Nosso leitor Artur Oliveira nos mandou recentemente uma pergunta sobre Manu Ginóbili: como foram seus primeiros anos no Spurs?; por que foi sempre um “reserva de luxo”?; poderia ter sido uma estrela no nível de Kobe, LeBron e Duncan caso tivesse sempre sido titular? Acredito que a resposta para essas questões podem mostrar que a “titularidade” na NBA é um conceito pouco compreendido, assim como a função de “sexto homem”, e que nos últimos anos caminhamos a passos rápidos de jogar na privada o valor simbólico de ser titular em troca de fazer o que é mais importante para o time e, nesse processo, receber a admiração devida.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Enquanto você ler esse texto, Ginóbili sofrerá cerca de 100 faltas”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Manu-flop.jpg[/image]
Manu Ginóbili demorou um pouco para entrar no draft da NBA, jogando antes no basquete argentino e na Europa. Com 22 anos, foi escolhido pelo Spurs na posição 57 do draft mas levou três temporadas para finalmente ir jogar na NBA. Nesse meio tempo, zerou o basquete europeu no hard: ganhou campeonatos nacionais na Itália e a Euroliga, quando foi eleito MVP das finais da competição. Chegou no Spurs como o melhor jogador do planeta a não jogar na NBA e mesmo assim foi colocado pelo Popovich no fundo do banco de reservas, conquistando minutos aos poucos. Seu estilo pouco ortodoxo não combinava em nada com aquele Spurs quadradinho, defensivo e disciplinado, então teve que encontrar um meio termo entre afirmar seu estilo de jogo desobedecendo seu técnico e manter um jogo tradicional e eficiente que lhe conquistasse minutos. Nos playoffs de sua temporada de novato, Popovich já havia percebido que suas jogadas caóticas eram a melhor maneira de confundir adversários já acostumados com o modo do Spurs de jogar e se tornou peça fundamental para o banco de reservas da equipe na conquista do campeonato. Na temporada seguinte, continuou com seu papel de principal arma ofensiva vinda do banco, se adaptando mais e mais ao jogo da NBA e mostrando claramente ser um dos melhores jogadores da equipe. Na temporada 2004-05, já havia se tornado titular na equipe e formava com Tim Duncan e Tony Parker o melhor trio da NBA. Apesar das lesões que atrapalharam sua temporada seguinte, não havia mais nenhuma dúvida sobre sua “titularidade”. Até que na temporada 2006-07, achando que Ginóbili era mais eficiente vindo do banco contra os reservas adversários, armando o jogo na ausência de Tony Parker e depois jogando ao lado de Duncan e Parker nos momentos decisivos dos jogos, o argentino foi um reserva com minutos de titular. Na temporada seguinte, ganhou o prêmio de Melhor Sexto Homem da NBA tendo números – e minutos – superiores a qualquer outro reserva da Liga e provou que vir do banco não significa ter um papel menos importante ou menor relevância para o funcionamento da equipe. Enquanto Antawn Jamison, uma estrela na NBA no começo dos anos 2000, foi forçado a jogar como reserva pelo Mavs em 2004 – levando o prêmio de Melhor Sexto Homem – e NUNCA MAIS aceitou ser reserva na vida, até que sua carreira foi engolida pela irrelevância, Ginóbili abriu as portas para a estrela que vem do banco e não vê nisso qualquer demérito ou prejuízo.
É sempre importante lembrar que basquete não é futebol: substituições não são irreversíveis, de modo que jogadores podem entrar e sair a todo momento para formar os quintetos que mais se encaixem à formação adversária. Isso quer dizer que jogadores com papéis muito limitados num time – só defender, ou só arremessar de longe, por exemplo – podem ser úteis nos minutos iniciais de um jogo para criar um ritmo específico, ou para atrapalhar o ritmo adversário, e depois desses minutos nunca mais pisar na quadra, abrindo espaço para jogadores mais importantes para o funcionamento geral da equipe. Na última década, tornou-se bastante comum que times começassem com armadores puramente defensivos para parar a estrela adversária, impedindo que ela entrasse numa situação de conforto que levasse a um bom ritmo no ataque no restante da partida. Após frustrar a estrela adversária por alguns minutos, esse jogador puramente defensivo dava lugar a um jogador mais completo que se manteria em quadra por quase a totalidade do jogo.
Nossa mentalidade de futebol – ou talvez nossa mentalidade de videogame – nos leva a achar que o time deve sempre colocar seus melhores jogadores em quadra desde o início dos jogos, o que certamente não é o caso no basquete. Em geral, espera-se que os jogadores mais completos, com mais recursos, estejam em quadra na maior parte do tempo e especialmente nos momentos decisivos de um jogo, mas os jogadores especialistas – com funções bem delimitadas e específicas – precisam entrar durante alguns momentos para mudar a partida, e esse momento pode ser justamente o primeiro quarto, o que muda a formação titular mas não a importância de cada jogador. Manu Ginóbili foi um dos jogadores mais importantes – por vezes, o jogador mais importante – do Spurs que dominou a década passada, será eleito para o Hall da Fama da NBA e passou a maior parte de sua carreira nos Estados Unidos como reserva. Se não tivesse sido reserva, isso em nada teria mudado sua importância, seus minutos em quadra ou seu status na Liga, no máximo teria dificultado um ou outro encaixe tático do Popovich e tornado mais difícil o caminho do Spurs na conquista de seus muitos anéis.
Se o prêmio de Melhor Sexto Homem da NBA um dia já teve a intenção de mostrar quem é o melhor jogador “de segundo escalão”, ou seja, o melhor jogador dentre aqueles secundários que não merecem ser titulares, hoje em dia ele é um prêmio completamente diferente que tenta prestigiar o melhor jogador disposto a abrir mão de sua condição simbólica de titular em nome do bom funcionamento do seu jogo e da sua equipe – motivo pelo qual dificilmente o prêmio é dado para jogadores em times fora da zona de playoff, numa indicação de que o “sacrifício simbólico” deve ser feito em nome das vitórias, objetivo principal do esporte. O único critério real para o prêmio é ter jogador mais partidas como reserva do que como titular ao longo da temporada, o que obviamente favorece as grandes estrelas que tenham minutos de titular mesmo que alguns jogadores especialistas, secundários, também tenham chances de levar a premiação.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”MVP das Finais? Sim. MVP de saber vestir um boné? Jamais.”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Iggy.jpg[/image]
Um dos grandes favoritos ao prêmio nessa temporada, Andre Iguodala é exemplo de um jogador de primeira linha vindo do banco de reservas. Pensado para ser o rosto do Sixers no primeiro momento de reconstrução – aliás, ele era a segurança de que a equipe não naufragaria por completo caso começassem de novo – eis que agora ele faz parte do banco de reservas do Warriors, transformando partidas inteiras com sua presença em quadra. A princípio desgostoso com ter que começar no banco, Iguodala ganhou nada mais nada menos do que o prêmio de MVP das Finais passadas quando foi campeão, afirmação máxima de que ele foi o jogador que mais fez diferença no título do Warriors. É isso que faz o tal “sexto homem”: muda o jogo, acrescenta algo que não estava na equipe inicial, traz um ajuste tático ou técnico importante, um talento que não é oferecido pelo especialista que começou o jogo, ou uma especialização que não faz parte do arsenal do jogador mais importante ou completo que está no quinteto inicial.
No Rockets, Ty Lawson – que no Nuggets era um dos melhores armadores da NBA – simplesmente não faz sentido no quinteto inicial. Seu maior talento é segurar a bola, criar velocidade e jogar na transição, funções que no elenco atual são do James Harden. Sem a bola, Ty Lawson é obrigado a se movimentar e arremessar de fora, dois pontos fracos do seu jogo. A solução é trazê-lo do banco, fazer com que use seus pontos fortes justamente quando o Rockets não os tem, quando ninguém em quadra sabe fazer o que ele sabe. É claro que isso limita os minutos do Lawson, já que Harden passa tempo demais na quadra, então o time tem que equilibrar momentos em que o Lawson é verdadeiramente útil com momentos em que ele é mediano e desnecessário, apenas para não desperdiçá-lo por completo. Victor Oladipo, do Magic, vive situação parecida: embora muitas vezes seja o melhor jogador da equipe, seus talentos acabam sendo pouco utilizados quando o quinteto inicial tem tantas opções ofensivas. A solução foi colocar um armador mais limitado, mas eficiente, para levar a bola às mãos dessas armas ofensivas, e Oladipo entra em quadra depois, justamente quando o Magic tem menos opções e precisa de todo o talento do jovem armador para continuar competitivo. Joakim Noah, no Bulls, fica cada vez menos essencial à equipe titular quando tanta gente é capaz de armar jogadas, levar a bola para a cesta e criar espaços. Quando vem do banco é para trazer esses talentos em momentos de estagnação – o fato de que jogue cada vez menos é apenas sinal de que os jogadores ofensivos do Bulls estão ocupando mais e mais minutos, de modo que a “mudança” trazida por Noah não é mais necessária.
Por vezes, essa mudança vem das mãos de especialistas mais limitados e que portanto não podem ficar muitos minutos em quadra, cumprindo a função determinada e depois voltando ao banco. É o caso de Gerald Green no Heat, que oferece arremessos quando o time precisa de poder ofensivo, de Jamal Crawford no Clippers quando a equipe tem problemas no perímetro ou enfrenta defesas muito fechadas, Tristan Thompson quando o Cavs precisa de rebotes ofensivos, Paul Pierce em todas as suas passagens pós-Celtics quando equipes precisam de criação de arremessos na marra em momentos decisivos dos jogos, Dennis Schroeder no Hawks para impor velocidade, David West no Spurs para momentos ultra-mega-super-físicos e Will Barton no Nuggets para trazer talento, que por lá anda em falta. Todos esses jogadores, embora não passem a maior parte do jogo em quadra, trazem qualidades específicas que transformam seus times taticamente ou suprem necessidades que o quinteto titular não conseguem dar conta. São todos candidatos ao prêmio de Melhor Sexto Homem da temporada até agora, e em alguns casos são até melhores do que os titulares (ou, no caso do Will Barton, talvez até seja o jogador mais interessante da equipe). Manu Ginóbili abriu uma porta que condiz inteiramente com a nova fase da NBA, que valoriza tanto a coletividade: vir do banco é questão tática, não de talento. Quem decide isso não deve ser o ego, mas a pura e simples necessidade da equipe.