar por tanto tempo, está aí para ser mesmo admirado, não importa quão birrento ou fã de LeBron ou Jordan você seja. O Kobe nos deu férias antecipadas da NBA, safado, se negando a perder mais jogos contra o Magic, mas a verdade é que ele merece. E nós, definitivamente, já vimos o suficiente.

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