>Olhando no espelho

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Brasileiros e australianos: histórias parecidas,
tirando o samba e os cangurus

A seleção brasileira está se esforçando no basquete em cadeira de rodas, disso não há dúvidas. Houve preparação, planejamento, treinamento, um susto bem dado numa das melhores seleções do mundo. O time botou medo, ganhou respeito, admiração e nosso total e irrestrito apoio. Mas tem vezes em que as coisas simplesmente não dão certo. Depois de ter o doce arrancado da boca no momento decisivo contra a Austrália, a seleção brazuca teve problemas em colocar a cabeça no lugar e ganhar de quem podia ganhar. Ontem deu tudo errado contra Israel, um time para o qual o Brasil ganhou e perdeu num passado recente, então era possível sair de quadra com a vitória. Segundo os próprios israelenses, os dois times são muito nivelados e o foco seria na defesa, nos detalhes. Ou seja, dava pra vencer, mas não foi o caso.

A seleção pecou no aproveitamento dos arremessos. Segundo a prancheta do assistente técnico Sileno Santos, o Brasil só acertou 23 dos 55 arremessos de média distância, 3 dos 11 arremessos de três pontos e 20 das 44 bandejas tentadas. Apesar da atuação não muito inspirada, o jogo estava parelho até um apagão no terceiro período, em que os israelenses abriram uma larga vantagem que não perderam mais. A seleção brasileira sabia das dificuldades de Israel (além da Faixa de Gaza, claro) e sabia o tipo de jogo que precisava impor, mas no fim a altura avantajada e a experiência internacional dos israelenses acabaram falando mais alto. Quando o Brasil reagiu no período final, já era tarde demais. Ao fim, foram 7 pontos de vantagem e agora os brasileiros precisam de atuações impecáveis para continuar na competição. A seleção precisa aplicar uma sova na Grã-Bretanha e depois derrotar os chineses.

Só que mais importante do que as vitórias, como bem disse nosso leitor angolano Manguxi na caixa de comentários, é mostrar que é possível jogar com as seleções de alto nível que possuem mais condições, mais dinheiro, mais apoio, mais cobertura e mais incentivo. A participação de Angola nas Olimpíadas foi sofrida, penosa mas honrada. Aliás, honrada porque sofrida e penosa. Em geral vou contra o senso comum no que diz respeito a duas coisas básicas do esporte: o patriotismo e a vitória. Acho esses dois conceitos completamente secundários frente a um universo esportivo que abrange algo mais profundo, complexo, humano e primordial.

Por exemplo: brasileiros cadeirantes, num país em que é um inferno pegar um ônibus até mesmo para andantes, estão em Pequim dando sufoco para australianos em quadra. São indivíduos de países e realidades completamente distintas que se encontram sob as mesmas circunstâncias – se em cadeiras de alumínio, titânio ou diamante, isso tanto faz. São circunstâncias desfavoráveis que foram vencidas através do esporte tanto aqui quanto lá, tanto no Brasil quanto na Austrália. O encontro em quadra é o encontro de vitórias muito maiores do que podemos compreender, todas atreladas a um estranho interesse em comum: encaixar uma bola alaranjada num aro pendurado horizontalmente num lugar alto. É ao basquete (e não a um país), então, que a seleção brasileira deve o esforço que empenha dentro e fora de quadra, o esforço que quase derrotou os australianos, que os deixou no sufoco, que os obrigou a lutar pela vitória até o último segundo. Pra mim, é mais do que óbvio que, ao fim do jogo, o que resta é a admiração dos australianos pelos brasileiros. E acredito que o oposto também seja válido. Quando um esportista olha para o outro, admitindo o tipo de sofrimento, dedicação e obstáculos vencidos para chegar lá, está na verdade se olhando no espelho e percebendo que sua história é grandiosa. Unida em quadra a outras histórias, grandiosas como a sua.

É claro que, ao saber que o time brazuca tem claras condições de vencer, é muito frustrante aceitar uma derrota atrás da outra. Mas o Brasil ainda tem chances de se classificar, ainda existem outros jogos e, acima disso, ainda existem coisas muito maiores em jogo. Existem sentimentos de vitória muito diferentes do que estamos acostumados nas aulas de Educação Física. Sentimentos que, às vezes, só são plenamente compreendidos depois, quando a poeira abaixa. É o respeito de outras seleções durante o jantar, um olhar de canto de olho admirado de um australiano, uma história de vida igual que se vê no espelho nos olhos de outra pessoa que nem fala a sua língua e que, de outro modo, sequer viria a conhecer.

É uma pena que sejamos obrigados a acompanhar tão de longe esse espetáculo que se desdobra em detalhes em Pequim, sem que possamos assistir a um jogo, vibrar e sofrer junto com todos os atletas. Somos obrigados a ver a Luciana Gimenez na televisão e tentar achar algo de poético nela presidindo um debate entre Inri Cristo e Toninho do Diabo. Maior merda. Sem uma cobertura à altura, perdemos a chance de também nos olharmos no espelho – pessoas sofridas, suadas e vencedoras, como cada um de nós, como todos nós.

No esporte, às vezes é fácil esquecer que estamos lidando com seres humanos. Aqui no Bola Presa não cansamos de aloprar o Zach Randolph porque ele é gordo e só passa a bola se ganhar um Twix em troca. O mundo cansou de zoar o Marko Jaric porque ele entrou em quadra com a camiseta ao contrário (o que obviamente é dor de cotovelo porque ele come a Adriana Lima). E mesmo sua avó que nunca ouviu falar em basquete já aloprou o Darko Milicic por ele ter sido segunda escolha do draft e não saber nem ir ao banheiro sozinho. Mas a verdade é que todos eles são humanos, gente de verdade com sensações, sentimentos e histórias de vida conturbadas com doses cavalares de lágrimas, sofrimento e uma Adriana Lima ou duas para compensar. Com esse recente boato de que o Randolph será trocado para o Grizzlies em troca de Darko e Jaric (só mesmo o Knicks consegue fazer o Grizzlies se sair bem numa troca, qualquer outro time conseguiria trocar o Gasol por três feijões mágicos), como será que esses jogadores estão se sentindo? O que se passa na cabeça de um Randolph que, apesar de fazer 20 pontos e pegar 10 rebotes a carreira toda, continua sendo tacado de um lado para o outro como um pedaço de lixo?

É mais fácil rir de um jogador fora de forma que ganha milhões de dólares por ano só para ficar roliço, assim como é mais fácil tratar um jogador desses como robô. É fácil exigir que o Artest e o Rasheed Wallace “calem a boca e apenas joguem”, ou proclamar que todos devem seguir um código de vestimenta. Mas quando estamos lidando com o basquete paraolímpico, parece que a humanidade dos envolvidos fica mais explícita. Somos capazes de, ao mesmo tempo, ver toda a limitação e a superação que existem conjuntas, ao mesmo tempo, e que é o que nos torna humanos afinal de contas. Não quer dizer que o Randolph não apanhe e não supere, mas isso fica escondido por trás de toda uma idealização, notas verdinhas e um estilo de vida. No basquete paraolímpico, a realidade e a humanidade é mais como um tapa na cara, um chamado para que vejamos o que nos limita e o que nos fortalece, assim como eles próprios podem se ver nos outros atletas. Espelhos se olhando no espelho.

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