>A partir de hoje, o Bola Presa coloca no ar uma série de 3 artigos sobre o novo Miami Heat. Cada um deles será focado em um dos três jogadores que acabam de assinar com a equipe (LeBron James, Dwyane Wade e Chris Bosh), analisando o que essa superequipe significa para cada um deles, para suas carreiras e como decidiram tornar essa união possível. O primeiro artigo, abaixo, trata da estrela que começou no Miami Heat e que apenas recebe seus coleguinhas em sua casa para brincar: Dwyane Wade.
Da expecional turma de draftados de 2003, amplamente considerada a melhor da história, Darko Milicic foi o primeiro a ganhar um anel de campeão. Não entrava em quadra, ficava no banco de reservas com seu cabelo descolorido não entendendo uma palavra daquela língua estranha que se fala nos Estados Unidos, mas foi campeão graças à incrível equipe do Detroit Pistons que sequer precisava de um novato draftado com a segunda escolha para vencer. Mas dentre os mamíferos bípedes jogadores de basquete capazes de levantar os braços e segurar uma bola, o primeiro a ganhar um anel foi Dwyane Wade. O Heat da temporada 2005-06 tinha Shaquille O’Neal chutando traseiros, um par de veteranos com um pé na cova apenas pegando carona na brincadeira para ganhar um título, e uma série de outros tapa-buracos bastante limitados. Era uma equipe no fundo bastante mais-ou-menos, numa conferência Leste fragilizada, encontrando as condições ideias para sagrar-se vencedora. O engravatado David Stern estava em pânico com a queda constante dos placaras da NBA e a queda de audiência que a disseminação da febre “vamos defender como o Detroit Pistons e ter tanto carisma quanto o Tim Duncan” trazia para a liga. Com isso, o Miami Heat encontrou em sua trajetória para o título novas regras de arbitragem que favoreciam muito, aleatoriamente, o estilo de jogo de Dwyane Wade. Seu talento inegável carregou o Heat nas costas durante os playoffs, mas a estranheza das novas regras (que marcavam falta em qualquer contato, tentando inflar os placares do esporte através da cobrança de lances livres) fez com que muitos lidassem com desdém às apresentações de Wade. Seu título tem um asterisco do lado para todos aqueles que tiveram queimada em suas retinas a figura de Wade cobrando lances livres. Quando eu fecho os olhos no quarto, à noite, ainda posso vê-lo cobrando alguns.
Não houve oportunidade para que o Wade pudesse provar que o anel de campeão foi devido aos seus próprios méritos, e não um presente de Natal do David Stern que lhe caiu no colo. Logo na temporada seguinte Shaq já estava em declínio acelerado enquanto o ombro de Wade exigia cirurgia – que, aliás, foi adiada para que pudesse jogar os playoffs apesar das dores e da limitação de movimentos. Tomaram uma varrida de 4 a 0 e o Wade foi direto para o hospital. Na temporada posterior, o time só piorava, Shaq foi mandado às favas, Wade passou a sentir – além do ombro – uma grave lesão no joelho, e frente ao desastre completo decidiram poupar o Dwyane pelos últimos 20 jogos da temporada. É o famoso “pisou na merda, abre os dedos”: já que não tinha como salvar a temporada, era melhor jogá-la fora para conseguir uma escolha melhor de draft. Aquela famigerada tática do “perca por LeBron” que o Cavs usou em 2002-03.
A queda do Heat foi muito repentina, sintoma clássico de um time que se junta aleatoriamente, com um monte de veteranos em fim de carreira, apenas para tentar ganhar um título. A pirralhada perde espaço e de repente todo mundo se aposenta, vai para o bingo ou simplesmente morre, e aí o time está acabado, hora de começar tudo de novo. Sobrou para o Dwyane Wade, portanto, jogar numa equipe em reconstrução – algo que acontece com a maioria dos jogadores escolhidos no topo do draft, mas que para Wade veio tardiamente. Depois dele já ter ganhado seu primeiro anel de campeão.
Dizem que sexo é um troço fácil de viver sem, dá pra passar umas duas décadas sem trepar numa boa, mas depois que você faz a primeira vez, fica difícil passar tanto tempo afastado. O tempo sozinho parece mais amargo, dar “uns beijinhos” parece mais sem graça. É como viver num mundo de Priscilas Fantin (bonitinha) depois de ter conhecido a Alinne Moraes (espetacular). Tudo ganha uma nova proporção. Portanto, a situação do Dwyane Wade tornou-se bastante complicada. Enquanto o LeBron James passou muitas de suas primeiras temporadas jogando com elencos risíveis e “estava tudo bem” porque havia acabado de chegar na NBA, para o Wade não dava para ter um elenco com Chris Quinn e Mark Blount depois de já ter sido campeão. Para piorar, suas lesões e a temporada abandonada do Heat tiraram rapidamente Wade da mídia, seu título de campeão já estava enterrado na fama de “ajuda da arbitragem” e LeBron e Carmelo, colegas de draft, ganhavam mais e mais destaque. Algo precisava ser feito.
Depois de ir pra faca para recuperar tanto o ombro quanto o joelho, Wade iniciou um processo de reabilitação com Tim Grover, um guru de treinamentos porreta para jogadores da NBA. A intenção era que Wade estivesse em plena forma física para defender a seleção americana nas Olimpíadas de 2008 e provar que estava de volta ao grupo dos grandes. Tim Grover pediu 6 semanas, então Wade lhe deu 8 semanas de trabalhos ininterruptos. A princípio, seu nome estava na equipe mais pela fé do técnico Mike Krzyzewski, mas quando os jogos começaram, Wade mostrou que era o jogador em melhor forma física, jogando com mais vontade, e terminou o torneio como cestinha – sem falar de campeão olímpico. Foi amplamente apontado como um dos maiores responsáveis pela medalha de ouro. No mesmo ritmo, começou a temporada da NBA jogando um absurdo. Não tenho nenhuma dúvida de que a temporada 2008-09 do Dwyane Wade foi a melhor temporada que eu já vi ser jogada por qualquer jogador da NBA em toda minha vida. Seu jogo evoluiu com uma velocidade digna de Pokémon, tornou-se um dos melhores e mais explosivos defensores da liga, ganhou um arremesso consistente da linha de 3 pontos e quebrou recordes absurdos: foi o primeiro jogador da história a conseguir, em uma temporada, acumular 2000 pontos, 500 assistências, 100 tocos e 100 roubos de bola. Alguém tem ideia do que significa o Wade, de repente, aparecer e dar mais de 100 tocos numa temporada? Foi o cestinha da temporada e teve médias de 30 pontos, 5 rebotes, 7.5 assistências, 2.2 roubos e bizarros 1.3 tocos por jogo. A temporada mais destruidora que já presenciei. Mas seu time era uma merda completa, terminou apenas em quinto do Leste, e aqueles critérios bizarros para elever MVP nem consideraram o Wade para a disputa, falando apenas de Kobe e LeBron. Sua temporada inesquecível rapidamente virou farofa quando o Heat foi eliminado na primeira rodada dos playoffs de novo, mas dessa vez para o Hawks, que nem é um time de verdade.
Todo mundo sabe que o Wade é um jogador espetacular, especial, um dos melhores de sua geração. Mas não há muita consciência por aí de quão bom ele realmente é. Culpa de uma série de critérios, arbitrários e construídos, que impomos sem pensar à nossa fruição dos jogadores. Fazendo cara de sábios, com sotaque de mestre de kung-fu, dizemos que um verdadeiro grande jogador é aquele que vence, que leva seus companheiros à vitória não importando as circunstâncias. Mas aí, em nossa burrice Luciana Gimenes, fingimos não ver que uma série enorme de fatores decidem se uma vitória é possível: a qualidade do elenco, a dificuldade de sua Conferência, as regras que David Stern impõe para os juízes, a sorte na hora dos jogos e até mesmo na hora de ver quais adversários lhe enfrentarão (prefiro pegar o Mavs em uma final do que qualquer outro time da NBA!). Kevin Garnett não foi capaz de vencer quando esteve no Wolves, enfrentando as terríveis dificuldades de elencos limitados, e por isso não será valorizado. A temporada mística do Wade, em que ele despertou seu Sétimo Sentido, também foi facilmente esquecida porque não resultou em uma longa campanha nos playoffs. Mas aquele Heat era simplesmente um dos piores elencos que já presenciei.
Da mesma forma, o título do Wade é (assim como acontece com Kobe) diminuído pela ajuda de Shaq, por não ser conseguido no próprio suor, e falamos isso depois de duas cervejas quando nem lembramos mais que, 5 minutos antes, dizíamos que o basquete é um esporte coletivo em que a grande estrela deve saber depender de todo mundo. Só existe uma solução possível para essa besteira, e Garnett apontou muito bem após seu título no Celtics: vencer. Vencer rápido, enquanto há tempo. Deixar de lado esses conceitos de “lealdade à equipe e à cidade” quando na verdade você só está sendo usado por uma empresa e tomando porrada de todos os críticos que sugam os melhores anos de sua vida enquanto você não consgue vitórias. Ir para a melhor situação possível para vencer e fazer sua parte lá, tendo ao menos as condições necessárias para se provar, para saber que seu esforço é em direção a algo possível, plausível. O arrependimento de Garnett por ter ficado no Wolves é enorme, e com razão: ele gastou os melhores anos de sua carreira perseguindo algo impraticável, dando o seu melhor, sendo espetacular, e sendo cuspido pelas pessoas que lhe chamavam de fracassado. No Celtics, não joga um décimo do que jogava, mas é herói. Ouça bem: corra para a melhor situação possível, em que seus esforços possam ser recompensados, em que você não vá ficar apenas batendo a cabeça na parede. A vida é curta. Esse foi o conselho de Garnett a LeBron James.
Mas quem ouviu direitinho, e parecia ter entendido tudo isso mesmo antes de Garnett abrir a boca, foi Dwyane Wade. Pat Riley tentou por muito tempo negociar extensões de contrato com Wade, mas o armador do Heat sempre bateu o pé: só ficaria se houvesse a confirmação de que não estaria lá sozinho perdendo seu tempo. Ninguém quer que a vitória caia no colo, mas todo mundo quer estar na situação em que seu esforço possa lhe alcançar o objetivo, mesmo que ele não venha. Wade deixou claro que iria embora se não houvessem outras estrelas para ajudar. Foi por isso que encerrou seu contrato, o Heat não tinha ninguém, é um elenco pelado, e os esforços do Wade em quadra são cada vez mais inúteis e, por isso, cada vez mais ignorados pelos fãs e pela mídia. Quem é Wade? Deixa pra lá, vamos falar de Kobe, Paul Pierce, ou até daquele tal de Joe Johnson.
Dwyane Wade nunca disse que queria dominar, que queria um time para si. Aceitou a chegada de Shaquille O’Neal ao time com referência e humildade. Foi secundário no elenco frente ao pivô e começou a ganhar os jogos de mansinho, até que os playoffs fossem inteiramente responsabilidade de Wade e Shaq fosse apenas um cara velho – e largo. Na seleção dos Estados Unidos, agradeceu com humildade ao técnico Mike Krzyzewski por ter “acreditado nele”, como se fosse difícil acreditar num dos melhores jogadores do planeta. Sabia que era apenas parte de um grupo e, pior, era apenas a parte que merecia menos crédito ou consideração, vinha de contusão, estava lá “de favor”. E ganhou as Olimpíadas na maciota, quando a maioria das pessoas sequer estava olhando para ele.
O Wade já foi campeão, ele não é mais virgem de anéis. Também não tem na parede um poster do Jordan que ele olha todos os dias para superá-lo um dia. Quer apenas ser campeão, e exige ajuda para isso. Cobrou estrelas exaustivamente. Se Kobe tem Gasol eu quero um troço ainda melhor, deve ficar pensando. Sua vontade de vencer pareceu sempre desatrelada da vontade de ter um time só seu. Ele não pedia para Pat Riley um elenco mais sólido, um banco de reservas. Ele queria estrelas, queria os melhores jogadores possíveis do seu lado, e o Pat Riley dizia que era impossível. Quando o Gasol foi para o Lakers, o Wade exigiu explicações do Riley, como é que tinha acontecido? Temos uma mania de achar que o grande jogador tem que vencer com um time sólido mas mais-ou-menos, que Jordan venceu com uns caras quebra-galho. Bah, aquilo era tudo menos quebra-galho. Aquilo chutava traseiros. E ao invés de bater a cabeça na parede, Wade quer também.
Kobe sempre se isolou muito do resto da NBA. Sua paixão pelo basquete é, como costumamos dizer por aqui, uma paixão nerd. Ele estuda, analisa, treina, só fala disso, se tranca no quarto, passou as primeiras temporadas no Lakers sem nenhum amigo, o dia inteiro na cama lendo a Bíblia. Está se soltando agora, entendendo que precisa ser amigo dos companheiros de equipe, se arrependendo de ter pedido para se livrar de Shaq apenas para provar que podia, que chutaria o bumbum do Jordan. Agora, ganha o anel “sozinho” ao lado de Gasol, Artest, Bynum, gente que seria vencedor em qualquer outro lugar. Mas é importante ver como esse Kobe descontraído, solidário, ganhador, é de uma geração diferente da de Wade, LeBron e Bosh, que são brincalhões, falantes, palhaços, e tem seus egos lá nas nuvens mas de um modo bem diferente. Eles não querem ser melhores que Jordan, eles querem ser melhores que o chato do Kobe, algo palpável que dá pra tentar ser nos trocentos jogos de cada temporada. Não caçam monstros imaginários. Se acham fodões, claro, mas querem mais é vencer, ter grandes estrelas do lado, criar dinastias. Eles tem afinidades entre si, fazem piadas juntos, devem ter assistido aos mesmos desenhos na TV quando eram crianças.
O Wade já sabia há algum tempo que o Bosh iria jogar com ele, sabiam que poderiam colocar a amizade em prática nas quadras, só não sabiam onde. Vamos para o Knicks, vamos para o Bulls? O Bosh que disse que era bom o bastante para ser a base de um time e não um cara secundário, o Wade que voltou mordido para ter a melhor temporada de todos os tempos porque não estavam mais falando dele. Não falta ego. Mas essa geração representada por Wade tem uma postura diferente com relação ao basquete e à vida: aquilo que Garnett aprendeu depois de uma vida sofrida, aquilo que Kobe aprendeu depois de duas temporadas sofridas, essa geração já sabe agora. Quer vencer já. Essa consciência que sempre precisou ser construída em times que vão sendo montados aos poucos através de trocas, reclamações, propostas, derrotas, jogadores que não tem nada a ver uns com os outros mas que precisam aprender a jogar juntos, já está em Wade e Bosh porque foram eles que decidiram montar esse time. Ao invés de um Frankstein sofrido, como é o Celtics, fizeram um robô gigante por livre e espontânea vontade.
Durante o período em que viajaram para se encontrar com os times e decidir onde assinar, Wade e Bosh jantaram juntos várias vezes. Sabiam que jogariam juntos e só decidiam onde, ou seja, são um time montado e escolhido pelos jogadores, não pelos engravatados. A mesma coisa aconteceu com LeBron. Esse não é um time forjado a ferro e fogo, que precisa aprender na marra que uma hora, eventualmente, é importante vencer e você precisa tolerar as outras estrelas e o mal hálito do Garnett. Não. Eles já sabem que o importante é vencer – LeBron e Bosh tem motivos específicos para isso, que trataremos depois, mas Wade sabe porque já venceu antes e conhece o limbo que espera a todos fora disso. Ninguém vai ter que aturar ninguém, trocar ninguém, controlar ego de ninguém. Eles escolheram isso. Wade é o anfitrião, recebe dois de seus melhores amigos de longa data (são amiguinhos próximos desde 2003), então vai ser o número 1, o favorito da torcida, a cara do elenco, o dono da brincadeira. Mas, como sempre, vai dominar os jogos e vencer as partidas de mansinho, sem que ninguém sequer perceba. Mas agora, se tiver uma temporada como em 2008-09, vão se lembrar. Todos vão se lembrar.
Precisamos jogar fora essas perguntas de quem vai ser o líder, quem vai segurar a bola, se os egos vão se chocar. Está bem claro que essa geração tem outras prioridades, outro senso de valor, e egos nas alturas naquilo que trata com mídia e imagem, não naquilo que trata da quadra de basquete. Vamos jogar fora nossos conceitos velhos da época do Jordan, da inflação desenfreada, do Jaspion. Wade tem um ego do tamanho do mundo mas é mais sensato do que os que vieram antes dele: vencer é a única solução. E ao invés de ter que se encaixar num time, de esperar trocas aleatórias, de conhecer os novos membros do elenco, que tal jogar com dois dos seus melhores amigos? O Wade bateu o pé porque não queria ficar mais longe do título, era isso que lhe importava, e ele deve voltar aos anéis de campeão bem cedo, simples assim. A nova geração é mais simples e direta. Vai ser também mais vencedora. Ao invés de um rei e vários súditos, eles podem ser todos reis. Há espaço para todos esses egos no mundo do Twitter. Nosso mundo, o da imagem, da aparência, da propaganda pessoal digital, é cheio de umbigos inflados – e todos eles se adicionam, se seguem, se deixam scrap, se retweetam uns aos outros.