🔒Pippen, Jordan e a montanha-russa salarial da NBA

Nos primeiros episódios do documentário “The Last Dance” sobre o último título da dinastia do Chicago Bulls, chama a atenção a história de Scottie Pippen, maior estrela do time após Michael Jordan e que era apenas o SEXTO maior salário do time e o 122º na lista dos que mais recebiam na NBA em 1998. Como alguém tão bom passou assim batido na hora de faturar uma grana justo em uma época onde entrou tanto dinheiro na NBA? Como mostra o documentário, a insatisfação do jogador com seus ganhos criou uma rusga dentro do time, do atleta com o General Manager Jerry Krause e quase acabou em uma troca que poderia ter arruinado as chances do time vencer o sexto campeonato. A história por trás do contrato de Pippen e o contraste com os ganhos de Jordan revelam muito sobre as transformações econômicas da NBA durante os anos 1990 e sobre as regras salariais que hoje dominam o sistema de construção de times na liga.

Se jogasse hoje, em 2020, Pippen nem precisaria de um agente para negociar sua Free Agency tamanha a tranquilidade. Ala versátil, um dos grandes defensores da história, atlético, com bom passe e capaz de atacar a cesta a qualquer momento receberia ofertas de contrato máximo de dez times diferentes assim que estivesse disponível. Mas como vimos no documentário, isso não aconteceu com ele em 1991 quando acertou sua extensão com o Bulls. Um dos motivos? Sequer existiam contratos máximos.

A NBA criou seu sistema de teto salarial na temporada 1984-85, quando os times podiam gastar míseros 3,6 milhões de dólares na soma dos contratos de todos os jogadores. Foi uma mudança dramática na construção de times e que forçou adaptações rápidas: os cinco times que estavam acima desse limite quando ele foi criado, Los Angeles Lakers, New Jersey Nets, Philadelphia 76ers, New York Knicks e Seattle Supersonics, tiveram que congelar seus elencos e não puderam contratar Free Agents ou trocar por jogadores que deixariam suas folhas salariais maiores. A única permissão dada foi assinar, pelo menor valor permitido na época, novatos selecionados no Draft. Isso porque a liga resolveu que funcionaria num esquema de soft cap, ou seja, um teto salarial que às vezes pode ser ultrapassado dependendo das circunstâncias. O acordo, por exemplo, dizia que os times poderiam pagar “qualquer valor para manter seus próprios jogadores que virassem Free Agents, ignorando seu efeito sobre o teto salarial”.

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É nesse cenário que, em 1991, o Bulls negociou um novo contrato com Pippen. O teto, que tinha seu valor definido de acordo com o total de dinheiro faturado pela NBA na temporada anterior, já chegava a 12 milhões de dólares e ninguém sabia na época até onde ele iria crescer nem seu ritmo. O time poderia oferecer qualquer valor para ele renovar, mas um salário muito alto poderia atrapalhar ou comprometer futuras trocas e aquisições nesse cenário de incertezas. Do outro lado, Pippen hesitava na hora de decidir a duração do contrato, colocando na balança a chance de fazer um novo acordo alguns anos depois por um valor maior em um cenário de teto salarial alto e a incerteza de uma possível lesão o privar de sequer seguir na NBA em alguns anos.

Tinham também outras complicações, afinal entender teto salarial da NBA é difícil desde os tempos imemoriais. O Bulls tinha deixado separado 1,6 milhão do seu teto salarial nesta temporada 1990-91 (a do primeiro título) para trazer Toni Kukoc da Europa, mas ele não topou. Com o espaço sobrando, o Bulls então forçou Pippen a assinar sua extensão de contrato muito mais cedo do que o necessário para já começar a pagar ele na própria temporada 1990-91, usando esse espaço que tinham no teto salarial e economizando nas temporadas seguintes, quando iriam voltar a tentar xavecar o ala croata. Pippen cedeu.

Durante a Final de 1991 contra o LA Lakers, sob pressão de Krause, Pippen topou um contrato de 18 milhões de dólares por CINCO temporadas que não eram exatamente cinco. O acordo englobava os últimos dois anos ainda vigentes do seu acordo de novato, então na verdade ele estava topando ficar no time por mais SETE anos. E se você contar que ele recebeu o tal 1,6 milhão ainda em 1990-91, são 18 milhões de dólares (e mais os trocados remanescentes do seu acordo de novato) espalhados em OITO ANOS. E se duvidar foi pouco, não havia também na época qualquer restrição sobre a duração de um contrato na NBA.

Essa dissolução do salário de Pippen não só fez seu contrato parecer ainda mais longo do que já era como o colocou mais baixo na lista de mais pagos a cada ano. Dito isso, na hora o valor não foi pareceu tão ruim assim, com Pippen ficando com o 16º maior salário da NBA em 1992. Ao receber 2,7 milhões de dólares ele não estava tão distante dos mais bem pagos da liga: Michael Jordan, Charles Barkley, Hakeem Olajuwon e Reggie Miller estavam no Top 10 recebendo pouco mais de 3,1 milhões. Hot Rod Williams era o segundo colocado da lista com 3,7 milhões (Cavs sendo Cavs desde sempre) e quem destoava mesmo era Larry Bird, o mais bem pago daquele ano, com 7 milhões de salário. Não é à toa que a Bird Exception, regra viva até hoje que beneficia o time que quer renovar com seu jogador mesmo estando acima do teto salarial, é batizada pela manobra usada pelo Boston Celtics para segurar sua maior estrela:

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Mesmo na época muitos falaram para Pippen não aceitar esse contrato. Desde seu agente do jogador até Jerry Reinsdorf, o  DONO do Bulls e responsável por assinar o cheque, avisaram o ala dos riscos: embora ele fosse bem pago nos primeiros anos, o acordo era muito longo e havia o risco de que em pouco tempo essa grana toda não iria parecer tão rica assim no contexto da NBA. Mas como bem mostra o documentário The Last Dance, o contexto da vida de Pippen era outro. Família grande, pouquíssimo dinheiro, pai e irmão em cadeiras de roda e simplesmente muita gente dependendo dele para mudar de vida. Garantir o dinheiro chegando por anos a fio parecia na época muito mais responsável do que apostar que em dois ou três anos daria para faturar ainda mais. Importante lembrar também que essa não era (AINDA) uma época onde atletas profissionais saiam recebendo milhões à toa de empresas de material esportivo, por exemplo, salário era tudo.

O alerta de todo mundo se tornou bem real quando o teto salarial da NBA começou a crescer ano após ano. Se estava em 12 milhões quando Pippen assinou seu acordo em 1991, pulou para 23 milhões (!!!) em 1995 e chegou a 27 milhões na época da temporada 1997-98, quando se passa o documentário. É curioso pensar que boa parte desse aumento de renda NBA veio por causa do próprio Chicago Bulls! Claro que Michael Jordan é o maior responsável pela popularidade da liga nos anos 1990, mas Pippen estava lá do lado dele sempre jogando muita bola, sendo o segundo melhor em tudo e como peça-chave para que o time ganhasse títulos. E troféus eram essenciais para que Jordan transformasse seu talento e domínio em algo concreto. Ou seja, quanto mais Pippen ganhava, pior parecia seu contrato.

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Os jogadores não demoraram para começar a tirar proveito da combinação de teto salarial disparando e da falta de limite máximo para salários. Dois exemplos são fundamentais para entender as tendências e revoluções da época e um deles estava lá do lado de Pippen: Jordan, claro. Se tem uma coisa que His Airness sempre soube foi do seu valor para seus times e para a NBA e ele não tinha o menor pudor de cobrar a conta.

Antes de se aposentar pela primeira vez, Jordan tinha um contrato alto para os padrões da época, mas nada fora da curva. Como citamos antes, seus 3,5 milhões de dólares anuais de média o deixavam entre os mais bem pagos da NBA no começo dos anos 1990 e ele até seguiu recebendo a grana do seu contrato contrato de OITO ANOS enquanto se aventurava pelo universo do beisebol. Após retornar e ganhar mais um título, Jordan e seu agente David Falk decidiram que era a hora de quebrar a banca. Na época alguns jogadores estavam aceitando o que se chamava de “contrato balão”, um acordo de um ano de duração com um pagamento exorbitante para premiar um jogador antes de fechar um novo acordo mais benéfico em termos de teto salarial nos anos seguintes. É por isso que Patrick Ewing, por exemplo, tem essa ficha hilária em seu histórico:

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A princípio o Bulls pensou em “contrato balão” na casa dos 15 ou 20 milhões para Jordan, até porque não acreditava que alguém poderia pagar mais que 12 milhões a ele. Mas Jordan e Falk foram atrás do mesmo Knicks de Ewing para tentar algo novo e conseguiram: o time de Nova York ofereceu 12 milhões por um ano de contrato e mais 15 milhões para o jogador atuar como porta-voz da ITT-Sheraton and Cablevision Inc, empresa que era dona da franquia na época. Não, pagamentos de  por fora não são permitidos na NBA desde aquela época justamente para que as equipes não driblem o teto salarial, mas com Jordan era tudo uma exceção, como conta o jornal Chicago Tribune na época:

“Por Jordan ser uma presença comercial tão grande, seu status era considerado único. A NBA estava preparada para permitir um negócio separado sem parte do dinheiro contar no teto salarial. O Bulls protestou, mas a tradicional relutância do comissário David Stern em abrir mão de oportunidades comerciais desse tamanho mudou os parâmetros da negociação”

O jornal conta que depois disso Falk ligou para o Bulls e disse que eles tinham uma hora para cobrir a oferta ou iriam ficar sem o jogador. E foi assim que Jordan conseguiu seu contrato de TRINTA MILHÕES de dólares por uma temporada. Pois é, Jordan ganhou tudo isso em um ano onde o teto salarial era de 24 milhões. No ano seguinte foram 33 milhões de dólares por mais um ano de contrato balão. Ou seja, ele fez 93 milhões de dólares em salários na carreira e 63 vieram em duas temporadas. Impressionante, mas não mais que ganhar menos de 100 milhões de dólares como jogador e hoje ter uma fortuna estimada em DOIS BILHÕES. É o 1001º homem mais rico do mundo segundo a Forbes.

O outro famoso exemplo da época é o de Glenn Robinson, que soube aproveitar da situação financeira da liga antes mesmo de jogar uma partida sequer. Ao contrário de hoje, onde temos salários pré-definidos para novatos de acordo com a posição em que foram selecionados, cada jovem negociava diretamente um contrato com o time que o selecionou no Draft. Primeira escolha em 1994, Robinson acertou um contrato de 68 milhões de dólares por DEZ ANOS com o Milwaukee Bucks. Não são muitas as carreiras que duram tanto tempo na liga e Robinson GARANTIU que teria vida longa na liga mesmo antes da sua primeira cesta. E pior, o acordo só foi fechado um dia antes da temporada começar. Pura pressão.

Glenn

Essas histórias bizarras do mundo salarial da NBA levou a liga a sua primeira grande paralisação trabalhista, o locaute que comeu quase metade da temporada 1998-99. Alguma coisa estava errada se um jogador que não pisado em quadra  tinha 10 anos de salário garantido, se outro ganhava, sozinho, mais que o teto salarial e se um terceiro, um dos melhores da história da NBA, era só o 122º na lista de maiores salários da temporada. Donos de times e jogadores lutaram ferozmente por novas regras capazes de proteger os interesses um dos outros e até para que se protegessem contra si mesmos, como o caso de Pippen ou de times que se amarraram em contratos ruins por muito tempo.

A partir da temporada 1998-99, os novatos começaram a ter ganhos tabelados, foi determinada uma lista de salários máximos permitidos (14 milhões por ano para jogadores com mais de 10 anos na NBA, na época) e criou-se também um tempo de duração máximo dos contratos e como os seus valores poderiam ser divididos, com aumentos graduais a cada ano. Foi uma negociação longa e pesada e considerada uma vitória dos donos dos times sobre os jogadores, mas que contou com pontos importantes para uma classe específica de atletas. Triunfou a CLASSE MÉDIA da liga, os jogadores que não tinham poder de barganha para os contratos absurdos e que ficavam com o que sobrava do salário cada vez maior das estrelas. Os donos, com o limite de valor de contrato, evitavam situações como a de Jordan e não eram mais obrigados a pagar absurdos para não perder um grande nome. Sobrava mais dinheiro para os Pippens em começo de carreira, em resumo. Os contratos mais curtos acabaram benéficos para as duas partes: times tinham medo de compromissos muito longos com jogadores que poderiam não valer a mesma coisa em sete ou oito temporadas, já os atletas queriam evitar situações como a de Pippen, quando um contrato longo é feito quando o jogador está em baixa e ele não tem a chance de recuperar o dinheiro depois.

O próprio Pippen, porém, recuperou o tempo perdido. É uma bela história de redenção, aliás: depois da temporada 1997-98, o Chicago Bulls entrou em reformulação e ficou claro que o ala não iria seguir por lá. Mas sob as novas regras, seu novo contrato máximo com o Houston Rockets só poderia ser de 45 milhões ao longo de quatro temporadas. O Bulls, porém, agiu para auxiliar o jogador, adicionando benefícios e fazendo o negócio em formato de sign-and-trade, assinando uma extensão com o jogador e imediatamente o mandando para Houston. Com essa mudança de formato Pippen fez um contrato de 77 milhões por CINCO temporadas. Ele acabou jogando um ano só no Rockets, mas levou esse contrato para seus anos de Portland Trail Blazers. Ao fim de sua aventura, quando já pensava em se aposentar, o Bulls o recontratou por 11 milhões de dólares só para ele se aposentar no time onde fez história. Foram só 23 jogos disputados, mas muito bem pagos.

No fim das contas, com esses lucrativos anos finais, Scottie Pippen faturou 109 milhões milhões ao longo da carreira. Dezesseis a mais que Michael Jordan. Os gestos do Bulls nos seus dois últimos contratos foram para recompensar o jogador pelos seus anos de serviço. É o lado humano que volta e meia pipoca, de leve, no mundo frio dos contratos na NBA. Claro que há estratégia e marketing por trás, times usam esses atos para se promover entre os jogadores, para dizer que “sabemos cuidar dos nossos”, mas há um fundo de verdade. Nos últimos anos tivemos outros exemplos como esse, como quando o Golden State Warriors deu o maior contrato da história da NBA para Stephen Curry depois dele passar anos jogando com um salário bem do vagabundo se comparado ao seu desempenho, culpa de um contrato feito quando ele era só uma promessa com o tornozelo bichado. Já o Los Angeles Lakers famosamente atrapalhou seu processo de reconstrução ao dar um contrato de 48 milhões de dólares por dois anos para Kobe Bryant quando ele já tinha 35 anos e vinha do rompimento do seu tendão de aquiles.

Sempre vão existir contratos estranhos na NBA. A montanha-russa não é apenas das regras salariais, mas dos ganhos financeiros da liga, do teto salarial e mesmo do desempenho nem sempre linear dos jogadores. O que a história salarial de Jordan e Pippen nos conta é que a liga se tornou um ciclo onde regras mudam, jogadores se dão bem ou mal nesse cenário e tudo é renegociado para tentar consertar os erros, dando origem então a novos problemas. Se os grandes jogadores faturarem o que merecem no meio do caminho, por mim tudo bem.

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

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