A discussão sobre o melhor jogador e o melhor time de todos os tempos passa, invariavelmente, pelo incrível recorde conquistado pelo Chicago Bulls na temporada 1995-96: foram 72 partidas e apenas 10 derrotas, o único time da história a sequer alcançar a marca de 70 vitórias. O impacto que essa temporada teve no imaginário tanto dos fãs de basquete quanto dos leigos é inacreditável. Quem entendia de basquete acreditava estar vendo um milagre, e as temporadas seguintes apenas confirmaram quão impensável era a ideia desse recorde se repetir novamente. Quem não manjava nada de basquete acompanhou o impacto desse Bulls e passou a ter uma resposta simples, hegemônica, para qual jogador era o melhor da história: Michael Jordan. No assustador universo de informações quase infinitas, o cidadão comum podia usar sem medo o filtro dessa temporada e saber quem havia sido o melhor jogador do planeta mesmo sem nunca ter visto uma única partida de basquete na vida. É assim que acontecem esses fenômenos culturais: eventos como a temporada 1995-96 mostram o que um leigo deve ou não deve saber porque ele é bombardeado pelo feito histórico por todos os lados na imprensa e no boca-a-boca. Pergunte para qualquer senhorinha na rua e ela provavelmente saberá quem foi Michael Jordan.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Depois de apanhar tanto, Barkley prefere achar Jordan um alienígena”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Jordan-Barkley.jpg[/image]
O estabelecimento daquele Bulls e do Jordan que o liderava como ápices do basquete é tão intenso – e tão facilitador, até mesmo para os entendidos – que a possibilidade de um time qualquer, não estabelecido, com um jogador que chegou onde está pelas beiradas, e com um estilo de jogo que contraria tudo aquilo que aprendemos sobre basquete, é inimaginável ou ofensiva para a maioria de nós. Isso explica em parte as afirmações de Charles Barkley de que o Warriors não seria campeão na temporada passada, e de que o Bulls de 95 “engoliria” esse Warriors sem maiores dificuldades. É como se esse Warriors estranho, esquisito, sem uma estrela consagrada como Jordan ameaçasse o valor da temporada do Bulls e retirasse a tranquilidade da resposta óbvia e tranquila. Se um time fora do padrão quanto o Warriors consegue surgir de maneira tão repentina, sem pompa, sem alarde, por baixo dos radares de todos os comentaristas e “especialistas” esportivos, então as chances de que aconteça de novo com outro time são grandes. Muitos dos entendidos não querem acordar todo dia de manhã sem suas bases de certeza, aquelas que usamos como critério de comparação pelo qual entender todos os outros times, e nem ser surpreendidos ou provados errados o tempo inteiro. Muitos dos que não acompanham e não entendem, a não ser superficialmente, também não querem a opressão de ter que acompanhar sempre para saber quem é melhor, quem vale a pena acompanhar – querem o impacto cultural definitivo, aquele que é preciso conhecer para saber de tudo que vale a pena saber. O surgimento desse Warriors tira o sono de muitos, ameaça critérios e padrões, desvaloriza lembranças afetivas de quem associa o Bulls “de antigamente” ao começo ou ápice de sua paixão pelo esporte, complexifica nosso entendimento do basquete, tira nossas seguranças sobre o que funciona e o que não funciona. Ou seja: substitui o fato pronto e estabelecido pela emoção de uma revolução eternamente eminente. Torna o basquete apaixonante, surpreendente e emocionante. Quando a conversa pelos grandes estaciona em Michael Jordan, perdemos a chance de aproveitar as revoluções de Kobe Bryant, LeBron James, Tim Duncan. O basquete vira uma coisa sem graça, eternamente simulando um passado que não pode ser superado. Mas quando olhamos verdadeiramente para as atuais estrelas, abertos à inconstância da eterna mutação, podemos nos permitir ver uma história que está sendo feita, que está sendo construída, e que pode superar o passado a qualquer momento, a qualquer instante. Talvez só falte a LeBron mais um par de jogos épicos nos playoffs, se estivermos olhando. Mas a maior parte de nós já decidiu que ele não iria conseguir antes mesmo dos jogos começarem.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Curry enfrenta o passado até de olhos fechados”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Kobe.jpg[/image]
É por isso que o Warriors quebrar o recorde de vitórias em uma temporada é um feito que vai muito além de ser líder no Oeste, de ter mando de quadra ou de embalar seus jogadores. Vencer mais de 72 vezes criaria uma explosão dentro da NBA, um feito de impacto cultural inegável, trocaria as velhas estruturas e padrões e colocaria o basquete num estado de incerteza que não só nos obrigaria a olhar com muita atenção mas também nos faria olhar para o presente como se ele fosse um espaço em que tudo é verdadeiramente possível, todos os feitos, as marcas e os recordes. E com sorte teremos a inteligência de, 50 anos no futuro, não estar repetindo que “o Warriors de 2016 foi o melhor de todos os tempos e nunca será superado”, porque esses recordes vão quebrar de novo, de novo e de novo, para desespero dos analistas e dos fãs de canto de olho e dos saudosistas inveterados. O recorde de vitórias do Warriors seria uma vitória simbólica que colocaria o presente definitivamente no mapa, o jeito moderno de jogar como uma inovação real e histórica, e gente como Charles Barkley – ainda latindo que esse Warriors é uma farsa – para fora do campo sério das análises do esporte.
Hoje em dia, é padrão chegar ao fim da temporada regular com mando de quadra iminente e descansar titulares para que estejam em plenas condições físicas durante os playoffs. Mas Stephen Curry já disse claramente que, caso cheguem no fim da temporada e o recorde de mais vitórias seja algo possível, a equipe deveria fazer o necessário para conquistá-lo. Curry parece entender, ao meu ver, que um time desacreditado e ridicularizado como o dele – em parte pelas comparações com o passado, em parte porque muita gente não sabe explicar o que eles estão fazendo – precisa de uma vitória simbólica, um recorde para chacoalhar crenças estabelecidas antes que Curry tivesse sequer entrado numa quadra de basquete. Seria estranho esse Warriors quebrar recordes e não ganhar um anel de campeão, mas acredito que mesmo que o campeonato não venha, o recorde seria suficiente para criar um rasgo na história, para concretizar aquele famoso grito do Garnett ao ser campeão com o Celtics: “tudo é possível”. Porque dentro de uma quadra de basquete, nada deveria estar decidido antes da partida começar, inclusive quem são os grandes, quais são os recordes inquebráveis, quais são os limites. Com 36 vitórias e apenas 2 derrotas, o Warriors torna isso mais e mais possível a cada jogo. Eles já tem exatamente a metade das vitórias que precisam para igualar o recorde, mas com menos derrotas do que o Bulls tinha à época. Abram bem os olhos: a história está sendo feita. O tempo todo, sempre, até pelos jogadores e times que a gente menos espera.