O Houston Rockets atual é montado em cima de dois preceitos: o primeiro, estocar o máximo possível de talento, correndo atrás de qualquer estrela que fique minimamente disponível, sem medo de fazer trocas; o segundo, arremessar o máximo possível de bolas de 3 pontos. O problema é que nem sempre o primeiro preceito favorece o segundo. O Rockets fez questão de adicionar Dwight Howard em 2013, por exemplo, mesmo que ele não se encaixasse nos planos táticos da equipe, tudo com a alegação de que “talento era o mais importante, o resto fariam funcionar”. Dica: não funcionou. Na primeira temporada sem Dwight o Rockets venceu 55 partidas, a terceira melhor campanha da Liga. Antes disso, ainda com o pivô, foram apenas 41 vitórias e uma suada oitava colocação no Oeste.
Mas é claro que, seguindo os dois preceitos, o time de 55 vitórias da temporada passada não durou muito tempo. Patrick Beverley e Lou Williams, membros importantes do elenco, foram trocados por Chris Paul, prova inquestionável do conceito de estocar o máximo possível de talento quando algum jogador é colocado no mercado. Chris Paul é um dos maiores passadores da história da NBA e um dos grandes nomes da sua geração, de modo que o Rockets jamais seria capaz de resistir à oportunidade – mesmo que, em teoria, Chris Paul e James Harden parecessem excludentes, dois jogadores que demandam a bola e que não poderiam, em condições normais, co-existir na mesma quadra. “Talento é o que importa, a gente faz o resto funcionar”. Foi balbuciando essas palavras que o fantasma do Dwight Howard de vermelho puxou o pé de todos os torcedores do Rockets de noite, e nos ensinou que nenhum jogador é bom o suficiente para encaixar em qualquer esquema tático, em qualquer situação.
Por isso o experimento de colocar Chris Paul ao lado de James Harden era um dos grandes atrativos do primeiro dia da temporada, mas infelizmente Paul lesionou seu joelho no segundo tempo da partida inaugural contra o Golden State Warriors. Restou a James Harden voltar a assumir o controle irrestrito da equipe até Chris Paul voltar e o experimento ser restabelecido. O problema é que James Harden não assumiu apenas as rédeas da equipe, assumiu também a MELHOR CAMPANHA da Conferência Oeste até o momento, o recorde em andamento de bolas de três pontos convertidas por um time por partida, e alguns dos melhores números individuais de todos os tempos. Em menos de um mês o retorno de Chris Paul deixou de ser um experimento empolgante para se tornar uma AVENTURA com potencial para destruir uma das melhores fases da história da franquia. Como pedir para James Harden compartilhar a armação quando nenhum jogador jamais conseguiu o sucesso que ele alcançou nesse começo de temporada executando essa função?
Para termos uma ideia, James Harden finaliza nessa temporada – seja com um arremesso, seja com uma assistência – 35.8% das jogadas do Rockets, líder absoluto da NBA, à frente de Russell Westbrook, LeBron James ou Kyrie Irving. Mas o que mais impressiona é que nenhum jogador na história da NBA produziu tantos pontos por posse de bola ao participar tanto assim do ataque de uma equipe, o que significa que ele não apenas participa como nenhum outro – ele também é o mais eficiente de todos ao ter que carregar esse volume de trabalho. Harden também é o líder da NBA em porcentagem de cestas dos seus companheiros que vieram de passes seus, mostrando como o ataque inteiro da equipe sai de suas mãos. E mais: nenhum jogador que finaliza mais de 35% das jogadas de um time conseguiu sequer chegar perto do aproveitamento de Harden nos arremessos: 40% nas bolas de três pontos, 51% nas bolas de dois pontos e 86% nos lances livres. É um nível de eficiência em todos os quesitos que só costuma vir de jogadores que participam pouco, em momentos cirúrgicos, não de jogadores que estão o tempo todo com a bola nas mãos.
E para os que têm calafrios só de pensar que esses números aconteçam na base do individualismo, vale lembrar que o sucesso individual de Harden é também o sucesso coletivo do PLANO DE JOGO do Rockets. Com seu aproveitamento nos arremessos e sua capacidade de criar espaço para os companheiros e acioná-los com precisão, seu time finalmente alcançou a sonhada meta de ter mais da metade dos arremessos vindos de trás da linha de três pontos. Para fins de comparação, enquanto o Rockets tem 52% de seus arremessos totais vindos do perímetro, o segundo colocado (o Miami Heat) só arremessa de três pontos 39% das vezes em que tenta uma cesta. O Golden State Warriors, símbolo da política de arremessos de longa distância nessa geração, aparece ainda mais atrás com “apenas” 36%. O Rockets levou o plano do Warriors para um OUTRO NÍVEL, um que beira a obsessão, mas que pelo jeito está dando muito certo.
Essa quantidade de bolas vindas do perímetro coloca o Rockets em posição para bater seu próprio recorde histórico. O máximo de bolas de 3 pontos convertidas por jogo ao longo de uma temporada é de 14.4, marca alcançada pelo próprio Rockets da temporada anterior. O time atual está muito acima disso, com 16 bolas de três pontos convertidas por jogo. O Warriors certamente converte mais arremessos difíceis do perímetro, tem mais talento bruto e muito mais repertório de jogadas, mas nenhum time na histórica criou tantas oportunidades para bolas de três pontos sem marcação quanto esse Rockets – e o mérito é, em grande medida, de James Harden e sua temporada impecável até aqui. Ele é o líder de pontos e de assistências da NBA, com 31.7 e 9.8, respectivamente. E enquanto assistimos perplexos a tudo isso, Chris Paul é o constante elefante branco na sala, sempre prestes a voltar e, potencialmente, forçar mudanças naquilo que está funcionando tão bem.
Na primeira partida de Chris Paul de volta à equipe, depois de exatamente um mês parado, o receio já se dissipou um pouco. Em apenas 20 minutos em quadra, a enorme maioria sem Harden em quadra, Paul deu 10 assistências e cometeu apenas um turnover – tudo isso com apenas 7 arremessos de quadra e 2 bolas de três pontos convertidas. O discurso pós-jogo foi simples: “Eu sei que eu consigo arremessar. Eu sei que eu consigo pontuar. Mas eu não preciso.” Ele próprio admitiu que nunca havia jogado com 3 outros jogadores espaçados na quadra em toda sua vida e que isso mudava toda sua mentalidade. Somados a ele, o Rockets tem ao menos quatro jogadores no perímetro – às vezes são CINCO – simultaneamente em quadra, de modo que ele não precisa forçar jogadas, inventar espaços, bater para dentro. Sempre tem alguém em posição de arremesso, e se todas as linhas de passe estiverem bem defendidas, então Chris Paul necessariamente estará em uma excelente situação de arremesso.
Mesmo nos poucos minutos com Harden em quadra, Chris Paul seguiu essa lógica: nada de segurar a bola nas mãos, comandando pick-and-rolls ou infiltrando para ganhar espaço. Seu lema foi usar aquilo que a defesa lhe deu. Passes simples viraram bolas de três pontos para os outros jogadores; quando livre por conta das infiltrações de Harden, arremessou ele mesmo. Nunca Chris Paul precisou suar tão pouco para fazer as coisas acontecerem.
A partir de sua terceira partida de volta com a equipe, já melhor entrosado e com melhor condicionamento, Chris Paul teve uma sequências de 3 jogos em que somou 39 assistências e apenas 2 desperdícios de bola – incluindo um jogo com 14 assistências e NENHUM desperdício. Nesse jogo mágico fez apenas 4 pontos, mostrando que ele tem razão: ele até pode saber arremessar, mas não precisa.
São apenas 7 partidas desde seu retorno, mas Chris Paul lideraria a NBA em assistências se tivesse jogado o mínimo de partidas requeridas para ser elegível. Suas 9.8 assistências estariam 0.1 à frente de James Harden, líder no quesito. E tudo leva a crer que os números de Harden não devem diminuir. Primeiro porque a quadra NUNCA fica sem um deles, de modo que acabam jogando pouco juntos, basicamente o começo e o fim de cada tempo. Segundo que quando Chris Paul está em quadra, James Harden deixa de finalizar em 36.6% das jogadas para finalizar em 32.2%. É uma concessão muito pequena para ter um jogador com a inteligência de Paul em quadra.
Além disso, Harden recebendo passes de Chris Paul em condição de arremesso cria espaço DEMAIS para os outros jogadores porque exige que a defesa tenha que se movimentar em direção de Harden ao invés de já estar em cima dele marcando a bola. A jogada abaixo é um exemplo excelente:
Reminder: Chris Paul and James Harden will be just fine. pic.twitter.com/64CGnlaInz
— Trent Arnold (@TrentArnoldNBA) November 28, 2017
Pode até ser que ainda vejamos o Chris Paul pontuador, agressivo, chovendo arremessos de meia distância em cima das defesas adversárias, mas se acontecer será algo muito pontual – será porque alguma defesa escolheu lhe DAR esses arremessos na tentativa de bloquear todos os outros arremessos que o elenco do Rockets pode converter. Em situações normais, Paul estará jogando em seu modo “EU CONSIGO MAS NÃO PRECISO”, servindo apenas como facilitador para Harden quando estiverem juntos e assumindo o time de reservas com passes simples num esquema tático em que ele não precisa fazer muita coisa, mas em que sua precisão faz muita diferença.
Volta e meia comento por aqui sobre o desperdício que é ABRIR PORTAS USANDO DINAMITE. Não é um conselho sobre engenharia civil, mas sim sobre colocar grandes jogadores para fazer tarefas menores, desperdiçando seus talentos e ocupando espaço desnecessário na folha salarial. Não é o caso aqui, no entanto. É fato que nesse desenho tático de Mike D’Antoni qualquer armador tem facilidades, em que as decisões a serem tomadas são muito simples e que, especialmente com Harden em quadra, resta pouco a se fazer. Mas o Rockets é, assim como todos os outros times voltados para a movimentação rápida e constante de bola, uma equipe propensa a cometer muitos turnovers. É aqui que Chris Paul entra: seus passes milimétricos garantem que o plano de jogo aconteça sem nenhuma falha, tornando o ataque muito mais eficiente e evitando os contra-ataques adversários. Chris Paul está com sua menor média de turnovers na carreira – são menos de 2 por jogo! – e, desde que voltou, alçou o Rockets ao MELHOR ATAQUE e, pasmem, à SEGUNDA MELHOR DEFESA DA NBA. Não é só sua precisão em evitar contra-ataques, mas também sua eficiência em interceptar linhas de passe e sua inteligência defensiva para dobrar a marcação e pressionar jogadores no perímetro. Como indica o tweet abaixo, em apenas 6 jogos (5 depois de sua volta de lesão) Chris Paul já colecionava mais jogos com 10 assistências e 2 roubos na temporada do que qualquer outro jogador da NBA.
To put it another way, Chris Paul has more games with at least 10 assists and two steals (five) than anyone in the league, and he's played in six just games. https://t.co/IEe2ilwOsS
— Jonathan Feigen (@Jonathan_Feigen) November 28, 2017
Num esquema mais voltado para ele como vimos no Clippers, Chris Paul poderia FAZER MUITO MAIS. No Rockets ele simplesmente NÃO PRECISA, mas pode fazer com uma perfeição única as tarefas simples que o time lhe pede. Com ele vemos um time de D’Antoni com defesa forte e pressionada, e um ataque de perímetro que, ao contrário do Warriors, por exemplo, perde pouco a bola e não sofre do erro de “passar demais”, trabalhando com assistências mais objetivas e certeiras. É um grau de execução que pode perfeitamente co-existir com a temporada histórica de James Harden, e mais: pode até mesmo facilitá-la. Como o Rockets é o time que ganha dos adversários pela maior margem de pontos, finalmente vemos um time que não perde as vantagens no placar quando James Harden senta e Chris Paul assume e que, por isso, está terminando seus jogos antes dos períodos finais. Isso certamente refletirá num Harden mais descansado para os Playoffs, o que já aparece no fato de que ele está com a menor média de minutos por jogo desde que chegou em Houston – e a média só tende a diminuir.
Chris Paul poderia ser dinamite, se quisesse. Mas por enquanto ele só precisa abrir a porta com precisão cirúrgica para que o esquema tático de D’Antoni e a temporada alucinante de Harden passem. Ele não precisa comandar a equipe, mas já pode – para compensar – ir sonhando com suas primeiras possibilidades reais de ganhar um anel de campeão.