Em 1994, o Milwaukee Bucks ganhou o sorteio do Draft e levou a chance de ouro de selecionar na primeira posição o ala Glenn Robinson. O jovem vinha de uma temporada histórica pela Purdue University onde teve média de 30.3 pontos por partida, recorde até hoje nunca superado por um jogador da primeira divisão da NCAA. Era consenso que ele seria um grande pontuador e uma estrela nata entre os profissionais.
Mas ao contrário de hoje, naquela época não havia um contrato pré-definido baseado na posição em que o jogador era selecionado. Cada atleta, ao lado de seu agente, se reunia com o time e discutia a duração e o valor a ser pago. Limites? Não há limites, como já nos ensinou “Meninas Malvadas”. Poderia ser qualquer valor por qualquer duração, e isso valia para novatos ou qualquer outro jogador: no ano anterior Larry Johnson havia assinado um contrato de 84 milhões por DOZE ANOS com o Charlotte Hornets. O teto salarial, que hoje passa dos 100 milhões de dólares, na época estava próxima dos 16 milhões, mas os times tinham algumas chances de ultrapassá-lo.
Dentro deste cenário, Glenn Robinson resolveu que era hora de fazer história. Sabendo do desespero do Bucks em voltar à relevância e que nenhum time quer pagar o mico de não conseguir assinar com seu próprio novato (sem um acordo, Robinson voltaria sem time ao Draft do ano seguinte) ele exigiu nada menos que CEM MILHÕES de dólares por DEZ ANOS de contrato. Foi um escândalo: o Bucks organizou uma coletiva da imprensa em meados de outubro para dizer que o jogador não tinha aceitado a proposta deles de 60 milhões por 10 temporadas e deixou em aberto o que iria acontecer, dando a entender que Robinson era o ganancioso que se recusava a jogar pelo time.
Tudo isso acontecia enquanto a Major League Baseball tinha uma temporada cancelada por falta de acordo entre jogadores e donos e a National Hockey League também vivia seu locaute por falta de acordo financeiro. Para piorar, o dono do Bucks na época era Herb Kohl, senador americano pelo estado de Wisconsin que buscava a reeleição em novembro daquele ano. A negociação se alongou tanto que acabou se tornando um problema de campanha, já que não se sabia como os eleitores iriam lidar com a ideia de um senador em conflito com o novo Ãdolo do time do qual é dono. E nem se o público iria ver com bons ou maus olhos ele ceder e dar o maior contrato da história da NBA para alguém sem uma partida disputada.
A situação se resolveu a UM DIA do inÃcio da temporada regular de 1994-95 com Glenn Robinson topando um contrato de 68 milhões por 10 temporadas, o maior de um novato na história da liga, superando os 54 milhões por 9 anos assinado por Jason Kidd no mesmo ano. No ano seguinte a NBA, sob o comando de David Stern e com apoio de todos os donos da liga, criou a Rookie Scale, uma tabela que determina o salário de cada calouro baseado na posição em que ele foi selecionado no Draft. Uma decisão fácil de ser tomada até porque os próprios veteranos não ficavam lá muito satisfeitos com novatos que nunca provaram nada comendo um pedaço gigante da folha salarial de cada equipe.
A decisão era um pouco como se os times estivessem criando regras para que eles mesmos não agissem contra seus interesses. Pouco depois a NBA determinou que nenhum contrato na liga poderia ter mais que sete anos, número depois que caiu para seis e que hoje é de cinco. E os cinco só servem em casos especÃficos de jogadores renovando contratos, quem muda de franquia não pode firmar acordo de mais de QUATRO temporadas. A diminuição sempre foi vista como uma vitória dos times na batalha contra os jogadores: menos anos de contrato significa um jogador mais fácil de ser trocado, mais flexibilidade e menos risco de morrer com um mico na mão caso um jogador se machuque ou piore muito ao envelhecer. Os jogadores, por outro lado, perdem a segurança em uma profissão já imprevisÃvel e sempre ameaçada pelas lesões.
Pulamos para 2019 e o grande Free Agent do ano, Kawhi Leonard, decidiu recusar a oferta inicial do Los Angeles Clippers de quatro temporadas e ficou com uma de três anos. Ele faz isso logo depois de recusar ofertas de cinco anos do San Antonio Spurs em 2018 e do Toronto Raptors em 2019. O que mudou nessas duas décadas para que agora JOGADORES, não mais TIMES, estejam lutando por contratos de menor duração?
A resposta curta é: LeBron James. Em 2006, LeBron, Dwyane Wade e Chris Bosh decidiram ir contra a maré e não assinaram suas extensões de contrato no valor máximo que poderiam após o fim dos seus acordos de calouro. Ao invés de cinco anos, decidiram por apenas três. A ideia era ter flexibilidade na carreira e poder, no auge da forma e da maturidade, ter a liberdade de saÃrem dos times em que jogavam. Foi o que aconteceu com LeBron e Bosh, que em 2010 decidiram se juntar a Wade no Miami Heat. Os contratos curtos, a escolha por liberdade ao invés da segurança financeira e a ideia de se juntar com outras estrelas em busca de um super time são decisões que até hoje repercutem na NBA.
E LeBron James ainda deu um passo além ao deixar o Heat. Sem confiar muito no Cleveland Cavaliers para tomar conta de sua carreira ele passou todo seu segundo perÃodo no time com contratos de um ano. Era o famoso “1+1” um ano garantido e o segundo com opção para o jogador decidir se ficava ou não, na prática só um seguro em caso de lesão. A ideia foi logo adotada por Kevin Durant no Golden State Warriors e agora ganha sua versão um pouco mais conservadora com Kawhi Leonard. O ala firmou seu contrato para que ele acabe ao mesmo tempo que o de Paul George e ele não sobre no LA Clippers sozinho.
Os times aceitam essas coisas porque são as estrelas que trazem tÃtulos na NBA. Quando falamos de “empoderamento dos jogadores” em ações como essa estamos na verdade falando de empoderamento dos SUPER jogadores. DifÃcil imaginar um cara que nunca foi All-Star ou que mal se firmou como titular negando a segurança de um contrato longo e estável. Aliás, essa é a beleza do CICLO dos contratos. Nos anos 1990 os jogadores lutavam pelos contratos mais longos, agora são os times que apelam e buscam esse argumento para tentar segurar alguém. É a eterna contradição: os times querem ter o poder de oferecer o céu e as estrelas sob o argumento de que se não for assim todos vão fugir para os “grandes mercados”, mas quando eles podem oferecer o céu e as estrelas eles reclamam de que tudo está caro, insustentável e que isso os impede de formar um time decente ao redor dessas estrelas.
Para Adam Silver, comissário da NBA, os contratos mais curtos estão fazendo bem para a liga. “A gente sabia que com contratos mais curtos nós terÃamos mais Free Agents e mais movimentação de jogadores. É uma faca de dois gumes, de um lado cria a sensação de renovação em muitos mercados, dá a chance de reconstrução. Do outro, claro, existem times que perdem seus principais jogadores”.
O comissário também destaca que contratos curtos são bons para a liga porque criam “incentivos de performance” para os jogadores. Com o contrato sempre próximo do fim, ninguém pode relaxar e ter uma temporada ruim. Certamente os times gostam dessa parte, mas deixam de gostar assim que o cara joga bem e pede uma extensão de contrato cara. Tem sido difÃcil para algumas equipes conseguirem manter a base de um elenco de um ano para o outro. E sem contar como isso pesa na saúde mental dos atletas que trabalham em um ambiente que é competitivo por natureza, onde são observados, medidos e julgados pelo público e imprensa diariamente, têm uma profissão que é muito mais curta que a da maioria das pessoas e ainda a cada temporada com o vive o risco de não conseguir manter sua vaga. Haja ansiedade!
Do lado dos torcedores vejo outra faca de dois gumes não explorada por Adam Silver, que disse que o CARNAVAL midiático da troca de jogadores deste ano não foi planejada no momento em que a liga decidiu encurtar os contratos. Neste ano nos divertimos horrores ao ver um punhado de grandes estrelas mudando de um lado para o outro e sacudindo o campeonato que vinha tendo os mesmos protagonistas. Mas será que vai ser legal se acontecer de novo? Há um risco de banalização das trocas de jogadores, da perda da identidade de alguns times e de uma possÃvel fragilidade em uma das coisas mais legais da NBA, que é a sua capacidade de contar histórias.
Tudo isso é especulação em cima de pouca coisa e até um pouco exagero futurista, mas algo para ficar em mente. O jogo de montar um time é às vezes tão legal e atrativo quanto o jogo dentro de quadra, é importante para a NBA não perder isso mesmo enquanto os jogadores percebem que podem assumir mais riscos e tomar conta de suas carreiras.
Não me aprofundo mais nessa futurologia porque a NBA é especialista em dar voltas na gente. Quando achamos que o contrato Super-Máximo-Pote-De-Ouro vai fazer os jogadores babarem de desejo, eles abrem mão da grana para mudar de time. E até mesmo as regras vão sendo dribladas sem parar para que times e jogadores alcancem seus objetivos imediatos.
Veja o caso do Nenê, que parecia prestes a se aposentar e de repente voltou com um contrato que poderia chegar a VINTE MILHÕES de dólares por duas temporadas com o Houston Rockets. Todo mundo ficou confuso, mas logo a pegadinha foi desvendada: o Rockets estava na verdade oferecendo um contrato de 2,6 milhões de dólares para Nenê com incentivos em bônus que fariam o salário chegar a 10 milhões ao fim do ano. Os bônus são registrados oficialmente como “prováveis de acontecer” pela NBA porque envolviam marcas que o jogador atingiu no ano passado, basicamente total de partidas disputadas, fazendo com que Nenê tivesse na prática um cap hold de 10 milhões. O que isso quer dizer? Que o Rockets poderia trocá-lo por qualquer jogador que ganha até 10 milhões sem precisar mandar mais nenhum atleta junto.
O manager Daryl Morey estava pagando Nenê para ele sair da provável aposentadoria e se tornar uma peça de troca ambulante. Ele deixaria o Rockets mais perto de trazer um jogador caro (alô Andre Iguodala!) mesmo com eles estando muito acima do teto salarial e sem precisar mandar um contrato caro (Eric Gordon ou Clint Capela, por exemplo) numa negociação. E o negócio seria atraente para outros times porque bastaria para eles dispensarem o brasileiro antes de 15 de fevereiro que não precisariam pagar o bônus nem o contrato da temporada seguinte.
A NBA, ao lado do sindicato dos jogadores, porém, barrou o contrato de Nenê. Ele ainda receberá seus 2,6 milhões e ainda poderá receber os bônus caso entre em quadra o bastante (spoiler: não vai), mas não poderá ser usado como peça de troca de 10 milhões. O banimento do artifÃcio foi puramente por razões éticas. Os bônus de contrato não foram feitos para isso e a estratégia era claramente burlar as linhas de contrato.
Nesta sexta-feira (27) à noite a liga teve que agir de novo para acabar com outra ação criativa envolvendo contratos. O armador Spencer Dinwiddie, do Brooklyn Nets, foi proibido de seguir com seu plano de abrir uma empresa e transformar seu contrato de 34 milhões por 3 temporadas com o Nets em um investimento digital. A ideia, confusa demais para uma mente de humanas como a minha, é adiantar esses milhões de dólares do seu contrato via “TOKENS digitais” pago por investidores que podem ser qualquer torcedor como nós desde que você tenha 150 mil dólares sobrando. O jogador recebe esse dinheiro adiantado, pode colocar onde quiser e os investidores ganham quando Dinwiddie receber bônus de desempenho no contrato ou quando assinar um novo contrato daqui duas ou três temporadas.
A NBA disse que o atual acordo entre liga e jogadores proÃbe os atletas de “transferir seu salário para uma terceira parte” e que a ação de Dinwiddie se encaixaria nesse quadro. O jogador afirma que ainda vai se reunir com a liga para explicar melhor seu inovador plano.
Para os entendidos de tokens digitais e criptomoedas, a ideia de Dinwiddie pode ser mais revolucionária que louca e até ditar o futuro da liga mesmo que por enquanto esteja apenas à frente demais da curva para virar realidade. O que importa para a conversa, porém, é que os jogadores não estão satisfeitos. A liga cresce, o dinheiro muda e hoje eles estão indo atrás de muito mais do que o máximo de grana pelo máximo de duração. O próximo acordo entre jogadores e donos deverá responder a muitas novidades e interesses e não será tão fácil quanto criar a Rookie Scale pós-Glenn Robinson em 1995.