>O peso

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Yao Ming de terno, imagem já gravada em minha retina, se
despede de McGrady e Mutombo: os três viraram farofa

Em 2002, Bulls e Warriors tinham 22,5% de chance cada um de ter a primeira escolha daquele draft. O Houston Rockets tinha apenas 8,9% e, ainda assim, foi agraciado com o resultado das bolinhas da Tele Sena da NBA (que não tem seus resultados anunciados de hora em hora): ficou com o direito à primeira escolha e ganhou uma chance de começar de novo mesmo já tendo um elenco razoável. Com aquela escolha, o Houston Rockets adquiriu o pivô chinês Yao Ming.

Um grupo de especialistas, composto de americanos e chineses, formou-se para decidir cada passo do pivô. Toda ação era analisada em seu impacto cultural e econômico. Enquanto eu aguardava desesperado a chegada de Yao pra salvar meu Rockets ainda na pré-temporada, o chinês defendia a seleção de seu país conforme o grupo de especialistas havia decretado ser mais correto. Imediatamente me pareceu evidente que draftar Yao Ming não era como escolher um carinha qualquer no draft, vindo de uma universidade americana e com um cortador de grama na garagem. Havia um peso enorme, um grupo de velhos que decidia seu destino (parece coisa de desenho japonês), uma cultura, um plano, uma responsabilidade: draftar Yao era draftar toda a China.

Já escrevi sobre os boatos de que o Yao nasceu para as Olimpíadas, e também fiz um post mais sério sobre o papel do pivô no evento e a tentativa de mostrar que a China é um país como qualquer outro. Esse fardo veio de brinde na noite do draft, quando o chinês colocou aquele boné mequetrefe do Houston que mal cabia em sua cabeça: ao invés de um simples pivô, draftaram um homem com uma missão.

Não quero dizer que ele seja um espião comunista, ou que tivesse uma lista de objetivos políticos a cumprir após sua chegada na NBA. Sua função era silenciosa e, por vezes, creio que nem o próprio Yao Ming era capaz de compreendê-la em toda sua extensão ou magnitude: sua simples presença em território americano, levantando o meu Houston Rockets, já era o suficiente para que sua missão acontecesse. Mais do que aproximar duas culturas distintas, Yao Ming teve a responsabilidade calada de fundí-las, aniquilando ao máximo as diferenças, decepando a China.

Usando um exemplo do Lévi-Strauss (o antropólogo, que não tem nada a ver com a marca de calças jeans), culturas diferentes são como trens indo cada uma para um lado. Dentro do trem de nossa cultura, podemos olhar pela janela e ver com mais clareza os trens que estão próximos, que caminham na mesma direção, com velocidades parecidas. Os trens que estão muito longe, ou indo para direções brutalmente diferentes, não passam de uma mancha difícil de compreender e que nos incomoda por perturbar a paisagem. Por muito tempo, a cultura americana e a chinesa foram trens indo para lugares opostos, impedindo que seus passageiros olhassem de um trem para o outro. Recentemente, a China tenta não apenas ser um trem perceptível, mas ser efetivamente o trem americano. As diferenças culturais praticamente não são mais perceptíveis, não restou nada que não seja simples detalhe, hot-dog de cachorro. E o auge desse acontecimento reside nas mãos de Yao Ming e das Olimpíadas de Beijing.

Para nós, Yao era apenas um pivô lento e incapaz de mostrar emoções em quadra. Não gritava, não comemorava, não enterrava, quase como o chato do Duncan mas com uma diferença crucial: quando cometia algum erro, Yao demonstrava na face o peso da vergonha, abaixava a cabeça e corria tristemente para o outro lado da quadra. Começou muito mal sua carreira na NBA, com atuações sofríveis e um nítido despreparo físico. Chineses são tímidos, recatados, respeitosos, baixos e fracos, dizia o esteriótipo. Yao então começou a ter atuações mais sólidas e passou a levar a sério os duelos pessoais com Shaquille O’Neal. Enquanto milhões de chineses acordavam mais cedo para assistir aos seus jogos, Yao aprendia a dominar o garrafão, gritar com seus companheiros, provocar adversários e falar palavrão. O ídolo chinês ia perdendo, dia a dia, aos olhos de seu povo, os modos de sua cultura. Gradualmente, de modo que ninguém fosse capaz de perceber. Quando voltou a jogar pela seleção chinesa, já exigia aos gritos mais comprometimento de seus companheiros. Junto com os novos valores e trejeitos, Yao injetava auto-estima numa seleção e num povo. Quando a China acabou as Olimpíadas como líder absoluto no quadra de medalhas, o projeto se deu por completo: eles aprenderam que podem vencer.

Rapidamente, logo depois da primeira temporada, o Houston Rockets mudou as cores e os uniformes para representar uma nova fase sob o comando do pivô chinês. O vermelho-china da camiseta, de repente, não parecia acidental. O uniforme vendeu aos montes na terra do Yao, ao lado de Big Macs e tênis de basquete made in China com comerciais em mandarim usando T-Mac, Shaq e até Shane Battier e Damon Jones como garotos-propaganda. Enquanto isso, peguei um dos meus primeiros salários suados e fui comprar uma camiseta do Yao Ming de aniversário pra mim mesmo (meio autista?), que tenho e ostento orgulhoso até hoje. A extensão do que a NBA e o Yao representam avança mundo afora, e a prova foram as verdinhas que eu gastei no uniforme vermelho mesmo vivendo aqui na terra da caipirinha. Com isso, o Houston, a NBA e o David Stern encheram as orelhas de dinheiro, a China varreu as diferenças culturais para baixo do tapete, e um processo cultural longo viu sua cartada final acontecer dentro de quadras de basquete. Um tanto curioso pra quem acha que esporte é imbecilizante.

A condição de ídolo do Yao, essencial para todo esse fenômeno, só funcionaria se ele fosse realmente um grande jogador. Até hoje tem gente achando que ele nunca foi, exagerando suas falhas e exigindo ridiculamente que ele domine o jogo de basquete só porque tem 2,29m de altura (sem compreender que, mais do que uma vantagem, sua altura sempre lhe foi um problema). Os chineses acordavam de manhã para ver seu ídolo jogar porque Yao chutou traseiros, dominou partidas e nunca deixou de evoluir. Sempre foi um grande pivô em uma era sem pivôs, mas nunca foi muito bem aceito justamente pelo que lhe restava de “culturalmente chinês”. Por não atacar o aro, não ser físico e nem agressivo, foi duramente criticado. A cultura americana e todos os outros trens andando mais ou menos na mesma direção e velocidade repudiaram esses traços culturais chineses, e Yao fez a mesma coisa que a China: aos poucos, ao invés de negar os valores alheios, foi negando seus próprios. Na busca por força, vitória e aceitação, tanto Yao quanto seu país foram perdendo suas identidades. Esse contato com o “outro” é sempre muito perigoso: por comparação, pode ressaltar aquilo que nos forma e que nos faz diferentes, mas também pode aniquilar as diferenças e devorar por completo a criatividade e a autonomia.

Yao Ming sempre esteve nesse impasse, sem saber se era chinês ou americano, sem saber que valores representar ou entregar a seu povo. Nunca deixou de falar bem de seu país ou de cumprir suas obrigações patrióticas, mas era cada vez menos chinês diariamente nas partidas da NBA que toda a população da China assistia. Todo mundo sabe, não adianta dizer uma coisa e fazer outra, as pessoas estão assistindo e serão guiadas pela ação, não pela fala. Yao cumpriu seu papel nas Olimpíadas dando credibilidade a uma seleção muito da fajuta, mas na verdade suas ações fora da seleção eram mais importantes: imerso na cultura americana, gritando em quadra, foi às Olimpíadas encontrar justamente uma China que tentava esconder suas diferenças aos olhos do mundo. Deu certo: agora, os povos podem dar as mãos, celebrar felizes as similariedades recém-descobertas como irmãos separados no berço em novela da Globo, e juntos comprar e vender os mesmos produtos. Trocentos chineses agoram usam Nike, e você?

Em quadra pelo Houston Rockets, Yao sempre levou nos ombros uma pressão maior do que podia carregar. Num limbo entre os Estados Unidos e a China, com obrigações em seu país e no seu time da NBA, tentando agradar todo mundo, observado por bilhões, modelo para toda uma cultura sem saber onde se encaixa na cultura que adentrou, Yao sempre foi cobrado em excesso e se cobrou em excesso como resposta. Uns acham que ele fede e que na verdade foi apenas um produto da mídia, enquanto eu acho que justamente por estar tão exposto à mídia – tente imaginar ser assistido por toda uma cultura em dissolução – é que não percebemos como o Yao realmente chutou traseiros. Mesmo que os resultados nunca tenham vindo.

Não vieram em parte porque o peso que o Yao sempre teve que carregar não é apenas metafórico: com 2,29m de altura e mais de 140 quilos, é humanamente impossível ser capaz de aguentar os rigores de uma temporada de 82 jogos (que, a gente nunca cansa de dizer aqui no Bola Presa, é insana e mais longa do que a existência da Praça é Nossa, daria pra ser menos da metade!). A carreira de Yao, então, foi sempre uma tentativa de lidar da melhor forma possível com as limitações do esqueleto humano, ou seja, com as contusões inevitáveis para alguém de suas proporções físicas.

Depois das primeiras temporadas, quando a pressão de jogar pelo Rockets e pela seleção chinesa não lhe permitiram tempo para descanso, as contusões viraram festa. Na temporada 2005-06, Yao perdeu 21 jogos com uma infecção num dedo lesionado. Depois, quando havia voltado às quadras, quebrou o pé esquerdo e perdeu os últimos 4 jogos da temporada. Na temporada 2006-07, quebrou a perna direita e perdeu 32 jogos. Em 2007-08, foram 26 jogos perdidos com uma fratura por estresse no pé esquerdo. Ainda assim, conseguiu participar das Olimpíadas e depois, sem muito descanso, voltou para a NBA. Perdeu apenas 5 jogos na temporada regular, com uma simples pancada no joelho, o que parecia um milagre, mas no terceiro jogo contra o Lakers, na segunda rodada dos playoffs, Yao fraturou de novo o pé esquerdo. Fica difícil cobrar qualquer resultado quando estamos lidando com alguém que quebra ossos enquanto coça o nariz ou vai ao banheiro, é pior que o Greg Oden que perdeu a temporada se contundindo ao levantar do sofá. Quando Tracy McGrady chegou ao Houston, finalmente teria um companheiro à altura para passar da primeira rodada dos playoffs, mas a verdade é que tanto Yao quanto T-Mac foram arrasados por contusões e nunca conseguiram jogar como poderiam. Em 5 temporadas no Houston, T-Mac só jogou com Yao em 220 partidas. Ganharam 146 e perderam 74, o que é um aproveitamento bem razoável, mas praticamente nunca estiveram na mesma quadra ao mesmo tempo. Patético, parece o tipo de coisa que só aconteceria com o Clippers.

A fratura do Yao na série contra o Lakers pareceu simples, a princípio, porque o chinês estava sem dores, andando normalmente, e dizendo que parecia uma contusão bem mais tranquila do que a fratura anterior, que quase lhe tirara das Olimpíadas. Mas o tratamento não teve as respostas desejadas e, agora, já se fala numa fratura problemática que tirará Yao de toda a próxima temporada e, talvez, encerre de vez sua carreira. Creio que ele tentará voltar às quadras e conseguirá, até porque não sente dores apesar da gravidade da lesão, mas provavelmente nunca será mais o mesmo. Sabemos que as fraturas são cada vez mais frequentes e preocupantes, sua perna já tem mais pinos do que partida de boliche, e não será possível usar o pivô por muitos minutos, fazendo com que seja relegado a uma posição bem secundária. Sua carreira agora não reserva grandes avanços ou promessas, apenas uma silenciosa aceitação de que seu papel na NBA parece estar se finalizando. Para o Houston, a notícia é terrível porque a equipe estará sem qualquer pivô para a próxima temporada e Tracy McGrady, que fez uma preocupante operação no joelho, deve perder no mínimo metade da temporada que vem. Vai dar trabalho convencer Ron Artest a ficar e tapar todos os buracos que surgem a cada segundo no elenco.

Mas a missão de Yao Ming parece completa. Como ele mesmo afirmou, após as Olimpíadas a sensação era de um vazio digno do dever derradeiro quando se vê terminado. Mesmo quando ele se aposentar, torcedores chineses continuarão acordando cedo para assistir às partidas do Houston Rockets. Comprarão os produtos da NBA numa cultura que foi assimilada brutalmente. Agora, eles fazem defitivamente parte de nós. Yao Ming, infelizmente, terá que descansar segurando mais esse peso. Ainda que aposentado, terá que vislumbrar a obra que, sem querer, ajudou a criar. Para ele, não há sono tranquilo: uma vida inteira com um fardo maior do que qualquer um poderia carregar.

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