>Quando as luzes apagam

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O que Yao Ming terá para fazer sem Olimpíadas e
sem uma versão do Bola Presa em chinês?

Com o final épico do basquete nas Olimpíadas de Pequim, o clima agora é de fim de festa. Sabe como é, quando você recobra parcialmente a consciência e percebe que todas as garotas bonitinhas foram embora, seus amigos estão estirados no chão em coma alcoólico, a música parou e as luzes apagaram. A depressão inevitável do vazio que fica quando todo o resto vai.

A temporada da NBA só retornará ao fim de outubro e aguentar até lá parece uma espera depressiva e infindável. Em breve, o gostinho da final entre Estados Unidos e Espanha vai ficar apenas em nossas memórias e precisaremos de mais basquete, urgentemente. Mas nós somos apenas torcedores, dedicados a sentar a bunda no sofá e coçar o saco cheirando a salgadinho. Para Yao Ming, por exemplo, o vazio deixado pelas Olimpíadas é ainda mais cruel. Podemos sentir em suas próprias palavras:

“Depois do jogo contra a Lituânia, voltei para meu quarto e senti minha energia simplesmente ir embora. Meu corpo está vazio. Passei alguns minutos, deitado na cama, em que não conseguia sequer me mexer. Não porque esteja cansado, mas porque mentalmente me sinto muito, muito triste. Esses jogos pelos quais me preparei durante quase toda minha vida agora acabaram.”

Não deve ser fácil. Para um jogador que, segundo alguns, nasceu para as Olimpíadas, a sensação de missão cumprida é também a de fim da linha. Ao traçar a vida até certo ponto, como encarar o que vem além? O pessimismo nas palavras de Yao cheira a suicídio tanto quanto letra de música emo:

“Nós gastamos tantos e tantos anos nos preparando para esse evento e agora ele está encerrado. Eu acabei de jogar na competição mais importante da minha carreira. Minha vida acabou?”

Se eu tivesse lido isso num fotolog de uma garota de sombra nos olhos, piercing no nariz e uma camiseta do NX Zero, acharia normal. Saindo da boca de Yao Ming, é triste mas compreensível. Resta, para ele e para nós, seguir em frente e compreender o que as Olimpíadas de Pequim significaram para o basquete e para o mundo. Como os jogos mudaram conceitos e padrões culturais que acabam encontrando um espelho no que ocorreu com o nosso querido esporte da bola laranja. O melhor jeito de compreender isso é dar uma olhada nas palavras de Yao Ming sobre o que essas Olimpíadas alcançaram, culturalmente falando, para o povo chinês:

“Essa é a primeira vez que a China tem a chance de receber atenção do mundo todo. Eu sei que a China, nos últimos 10 ou 20 anos, se tornou maior e mais poderosa no mundo. Mas mesmo assim não são muitos os estrangeiros que vêm para a China e as Olimpíadas tornaram a China palpável nessas últimas semanas. Não apenas na TV ou em uma foto num livro ou num jornal. Tem um monte de gente de todo o planeta aqui. Eles vieram para a China para descobrir por eles mesmos a verdadeira China – as coisas boas, as coisas ruins. Você sabe, muitas das coisas que são as mesmas em todo país. Saber que tivemos a chance de receber o mundo e tivemos a chance de deixá-los ver a gente, falar com a gente, viver com a gente, isso me traz uma sensação muito boa. Esse é um belo sonho.”

Resumindo, o que o Yao quis dizer é que graças aos Jogos Olímpicos as pessoas foram para lá descobrir que os chineses são sujeitos normais, apesar de comer carne de cachorro, e que o país é exatamente igual a qualquer outro, apesar do comunismo comer criancinhas. No fundo, é um monte de gente apaixonada por basquete e principalmente por Kobe Bryant, ricos e pobres, em shoppings e em favelas, na cidade e no campo, e o que muda é apenas um detalhe ou dois, um cachorro a mais ou a menos num restaurante por aí.

Há um tempo atrás, torcendo para o meu Houston durante um jogo em um chat na internet, acabei fazendo amizade com um torcedor chinês. Não preciso nem dizer, ele gostava muito do Yao mas era louco mesmo pelo Kobe. Chegamos a trocar alguns e-mails sobre basquete e compartilhando nossas culturas, mas o tom nos e-mails do chinês era sempre o de inveja:

“Ah, como eu gostaria de morar no Ocidente, onde você pode escolher o que estudar ao invés de ficar preso às aulas da escola. Ah, como eu queria morar aí, onde os pais não pressionam vocês para passar na faculdade e conseguir um bom emprego.”

Tudo que eu consegui exclamar foi um “tá zoando, né?”. Como assim, aqui no ocidente a gente não tem que aturar o porre das matérias obrigatórias na escola e não tem pressão familiar e social para passar na faculdade e ter um emprego bacanudo? Isso é palhaçada, o chinês acha que somos alienígenas felizes pra burro, com dinheiro nas orelhas, mulheres peladas sambando nas ruas e nuvens de algodão doce. Acha que somos livres, leves e soltos – coisa que não existe por aqui do mesmo modo que não existe num governo censor comunista. Se as Olimpíadas de Pequim tinham algo a ensinar para esse chinês, para os americanos, para o povo do mundo todo, é que ser humano é tudo a mesma merda. Toda a postura de estufar o peito e mostrar competência em festas de abertura, encerramento, organização do evento – em igual proporção ao esforço de ocultar as falhas, os erros, a ditadura – é um esforço de mostrar o mesmo grau de humanidade dos outros povos olhando de fora. A China quer se igualar aos grandes ao mostrar, de certo modo, que é pequena como todos os outros. Humana.

Impossível não traçar um paralelo imediato com o que ocorreu no basquete olímpico durante as últimas semanas. Os Estados Unidos levaram o título sem tantas dificuldades, invictos, mas ao mesmo tempo completamente humanos. Por trás daquele monte de estrelas, defesa pressionada e contra-ataques, estavam presentes as falhas de sempre aos olhos de todo o mundo. Enfrentar a Espanha foi o atestado final de que o time, em condições desfavoráveis e com um deslize ou dois a mais, poderia perder a partida e voltar carregando a prata para a casa. Nenhuma vergonha, aliás. Os espanhóis mostraram a humanidade dos americanos enquanto mostravam sua própria humanidade, cheia de falhas, defesa patética e uma derrota ao apagar das luzes. Ou seja, estamos num ponto em que o basquete internacional é tudo a mesma merda. Grandes ou pequenos, ricos ou pobres, os times são todos humanos. De repente, a China pode ganhar da Espanha na prorrogação, que por sua vez pode ganhar dos Estados Unidos numa final. As diferenças são os detalhes – as carnes de cachorro, digamos assim – mas o basquete, em si, é inteiramente parelho. Frente a todas as dificuldades, times como a Angola e a China, por exemplo, querem estufar o peito e igualar-se aos americanos, feito mais do que possível num basquete – assim como num planeta – globalizado o bastante para podermos dizer que todo mundo é praticamente igual.

Ainda acredito que em condições ideais de temperatura e pressão, já diriam as provas de Física no colégio, os Estados Unidos vão estar sempre no topo do pódio no que se trata de basquete. Mas as diferenças para o resto do globo são cada vez menores, superficiais, culturais. Eles preferem contra-ataque, se aproveitam do físico, outros países preferem marcação por zona e jogo lento. Assim como uns comem Big Mac e outros preferem escorpião no espeto. Não tem mais essa de “deuses absolutos”, não tem mais potência imensurável, nem política nem esportiva. E aí está toda a graça, aliás.

O Dream Team de 92 que me desculpe, mas naquela época o basquete ao redor do mundo era um monte de praticantes de bocha que erraram o caminho e apareceram no estádio errado, assim como a China era um país agrícola com complexo de inferioridade. Veja só, os tempos mudaram. Para a nossa sorte, ao menos no basquete, a proximidade entre os talentos, estilos e culturas só tende a proporcionar espetáculos como o embate entre Estados Unidos e Espanha. Por isso, se o Yao Ming quer compreender o que representou essa Olimpíada e o que lhe espera o futuro, podemos responder “proximidade dos povos”. Se não em conceitos éticos ou de amizade, ao menos nas quadras de basquete. Uma proximidade que envolve culturas distintas que se mesclam cada vez mais e mais. Uma proximidade que, de um modo ou de outro, está sempre nas mãos de Yao Ming: um embaixador cultural que une povos e esportistas em uma única mistura. E que, nisso, permanece solitário como o homem que é obrigado a ver de fora, sem pertencer a lugar algum. Ela já uniu o globo, o que fazer agora? Trata-se de um embaixador que assiste a sua obra no escuro, assim que as luzes apagam.

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