“Para salvá-lo de si mesmo”

Sem maiores explicações, Rajon Rondo foi retirado de quadra pelo técnico Fred Hoiberg no intervalo de uma partida contra o Pacers, no final do ano passado, e não recebeu um minuto sequer por 5 jogos consecutivos a partir de então. Rondo afirmou desconhecer os motivos; Hoiberg afirmou que as razões eram estritamente relacionadas ao basquete, ou seja, que estavam relacionadas ao rendimento da equipe em quadra. Mas o incidente, incomum pela ausência de explicações claras, foi suficiente para que se abrissem as COMPORTAS do passado de Rajon Rondo, pipocando pela internet todos os inúmeros incidentes que ele teve com seus técnicos desde o seu tempo de aluno colegial. Ao todo, Rondo bateu boca com seus técnicos (e eventualmente foi colocado no banco como punição) no seu tempo de escola, na sua passagem pela Universidade de Kentucky, no Celtics de Doc Rivers, no Mavs de Rick Carlisle, no Kings de George Karl e, por fim, no Bulls de Fred Hoiberg. Há um padrão claro que não pode ser negado e que, segundo alguns, sepulta em definitivo a carreira de Rondo no basquete.

No entanto, pouco se fala de um outro padrão que também surge ao se desenterrar o passado de Rondo: o de um gênio que exige ser ouvido. Seu técnico de escola é categórico ao afirmar que o jovem Rajon Rondo era um gênio em sua compreensão do basquete e o chamou para ser assistente técnico da equipe ainda DURANTE seu tempo de jogador por lá. Rondo e seu técnico editavam e analisavam as gravações da equipe, desenhavam os planos táticos e estudavam os adversários. Foi daí que surgiram as primeiras tretas entre os dois: seu técnico pedia uma coisa, Rondo fazia outra alegando que, por não estar na quadra, seu treinador “não conseguia SENTIR O JOGO como ele”. Nesses casos de desobediência as discussões e as punições são inevitáveis, mas o técnico hoje admite que na maior parte das vezes Rondo estava mesmo certo – os outros é que, na época, não conseguiam perceber.

O relato casa perfeitamente não apenas com algumas anedotas que temos da passagem do Rondo pelo Celtics em 2008, mas também com algumas análises táticas que fazíamos na época e que não conseguíamos explicar muito bem. Seus companheiros de Celtics sempre foram muito vocais sobre a habilidade descomunal de Rondo de encontrar ângulos para os passes em situações tão inusitadas que a defesa – e às vezes até mesmo o ataque – não sabia como lidar. Garnett chegou a afirmar que precisava estar ligado no Rondo o tempo inteiro para não acabar levando um passe inesperado na cabeça. Na análise tática, isso sempre aparecia de duas maneiras complementares: uma é que muitas vezes, especialmente em contra-ataques, Rajon Rondo tomava decisões que seus companheiros não conseguiam acompanhar, gerando passes errados; outra é que Rondo estava o tempo inteiro quebrando as movimentações ofensivas, ignorando as jogadas programadas – e seus companheiros – para bancar alguma infiltração maluca ou um passe impensável. Foi assim que Rajon Rondo saiu de ser apenas um TAPA BURACO num elenco com três jogadores futuros Hall da Fama, alguém que deveria simplesmente PASSAR A BOLA PARA O LADO e deixar o “Big Three” jogar, para se tornar o principal jogador da equipe durante vários momentos dos Playoffs de 2008.

Ninguém entendia como é que um jogador em seu segundo ano de NBA, que não conseguiria acertar um arremesso nem se sua vida dependesse disso, tinha tanta liberdade no ataque e assumia tanta responsabilidade nos momentos mais cruciais das partidas. Pois aqui está enfim a resposta: ele NÃO TINHA essa liberdade, não tinha essa responsabilidade, ele apenas via a oportunidade, o ângulo, a movimentação da defesa, sentia o jogo e agia da maneira que julgava ser a mais adequada. Agora que está todo mundo PROCURANDO ENCRENCA, surgiram relatos de que durante as Finais de Conferência de 2008, Rondo arremessou uma garrafa contra um monitor durante uma reunião com a comissão técnica para lhe mostrar vídeos de erros que ele tinha cometido e jogadas que ele tinha quebrado. Imagino, na cabeça de Rondo, o mesmo argumento querendo dar as caras: a comissão técnica não “sentia o jogo como ele”, não via os espaços e as janelas de oportunidade que ele reconhecia quando estava em quadra. Rondo continuou seguindo sua própria leitura do jogo e, por precisar dele desesperadamente – e porque Paul Pierce, Garnett e Ray Allen bancavam as decisões de Rondo em quadra – o Celtics deixou que isso acontecesse. Assim que o trio foi trocado e o Celtics entrou em processo de reconstrução, Rondo e seu técnico Doc Rivers tiveram que ser fisicamente separados durante um treino para não se pegarem na porrada. O armador simplesmente não respeitava o esquema tático – que, temos que admitir, era risivelmente limitado.

Quando chegou no Mavs, meio contra sua vontade, era claro que ele não conseguiria conviver com o técnico Rick Carlisle, famoso por CHAMAR AS JOGADAS QUE SEUS ARMADORES DEVEM EXECUTAR lá da linha lateral. Como engessar alguém cujo grande talento é justamente estar vendo os espaços e os ângulos que ninguém mais vê? Rondo disse que aprendeu muito taticamente com Carlisle, mas assim que tomou uma bronca por quebrar uma jogada, discutiu com o técnico durante um pedido de tempo e aí nunca mais foi colocado de volta na quadra. O time inventou para ele uma lesão fictícia nas costas e Rondo passou o resto da temporada de castigo, mofando no banco de reservas. Ali já se falava de fim de carreira, mas Carlisle é um técnico difícil com armadores e não pode ser padrão para nada.

No Kings, Rondo teve a chance de um recomeço com George Karl, que deixou o armador ter mais liberdade para ler o jogo e tomar suas próprias decisões. Rondo e Cousins se tornaram grandes amigos, em parte pelo histórico de ambos – os dois se sentem “injustiçados” na NBA – mas em parte pelo modo como enxergam o jogo, pelo modo como pensam o espaçamento e os modos de atacar a cesta. Cousins disse ter aprendido muito tática e tecnicamente com Rondo, a quem ele passou a olhar como um “mentor”, e é inegável que a parceria ajudou os dois. O armador liderou a NBA em assistências no Kings enquanto Cousins passou a ser um jogador cada vez mais de infiltrações e menos de jogadas de costas para a cesta. Mas eventualmente Rondo e George Karl começaram a se desentender com relação ao que esperavam do sistema ofensivo, discutiram abertamente e Rondo foi para o banco como punição. Temos duas tendências aqui: um jogador que invariavelmente discutirá com seus técnicos por não concordar com a parte tática, e também modelos ofensivos muito questionáveis que não estavam exatamente DANDO SUPER CERTO antes do Rondo chegar.

O maior desafio de Rondo como alguém que lê o jogo de uma maneira única e chega em times de ataque questionável é, como acontece com muitos gênios por aí, APRENDER A NÃO SER UM BABACA. Imagino a dificuldade que deve ser para um armador obedecer a uma orientação tática quando se percebe, com uma clareza que só existe na própria cabeça, que aquela não é a opção correta – ao menos não naquele determinado momento. Manu Ginóbili também ficou famoso por quebrar jogadas no Spurs por estar vendo um caminho que não havia sido previamente pensado, um erro de rotação ou movimentação do adversário que precisavam ser explorados, mas sempre o fez em doses moderadas, testando o terreno com a comissão técnica. Manu também deu sorte de trabalhar com Popovich, um técnico com um desenho tático rígido mas que entende a importância de os jogadores improvisarem quando a hora for propícia. Essa arte de obedecer à tradição e apenas pontualmente ir lá e fazer o impensável é o que separa o gênio do louco: um conjunto de ações impensáveis não é sequer compreensível para quem está do lado de fora, parece simplesmente um amontoado de ações aleatórias, de ruído, parece loucura. Para ser compreendido, é necessário andar dentro de um terreno comum, de uma linguagem padrão, de um desenho tático pré-definido, para então transformá-lo de uma maneira que não pareça simplesmente caótica. Não é tarefa fácil, mas é o preço que artistas, esportistas e demais talentos pagam por exercer sua genialidade em sociedade. No basquete, um esporte coletivo, agir apenas de acordo com a própria cabeça – por mais que ela esteja vendo as verdades ocultas que não ocorram para os outros pobres mortais – é receita certeira para alienar o jogador, afastá-lo do diálogo com o resto da equipe e tornar sua presença indesejada.

Durante os cinco jogos que Rajon Rondo passou fora, Dwyane Wade afirmou que ele e os demais jogadores do elenco não entendiam o motivo de Rondo estar sendo confinado ao banco, mas que “não é trabalho deles entender, é trabalho deles jogar basquete”. Wade, mais do que ninguém, soube cavar seu espaço aos poucos, comendo pelas beiradas. O Heat campeão em 2006 não era o time dele, mas de Shaquille O’Neal, e Wade subverteu essa narrativa aos poucos até se tornar a principal peça da corrida pelo título. Faz parte do processo mostrar que os outros podem CONFIAR na sua genialidade, na sua loucura, na sua maneira diferente de ver e fazer as coisas. Rondo não tem nem nunca teve esse traquejo: não faltam relatos de sua impaciência não apenas com técnicos, mas também com jogadores que não percebem nos treinos o que ele está querendo fazer. Ele está preso dentro de sua própria cabeça, vítima de uma visão privilegiada e da incapacidade de compartilhá-la e transmiti-la.

No DESASTRE de comunicação que é esse Bulls, incapaz de falar abertamente com seu jogador ou de liberar uma nota coerente para a imprensa, Rondo conseguiu uma explicação não-oficial de um membro da comissão técnica afirmando que ele estava sendo relegado ao banco “para salvá-lo de si mesmo”. De fato, não me restam dúvidas de que Rondo é mesmo seu pior inimigo, uma dessas pessoas para quem seu modo de fazer as coisas é tão ÓBVIO que todo o resto parece simplesmente errado – ou pior, ESTÚPIDO. Mas no caso do Bulls, a explicação não passa de uma péssima desculpa: para aproveitar aquilo que Rondo tem a oferecer, é preciso deixar que ele jogue, que tome as decisões, que leia o jogo, que trabalhe de maneira MUITO PRÓXIMA com um técnico que saiba ouvi-lo, que lhe faça saber que suas decisões estão sendo consideradas e não combatidas. Foi isso que o Bulls PROMETEU PARA ELE quando lhe deram seu contrato atual. O problema é que o Bulls, após conseguir Dwyane Wade – que caiu de paraquedas, numa contratação inesperada para todo mundo – simplesmente MUDOU DE IDEIA, não tinha mais como bancar deixar as rédeas nas mãos de Rondo, não pode mais arcar com sua falta de arremesso e, pior, não construiu uma defesa capaz de lidar com as limitações defensivas que Rondo tem, por questões físicas, apresentado nos últimos dois anos. Para que Rondo faça sentido nesse elenco, tudo teria que ser diferente – nas condições atuais, qualquer armador que arremesse e defenda minimamente seria mais útil do que ele, como os números tão bem tem mostrado com o Bulls tomando muito mais pontos do que consegue fazer quando Rondo está em quadra.

“Você só é tão bom quanto seu técnico acha que você é”, disse Rondo em sua última conversa com a imprensa, apontando que o técnico Fred Hoiberg não confia nele e que o contato que os dois tem é mínimo. Rondo tem razão: são os técnicos que permitem aos jogadores as situações em que podem usar o que possuem de melhor. Nem sempre essas situações são possíveis, até porque num esporte coletivo aquilo que melhora suas condições de render bem pode ser justamente o que destrói com as chances do seu companheiro fazer uma boa partida, de modo que cabe ao técnico encontrar esse equilíbrio. No caso de Rondo e do Bulls, esse equilíbrio é impossível: o que Rondo sabe fazer exige um outro elenco, um outro técnico, um outro modelo tático. Sua capacidade de quebrar jogadas para encontrar o espaço improvável exige alguém que esteja lhe ouvindo e aceite sua genialidade – até mesmo porque Rondo, preso dentro da própria cabeça, não está ouvindo ninguém. Ele está preso num mundo sem diálogo, ironicamente num time que sequer foi capaz de lhe dizer o motivo de sua punição. Alguém precisa salvar Rondo de si mesmo, mas esse alguém definitivamente não é o Chicago Bulls, mergulhado em silêncio e confusão enquanto tenta salvar a si próprio do elenco aleatório que montou nessa última offseason.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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