O último invicto

A atual geração do Milwaukee Bucks foi um projeto verdadeiramente estranho: não é possível dizer com precisão quando isso virou um plano, mas houve uma tentativa real de tornar a equipe a mais alta possível, priorizando jogadores com grande envergadura e possibilidade de jogar em múltiplas posições. Como Giannis Antetokounmpo é um jogador pouco usual, com 2,11m de altura e 2,21m de envergadura mas a capacidade de correr a quadra inteira e carregar a bola, pareceu uma boa ideia construir um time ao seu redor que fosse, de alguma maneira, seu espelho. Nas mãos do técnico inexperiente Jason Kidd, Antetokounmpo se tornou o armador principal da equipe, com todas as jogadas passando pelas suas mãos e a oportunidade de puxar contra-ataques como se fosse um rolo compressor rumo à cesta. Supostamente, a experiência de Kidd como um dos melhores armadores “puros” de todos os tempos ajudaria Antetokounmpo a dominar a posição e transformaria o Bucks numa potência incrível nos contra-ataques. Para gerar esses contra-ataques, se aproveitando dos braços longos de todo o elenco, Kidd construiu uma defesa pautada no ataque às linhas de passe, gerando roubos de bola constantes. Parecia que tínhamos à nossa frente o time do futuro, não apenas porque Antetokounmpo é novo e tem espaço para crescer, mas principalmente porque estávamos vendo uma ABORDAGEM de construção de time inovadora, algo que só parecia possível em nossos tempos atuais de muito SUSTAGEN™ e hormônios de crescimento.

Na prática, no entanto, esse projeto inovador foi se mostrando progressivamente DESFUNCIONAL. Sem jogar na transição ofensiva o ataque da equipe se transformava num logo e doloroso PARTO, incapaz de construir jogadas interessantes, com sérios problemas de espaçamento e uma dificuldade tremenda de converter bolas de três pontos. A necessidade de roubar bolas se tornou, então, ainda mais essencial, deixando o time afoito, estabanado e permitindo que os adversários se aproveitassem disso: cada bola que o Bucks tentava roubar e errava se transformava em algum oponente livre para uma infiltração ou uma bola de três pontos, que por sua vez forçava o Bucks a repor a bola e construir uma jogada de meia quadra. Sob comando de Jason Kidd o chegou aos Playoffs duas vezes, o que foi um marco incrível para uma franquia em reconstrução, mas as limitações do time eram evidentes e não mostravam qualquer sinal de melhora – pelo contrário, como a melhora esperada não vinha, a equipe foi se tornando cada vez mais frustrada, perdendo jogos e apontando dedos para a comissão técnica. Ainda nos primeiros meses da temporada passada Jason Kidd caiu, dando lugar ao seu assistente Joe Prunty, mas nenhuma grande mudança ocorreu no esquema tático. Se classificaram em sétimo lugar no Leste (estavam em oitavo quando Kidd foi demitido) e perderam na primeira rodada dos Playoffs apesar de fazer uma série dura contra o Celtics. Ficou evidente que o potencial desse Bucks é incrível, e que eles conseguem bater de frente com os grandes times da Liga, mas que o fazem na base do talento e do esforço, prejudicados por uma IMAGINAÇÃO de como esse time deveria jogar que não se encaixa naquilo que as demais equipes estão fazendo.

Para essa temporada temos finalmente a primeira mudança drástica no time em anos: o ex-técnico do HawksMike Budenholzer, fugindo do processo de reconstrução que se instaurou em Atlanta. No seu melhor ano por lá Budenholzer chegou a ser técnico do ano, quando seu Hawks de 60 vitórias tinha a quinta melhor defesa da NBA e era o quinto time a mais arremessar bolas de 3 com o segundo melhor aproveitamento da Liga. Ainda que na época ser o time que mais arremessa do perímetro significasse míseras 10 bolas de três pontos tentadas por partida (DEZ, meu deus, DEZ!), o que temos aqui é um técnico muito mais dentro das tendências atuais do basquete, de defesa forte e coletiva e arremessos de longa distância. Como será que um projeto de basquete estranho, fora da curva, cheio de gente gigante, reagiu a essa abordagem mais moderna e ligada na “cartilha” do basquete contemporâneo?

Em seus primeiros 7 jogos, o Bucks é o último time invicto a restar na NBA após vencer o Raptors, invicto antes do confronto. Mas o mais importante não é ver as vitórias se acumulando e nem a liderança do Leste, é ver COMO o time alcançou essas marcas. Para efeitos de comparação, o Bucks da temporada passada tentava 24.7 bolas de três pontos por jogo, acertava 8.8 e tinha 35% de aproveitamento. Na temporada atual são praticamente QUARENTA tentativas por jogo, acertando 15 e com 37% de aproveitamento. Na prática, o Bucks era o quinto a tentar menos arremessos de longa distância e o quarto a acertar menos desses arremessos; agora é o segundo que mais tenta bolas de três pontos, pouca coisa atrás do Rockets (39.8 contra 41.2), e é o time que mais acerta essas bolas em toda a NBA. É essencial notar que a lição do Rockets está aprendida: o Bucks é apenas o nono melhor time em aproveitamento de bolas de três pontos, mas isso é o de menos se você estiver acima do número mágico de 35% de acerto. O volume surreal de 40 bolas de três por partida é suficiente para fazer a conta valer a pena, e é uma excelente notícia porque não significa que o time está apenas em uma “fase” em que todos os arremessos estão caindo.

O mais engraçado é que o time não recebeu grandes arremessadores, não fez uma reformulação no elenco, não fez trocas mirabolantes: apenas mudou a ABORDAGEM. Atualmente na sua sétima temporada na NBA, o pivô John Henson tinha apenas uma bola de três pontos convertida na carreira; agora, com carta branca para arremessar, já tem 5 bolas de três feitas em 6 jogos disputados, com 41% de aproveitamento. O pivô Brook Lopez, aquisição do time para a temporada, praticamente VIVE no perímetro e está arremessando sozinho 6.5 bolas de três pontos por jogo, também com 41% de aproveitamento. E Antetokounmpo, que está com 6% de aproveitamento no perímetro (sim, você leu direito, SEIS POR CENTO), continua tentando 2.7 bolas de três por jogo, recorde da sua carreira. Questionado sobre sua dificuldade com as bolas de longe nessa temporada, incluindo um arremesso que sequer chegou no aro, Antetokounmpo respondeu: “Vou continuar arremessando. Não vou parar. Trabalhei duro no verão. Não vou parar.”

Com quase 30% de aproveitamento na carreira – número longe do número mágico necessário, mas ainda MAIS LONGE dos seus medonhos 6% atuais – a ideia é que ele simplesmente continue tentando porque, eventualmente, as bolas vão cair. É isso que fazem os times atuais focados majoritariamente em arremessos de longe: com um volume maior de bolas de três você passa a confiar na probabilidade, mantendo as tentativas mesmo quando não estiverem caindo, e tentando escapar dos outros tipos de arremesso que são estatisticamente piores.

Para se ter uma ideia da nova abordagem do time e do rigor técnico com que o time está seguindo o plano, dos primeiros 355 pontos que o Bucks marcou na temporada apenas QUATRO foram de meia distância. Ou seja, temos 351 pontos vindos do perímetro, de dentro do garrafão ou da linha de lances livres. E como o time é um dos piores em cavar faltas, dá pra perceber como as bolas de três tem sido parte principal do ataque da equipe. Nesse esquema, finalmente vemos o ataque do Bucks fluir: com os pivôs fora do garrafão há um espaço inédito para Antetokounmpo infiltrar, o que está gerando sua maior média de assistências da carreira mesmo armando menos o jogo do que nos tempos de Kidd. Infiltrar e passar para fora faz com que os adversários sejam obrigados a se preocupar com algo além da proteção de aro, de modo que o alto número de desperdícios de Antetokounmpo em passes forçados é compensado pelo temor dos oponentes que lhe geram mais espaço para pontuar. Khris Middleton, que sempre foi um bom arremessador de três ponto mas passava a maior parte do seu tempo em quadra dando arremessos de média distância, está tendo o melhor momento de sua carreira podendo passar mais tempo no perímetro com bolas mais eficientes. Seus 57% de aproveitamento em 7 tentativas de três pontos por jogo é uma marca SURREAL, inacreditável, e que ao ver os jogos parece algo que ele poderia estar fazendo há muito tempo se tivesse tido essa oportunidade tática.

Não quero passar a falsa impressão, no entanto, de que o time está jogando de maneira impecável, inteligente e bonita de se acompanhar. Pelo contrário, o time ainda tenta arremessos estúpidos, tem dificuldades de movimentação e Antetokounmpo ainda toma mais más decisões em quadra do que seria desejável para um jogador com a sua capacidade. Mas a graça está no fato de que isso NÃO IMPORTA quando o foco ofensivo está no lugar certo e quando, claro, a defesa segura as pontas do outro lado. Com a nova defesa ajudando, Antetokounmpo deixou até de ser essencial: foi sem ele a vitória em cima do Raptors, e com minutos limitados dele a vitória fácil em cima do Magic na semana anterior.

O ataque desenhado pelo técnico Jason Kidd fazia OLHOS SANGRAREM, mas nada deixava os torcedores mais indignados do que sua defesa agressiva-porém-ingênua que ou roubava bolas ou tomava cestas fáceis. O técnico Mike Budenholzer, por sua vez, resolveu colocar em prática uma defesa muito mais tradicional – e ensinar aquela lição super importante pra todos os iniciantes em NBA de que boa defesa NÃO É sinônimo de bolas roubadas. A ideia do técnico Bud é continuar forçando desperdícios de bola dos adversários, mas não necessariamente roubos: os jogadores agora MANTÉM suas posições, não tentam interceptar as linhas de passe, mas tentam usar suas envergaduras para DESVIAR as bolas sempre que possível, especialmente no garrafão. É o esquema que o Warriors imortalizou nos últimos anos: uma defesa “sanfona”, em que vários braços surjam no garrafão sempre que a bola por para lá tentando desviar sua trajetória e forçando a jogada a recomeçar ou, se possível, uma bola roubada. A diferença vem do fato de que o roubo é CONSEQUÊNCIA dos jogadores estarem nos lugares certos com os braços ativos e bem posicionados, não o objetivo final da defesa. Defesas fixas, que não pulam para interceptar qualquer passe, conseguem contestar melhor os arremessos e em geral estão em condições de lutar pelos rebotes defensivos de maneira muito mais fácil. O time, que era um dos piores em rebotes defensivos da NBA na temporada passada (o que, aliás, atrapalhava muito as tentativas de contra-ataque), agora é o melhor DISPARADO nesse quesito. Brook Lopez, famosamente um dos piores pivôs em rebotes por jogo, está se saindo muito bem em fazer o box-out, ou seja, empurrar os adversários para longe do garrafão para que outros jogadores possam conseguir o rebote. Antetokounmpo agora tem mais de 14 rebotes por jogo e consegue, com seu poder físico, puxar contra-ataques mesmo sem depender de roubos de bola.

Essa defesa menos agressiva, mais disciplinada, também está usando as tendências estatísticas atuais para escolher os LUGARES em que se posiciona: é atualmente o time que mais força os adversários a tentar arremessos de meia distância, justamente aquele que o Bucks evita dar porque sabe que FEDE. O perímetro marca em cima, pressionado, sem espaço para bolas de três pontos, e o garrafão tenta desviar as bolas antes de chegar no aro, onde se concentram os esforços de contestação de arremessos próximos à cesta. Entre o perímetro e o garrafão há um espaço razoável para arremesso – um arremesso mais difícil que uma bandeja, e que vale menos do que uma bola de três. A armadilha está no fato de que o adversário tem espaço para dar justamente o arremesso que ele NÃO DEVERIA dar, e o garrafão pode dicar amontoado de braços gigantes e disciplinados que não vão pular em qualquer bola, mas vão desviar passes diretos. É o suficiente para gerar a segunda melhor defesa dessa temporada, pouca coisa atrás do Celtics, os únicos dois times a manter os adversários abaixo dos 100 pontos a cada 100 posses de bola por jogo – marca, aliás, que nenhum time conseguiu manter na temporada passada.

Não vou negar que torcia pelo Bucks bizarro, esquisito, gigantesco, sem posições definidas de anos atrás. Queria ver um time tão fora da caixinha conseguir provar para a NBA que existem outros caminhos a serem seguidos, que vale a pena apostar em projetos inesperados e criativos. O problema é que a esquisitice, embora interessante e criadora de uma personalidade, começou a funcionar como um TETO para a equipe, limitando o potencial do elenco e impedindo que eles alcançassem os resultados que desejavam.

É uma linha tênue e muito complicada entre abrir mão de sua própria identidade, de suas coisas esquisitas, daquilo que faz você quem você é, e manter suas esquisitices por pura birra, só de teimosia, mesmo quando elas atrapalham a sua vida e quem você quer ser. Fico feliz de ver que o Bucks ainda tem suas particularidades (afinal, Antetokounmpo nunca será um jogador tradicional), mas soube abrir mão daquilo que estava prejudicando seu funcionamento e aderir à cartilha do basquete moderno. Tudo simplesmente por confiar em seu novo técnico (o que, pelo vídeo abaixo, dá a entender que NINGUÉM do elenco confiava em Jason Kidd).

É só começo de temporada, tudo leva asterisco e as coisas podem mudar muito rápido, mas pode colocar desde já Mike Budenholzer na lista de possíveis técnicos do ano. Conquistar a confiança de um elenco tão rápido e ajudar uma equipe a se livrar de vícios que eram tão identitários rumo a uma modernização não é tarefa fácil. Mas com seu sucesso, cada vez mais times devem seguir a mesma linha: fica difícil defender outros modelos de basquete quando a mudança do Bucks foi tão incrivelmente funcional e parece ainda ter tanto espaço para crescer, com aquele teto anterior arrancado às marteladas. Como seria, por exemplo, o Sixers, caso resolvesse fazer o mesmo?

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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