O papel de Draymond Green

Ao contrário de alguns times que possuem um plano em mente e vão aos poucos adquirindo os jogadores necessários para colocá-lo em prática, o plano do Golden State Warriors foi pensado principalmente ao redor de jogadores que já estavam presentes. Havia um desejo difuso de manter um basquete de velocidade (uma herança um tanto “maldita” e desprezada dos tempos do técnico Don Nelson, que deixou o time em 2010) e vontade de ter uma defesa agressiva (implementada pelo técnico Mark Jackson, que trouxe certa “credibilidade” ao time), mas os detalhes de como isso iria funcionar foram decididos em tempo real, tendo em mente os jogadores disponíveis no elenco. Não haveria ênfase nas bolas de três pontos se não fosse por Stephen Curry e Klay Thompson, por exemplo, e certamente não existiria tanto uma defesa quanto um ataque versáteis e dinâmicos se não fosse por Draymond Green.

Quando o técnico Steve Kerr assumiu o Golden State Warriors em 2014, o australiano Andrew Bogut ainda era o pivô principal da equipe. A NBA parecia migrar, na época, para um momento de pivôs estritamente defensivos e Bogut parecia finalmente ter encontrado seu nicho. Mas em meio às suas constantes lesões, Kerr percebeu que Draymond Green permitia que o time funcionasse de outra maneira: apesar de não ter altura o bastante para brigar com os maiores pivôs, Green conseguia defender múltiplas posições, desviava bolas no garrafão e raramente era dominado pelos adversários. Sua capacidade de estar no CAMINHO dos seus oponentes e de atrapalhar a recepção dos passes dava aos outros jogadores do Warriors uma série de liberdades defensivas enquanto contribuía no ataque de uma maneira que Bogut não poderia: velocidade nos contra-ataques, passes certeiros e bolas de três pontos.

É evidente que os arremessos de longuíssima distância de Stephen Curry são parte indissociável da “identidade” do Warriors, o modelo de jogo da equipe e a imagem que eles transmitem para seus oponentes e para seus torcedores. Mas a parte mais fundamental dessa identidade, do “rosto” da equipe, é de responsabilidade de Draymond Green. Foi ele quem abriu as portas para que um novo tipo de basquete pudesse ser jogado por seus companheiros quando se mostrou capaz de “colar” todas as partes, tapando os buracos e fornecendo respostas para dilemas até então insolúveis. São os passes de Green que permitem que tanto Stephen Curry quanto Klay Thompson possam correr sem a bola AO MESMO TEMPO, cada um de um lado da quadra, sem que seja necessário MAIS UM ARMADOR no elenco. É sua visão de jogo que permite que, quando Curry e Klay Thompson correm sem a bola, eles possam ignorar o corta-luz e cortar para a cesta, enganando a defesa na certeza de que um passe certeiro os encontrará; ou então ignorar o corta-luz e correr para a zona morta, conseguindo um arremesso de três livre. É seu talento na transição, onde conseguiu mais assistências do que qualquer jogador na temporada passada, que permite que o time corra em velocidade com seus armadores à frente, não atrás segurando a bola. E é sua versatilidade defensiva que tornou o Warriors uma das equipes que mais faz trocas de marcação, ou seja, em que os defensores mudam de marcação a cada corta-luz para não dar espaço para os adversários. Green é o homem que faz as trocas no pick-and-roll, que dobra a marcação, que marca os espaços de infiltração dos LeBron James e James Harden da vida mesmo quando não os está defendendo. E, mais importante do que isso, é quem controla o RITMO do jogo: é quem escolhe correr ou parar, mas quem também comanda vocalmente as trocas defensivas e a intensidade da marcação. Não à toa foi amplamente chamado de “coração da equipe”, e sua personalidade explosiva sempre carregou o Warriors – às vezes para o buraco, graças a um ou outro descontrole, mas também a 3 títulos em 4 anos.

A maior parte das coisas que aprendemos a associar ao Warriors – e, por consequência, ao basquete “moderno” – são, na verdade, Draymond Green. Num time que foi formado por junções estranhas de estilos e personalidades, é normal que muitas vezes não saibamos reconhecer o que exatamente cada um contribuiu para o pote, dado que a adição de um muitas vezes só brilha quando é “apropriada” por outro ou permite que o outro possa acrescentar o seu toque. Ainda assim, nos últimos anos tornou-se evidente que a adição de Draymond Green a esse caldeirão de sucesso era insubstituível. Técnicos e analistas não se cansaram de apontar as “pequenas coisas” que Green adicionava ao time, expondo ao público seus momentos de genialidade que passam despercebidos pelo torcedor comum em busca de números ou jogadas de efeito. Aos poucos, o público foi aceitando Green no seu cânone de grandes: há sempre o odiador eventual, ou o torcedor indignado com seu caráter, sua índole, seus chutes nos bagos alheios, mas em geral Draymond Green passou a ser considerado um dos astros da NBA e certamente um dos mais completos, versáteis e insubstituíveis jogadores da sua posição.


Eis que chegamos em 2019 (Feliz Ano Novo!) e o cenário é completamente diferente: ao invés de insubstituível, Draymond Green parece o elo mais fraco de um Warriors que mostra claros sinais de fragilidade. Incomodado por um ombro lesionado na offseason e por um dedão do pé torcido na temporada atual, Green já deixou de jogar 14 partidas até aqui e parece visivelmente sem ritmo e ligeiramente fora de forma. Além disso, seu arremesso nunca esteve em pior fase, com o jogador acertando apenas 40% de suas tentativas e medonhos 24% de seus arremessos de três pontos. Como se não bastasse, recebeu uma bronca pública de Kevin Durant por não passar a bola num momento decisivo de um jogo apertado, discutiu com o jogador nos vestiários e foi suspenso pelo time por conta da confusão, com gente já preparada para lhe apontar TODOS OS DEDOS DAS MÃOS E DOS PÉS no eventual caso de Durant não renovar com o Warriors ao fim da temporada.

Sua atual fase fica ainda pior porque os times adversários ficam CUTUCANDO A FERIDA, expondo Draymond Green em todas as oportunidades possíveis. Tornou-se prática comum (especialmente desde os Playoffs passados) deixar Green livre no perímetro para se focar em outros jogadores mais perigosos. Nos dias bons, Green até pode punir essa decisão defensiva, mas em geral é simplesmente melhor do que permitir que Stephen Curry corra por aí com apenas um defensor na sua cola. E como os dias bons estão se tornando raros, deixar o pivô livre para arremessar já se tornou uma decisão óbvia, que Draymond Green tenta contestar NÃO ARREMESSANDO, o que consegue ser AINDA PIOR porque os times não precisam sequer se preocupar com a remota chance de a bola entrar. Há 5 anos Green não arremessa tão pouco, e a única vez em que converteu tão poucas bolas de três pontos por jogo foi em seu ano de novato, quando jogava míseros 13 minutos por partida. No perímetro ele simplesmente deixou de ser uma ameaça, o que torna a vida do resto do Warriors imediatamente mais difícil. Chegamos no ponto em que Draymond Green é um problema para o Warriors no ataque assim como vimos acontecer com Tony Allen, Rajon Rondo ou Marcus Smart, armadores incapazes de converter arremessos de longe e que passaram a ser ignorados de propósito pelas defesas adversárias. São jogadores que você até mantém em quadra, mas tem que controlar os minutos e passar o tempo todo se JUSTIFICANDO, tentando convencer o mundo de que os benefícios que ele traz compensam os problemas óbvios em quadra.

No YouTube coletaram momentos que explicitam a marcação que Green recebeu na partida de Natal contra o Los Angeles Lakers e dá pra ver com clareza quão ABANDONADO ele está no perímetro, sua hesitação para arremessar e como ele errou absolutamente tudo que passou pela sua mão:

A situação pode até ser física – lesões no ombro e no pé tendem mesmo a comprometer a mecânica de arremesso – mas é inevitável que exista uma parte psicológica, especialmente porque os arremessos de Draymond Green tem se tornado progressivamente MAIS IMPORTANTES no âmbito do time. Digo isso porque as equipes da NBA tem aprendido os benefícios de desafiá-lo a arremessar desde que o Houston Rockets, nas Finais da Conferência Oeste da temporada passada, resolveu que Draymond Green é quem teria que decidir os jogos – e o plano quase deu certo. Há uma pressão muito maior para que ele acerte, o time depende mais dele quando a marcação o deixa livre e os arremessos, claro, se tornam mentalmente mais difíceis – um problema considerável para alguém que só em UMA temporada na carreira conseguiu converter arremessos acima da média da NBA.

Aos poucos a solução do técnico Steve Kerr tem sido colocar Draymond Green em outros lugares da quadra, tirando o jogador da cabeça do garrafão e o fazendo cortar para a cesta, estabelecer posição perto do aro ou estar mais envolvido em jogadas de pick-and-roll. Nos contra-ataques Green ainda pode ter a bola nas mãos, ditando o ritmo da transição ofensiva, mas nas outras situações é melhor que ele não seja obrigado a arremessar bolas e nem fique em situações em que pode ser ignorado pela defesa. Mas você pode se perguntar: se a função de Draymond Green era tão importante, a “cola” que mantinha esse time funcionando, como é possível que ele seja simplesmente colocado em outra função, em outro lugar da quadra? A resposta é simples: Kevin Durant.


Quando dissemos que Draymond Green foi responsável por estabelecer uma certa identidade do Warriors, não queremos dizer que o time seja ele – apenas que ele permitiu que o time pensasse, agisse e executasse de uma determinada maneira. É isso que os grandes times fazem: estabelecem, através de seus jogadores, uma identidade que é maior – e mais duradoura – do que esses mesmos jogadores. Basta pensar no exemplo do San Antonio Spurs: a identidade do time foi moldada por Tim Duncan, David Robinson, Bruce Bowen. Mas assim que David Robinson se aposentou, outro jogador foi capaz de cumprir o seu papel, com leves alterações na identidade que havia sido estabelecida. O mesmo aconteceu quando Bruce Bowen saiu, e a luta da equipe agora é encontrar uma maneira de tapar o buraco de Tim Duncan para que a identidade se mantenha mesmo com peças diferentes. Joe Lacob, dono do Warriors, já disse abertamente que seu sonho é que o Warriors consiga estabelecer um “domínio de 20 anos na NBA como o do Spurs”, com uma identidade reconhecível que seja fruto dos jogadores presentes, mas que os transcenda e dure por décadas a fio.

Na prática, isso significa que aquilo que o Draymond Green trouxe ao Warriors foi essencial e tornou o time o que ele é, mas que agora o time JÁ É da maneira que ele permitiu – mesmo quando ele não está em quadra. Outros jogadores podem aplicar aquilo que ele mostrou ser possível, desde que tenham habilidade e talento suficiente, e desde que as mudanças inevitáveis de uma nova figura no mesmo papel não interfiram naquilo que há de essencial na função. No instante em que Kevin Durant berrou com Draymond Green por não ter recebido a bola num contra-ataque decisivo, tornou-se evidente aquilo que já há muito tempo se anunciava: Kevin Durant executa as funções de Draymond Green com tranquilidade, tanto ofensiva quanto defensivamente, tornando o pivô muitas vezes supérfluo. Não é preciso Green puxar a transição ofensiva se o melhor lugar para a bola chegar, na quadra de ataque, será justamente nas mãos de Durant, por exemplo. Kevin Durant puxa contra-ataques, aprendeu a passar bem a bola, tem altura para enxergar por cima dos defensores, defende qualquer posição, tem uma mobilidade lateral invejável, e ainda traz a sua “cara” para o papel: é muito mais alto e portanto perigoso na proteção de aro, e também não pode ser deixado livre no perímetro, nunca, never, jamais.

Defensivamente Draymond Green ainda é um jogador excelente, embora as limitações físicas dessa temporada tenham um impacto inegável na sua mobilidade. O problema é que o cenário em que Green defendia em 2015 já não é mais o mesmo em 2019: agora ele enfrenta com frequência pivôs mais fortes e mais atléticos do que ele que são também capazes de correr a quadra inteira em contra-ataques, arremessar bolas de três pontos e bater para dentro sem ter que receber passes dentro do garrafão. Sua leitura de jogo ainda impressiona, mas seus duelos são mais complicados e ele é mais frequentemente exposto em suas dificuldades físicas. Kevin Durant pode não ter a mesma inteligência defensiva, mas sabe desempenhar mais ou menos as mesmas funções sem as dificuldades físicas – pelo contrário, dificuldades físicas têm os seus adversários, que não possuem qualquer chance de competir com a combinação de tamanho e agilidade que ele apresenta.

Draymond Green é essencial para o Warriors, mas não exatamente o JOGADOR Draymond Green – é o PAPEL de Draymond Green que realmente importa, que torna esse time possível e que, quando bem desempenhado, torna a equipe verdadeiramente imparável. Muitas das dificuldades do Warriors nessa temporada surgem do fato de que Green não está cumprindo seu papel de maneira adequada e Kevin Durant ainda não conseguiu – ou não pode – assumir essa função. Kevin Durant tende a ser sobrecarregado com jogadas individuais para compensar justamente os problemas de espaçamento e a dificuldade de construir jogadas que Draymond Green deveria suprir, o que cria um paradoxo bizarro: Durant não pode jogar integralmente na função de Draymond Green porque está ocupado demais tapando os buracos que a falta dessa função bem executada cria na equipe. Não é à toa, portanto, que a tensão entre Green e Durant se estenda para além das quadras e tenha gerado uma crise nos vestiários no começo da temporada. Ainda que todos os relatos sejam de que a situação “já está superada”, ainda há uma tensão que tem a ver com o papel que cada um deles desempenha nessa equipe tanto no curto quanto no longo prazo.

Num mundo ideal, Draymond Green seria capaz de cumprir o próprio papel que ele mesmo inventou com máxima eficiência, de modo que Durant pudesse cumprir outra função – seria um Warriors verdadeiramente invencível. Mas na atual situação, o time precisa decidir o que fazer quando tem em mente um modelo que já não consegue cumprir com os mesmos jogadores. Talvez o maior problema desse Warriors seja o fato de que a identidade do time, a cultura implementada, ainda é MUITO RECENTE: todos os fundadores ainda estão aí, em plena atividade, querendo fazer história. Seria impensável trocar Draymond Green ou reduzir seus minutos, e será difícil estabelecê-lo em outro papel e deixar que Durant assuma integralmente seu posto original. É apenas no longo prazo, se essa cultura sobreviver, que as peças se tornarão verdadeiramente substituíveis e intercambiáveis, como vimos no Bulls e no Lakers de Phil Jackson, ou no Spurs de Gregg Popovich, por exemplo.

O Warriors terá nessa temporada uma série de decisões difíceis para tomar: DeMarcus Cousins terá sua chance de jogar caso esteja saudável nos próximos meses, o que trará um novo pivô (embora supostamente momentâneo) que poderá substituir Draymond Green; e ao fim da temporada, independente do resultado, o time fará um esforço para segurar Durant e, quem sabe, Cousins. Caso qualquer um deles fique, talvez seja impossível segurar Draymond Green em 2020, quando se encerra seu contrato, a não ser que aconteçam cortes voluntários muito sérios em termos de salário. Isso significa que o time precisa decidir desde já se sua identidade são as pessoas, ou se é aquilo que essas pessoas significam e representam; se o legado desses jogadores se estenderá por alguns títulos ou se será um domínio de duas décadas que verá muitas outras faces, muitos outros nomes, muitos outros astros ocupando os papeis que os jogadores atuais ajudaram a inventar.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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