>Reconstrução capenga

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Falando sobre comida

Estamos acompanhando (eu, por entre o muco abundante da minha gripe) playoffs bastante disputados, com jogos interessantes e parelhos. Mas aquele clima de zebra foi embora bem rápido, os resultados não são mais surpreendentes e tudo está mais ou menos dentro do esperado. O Lakers perdeu um jogo mas apenas em atuação épica de Chris Paul, vencendo o segundo mesmo com uma das piores partidas conjuntas de Kobe e Pau Gasol de todos os tempos, e vencendo ontem fora de casa na maior mamata. O Pacers, que deu sufoco no Bulls em todas as partidas até agora, perdeu 3 jogos seguidos mesmo com atuações bem mequetrefes do Derrick Rose (e marcação genial do Paul George, assunto pra um futuro post), estando praticamente eliminado da pós-temporada. Mesma coisa com Sixers e Knicks, que até deram trabalho mas já estão planejando as férias. Thunder contra Nuggets e Mavs contra Blazers são terra de ninguém, como previsto. Então restam apenas duas séries dessa primeira rodada dos playoffs que ainda tem cara de estar completamente fora do controle: a primeira é Magic e Hawks, que exige uma retratação da minha parte então por enquanto vou fingir que nada está acontecendo; e a segunda é Spurs e Grizzlies.

Quão surreal é dizer que uma série com o Grizzlies, que até outro dia era uma das maiores piadas da NBA e se classificou em oitavo para os playoffs, é uma das que está completamente fora de controle? O Spurs dorme todos os dias com medo do Zach Randolph, e nem é de que ele coma tudo que o time tem na geladeira. A defesa do Grizzlies é sufocante, o garrafão é forte e movimenta a bola, os jogadores são jovens e motivados. Em apenas três anos a equipe deixou se ser presa fácil nos playoffs, passou por um processo completo de reconstrução, e venceu sua primeira partida de pós-temporada em cima do todo-poderoso Spurs. Melhor projeto de reconstrução de todos os tempos? Pelo contrário. A reconstrução do Grizzlies foi uma bosta, um projeto completamente atrapalhado e cheio de tropeços, e que deu certo mesmo assim simplesmente porque acertaram em alguns aspectos fundamentais. Ou seja, é a prova definitiva de que reconstruir uma equipe não é tão difícil assim: se até o Grizzlies consegue, qualquer time do planeta pode fazer também. Até eu. Ou sua avó, que quando você diz “basquete” ela entende “chacrete”.

Em 2003, o Grizzlies conseguiu chegar aos playoffs pela primeira vez, mas perdeu todos os jogos. Tudo bem, era um time ruim que estava apenas pegando o jeito das coisas. Na temporada seguinte, foram aos playoffs de novo e perderam todos os jogos de novo. Vários jogadores deixaram a equipe, outros foram contratados às pressas, mas o time foi aos playoffs de novo, uma terceira vez. E, de novo, foi eliminado da pós-temporada sem vencer uma mísera partida sequer. As duas temporadas seguintes foram cheias de contusões e jogadores fazendo de tudo pra não jogar lá. Como diabos lidar com uma franquia em que nenhum jogador quer jogar? Em um post de dois anos atrás, o Denis conta como Steve Francis foi draftado pelo Grizzlies e se negou a jogar lá, e como quase todos os novatos de 2009 (quando o time tinha a segunda escolha do draft) se negaram a treinar pela equipe, evitando assim ser draftados pela franquia. Como melhorar uma equipe em decadência se ninguém quer jogar por ela? O Grizzlies tinha a possibilidade de se reconstruir em volta de Pau Gasol e seu salário gigantesco, mas teria que apostar em novatos com uma equipe que sempre estaria às bordas dos playoffs, correndo o risco de ser ruim demais para ganhar um joguinho sequer na pós-temporada mas boa demais para conseguir escolhas altas no draft. Foi preciso muita coragem e muita falta de cérebro (coragem e burrice não estão intimamente ligadas?) para cortar esse círculo vicioso e trocar Pau Gasol por um pacote de bolachas.

A troca, na verdade, visava o futuro e só pode ser melhor analisada agora. Na época, foi Pau Gasol e uma escolha de segunda rodada por duas escolhas de primeira rodada, Kwame Brown, Javaris Crittenton e os direitos pelo Marc Gasol, escolhido na segunda rodada pelo Lakers. Na prática, o Kwame Brown era apenas um contrato expirante para o Grizzlies economizar dinheiro e reconstruir as finanças, o Crittenton foi mandado para o Wizards por uma escolha de primeira rodada (e lá acabou sacando uma arma contra o Gilbert Arenas no incidente que quase acabou com a carreira do Arenas), e o que o Grizz conseguiu no final das contas foi uma caralhada de escolhas de draft e o Marc Gasol.

O que o Grizzlies fez com essas escolhas de draft é coisa de Grizzlies mesmo, uma bagunça: eles são obrigados a escolher os jogadores que ninguém mais quer, ou então draftar jogadores que claramente não querem jogar para a franquia ou que não treinaram para eles antes do draft. Chegaram a ter o Kevin Love, por exemplo, e acabaram trocando pelo OJ Mayo porque não tinham visto o Love em ação. Gastaram a segunda escolha do draft de 2009 com o Hasheem Thabeet, o pivô gigante que não sabe amarrar os próprios cadarços. Então é claro que eles não são o Spurs, cujos olheiros conseguem prever o futuro e draftam gênios até em divisão de time de futebol de aula de Educação Física da quarta série. Pra piorar, o Grizzlies ainda encrenca com os novatos na hora de assinar contratos, criando uma imagem ainda pior na mídia. É bem claro que eles são atrapalhados, não tomam as decisões certas e têm dificuldades com novatos, tanto na hora de draftar quanto na hora de assinar, agradar e tentar mantê-los na equipe. Mas há uma coisa que eles fizeram muito bem: guardar a grana liberada com a troca dentro de um cofre de porquinho.

Em geral quando uma equipe tem espaço salarial sobrando, a lógica é que você está sendo burro se não usar esse espaço salarial para contratar alguém e melhorar seu time. As regras te deixam pagar salários até um limite, pra quê ficar abaixo dele ao invés de contratar o máximo de ajuda com ele? O problema é que usar o espaço salarial em uma temporada significa que você sem querer comprometeu o espaço salarial das temporadas seguintes. Os contratos tendem a ser de longa duração, os jogadores ficam sob contrato por vários anos, e os salários vão subindo de temporada em temporada. Então usar o espaço salarial ao máximo numa temporada “só porque eu posso” pode mandar pelo ralo as finanças do time pela próxima década (né, Knicks?). O Grizzlies conseguiu espaço salarial de sobra ao trocar Pau Gasol, e com ele tentou contratar o Josh Smith, por exemplo. O Hawks igualou a oferta, o Josh ficou em Atlanta, e aí ao invés de gastar a grana no segundo melhor jogador disponível, ou contratando um pivô qualquer que não sabe o que é basquete mas é alto e pode trocar lâmpadas sem escadas, o Grizzlies economizou. Não teve medo de feder, de conseguir escolhas altas no draft, e de evitar ao máximo ter prejuízos. Por muitos anos a equipe teve a pior audiência de toda a NBA, o melhor a se fazer mesmo é tentar cortar os gastos ao máximo e saber esperar. Fazendo trapalhadas no draft ou não, se metendo em bagunças com os novatos ou não, o Grizzlies soube esperar e cuidar do dinheiro.

Quando isso acontece, é possível se aproveitar de oportunidades que volta e meia dão sopa na NBA mas ninguém está em condições de agarrar. Tipo um time querendo se livrar do Kevin Garnett, por exemplo, ou do Ray Allen, ou do Kendrick Perkins, ou do… Pau Gasol? Então, o que o Grizzlies fez foi achar alguém que quis se livrar do Zach Randolph (porque havia na cagada conseguido a primeira escolha no draft e iria pegar o Blake Griffin) e, com o espaço salarial para conseguir fazer a troca funcionar, conseguiu um jogador que de outro modo não aceitaria jogar por eles. Paciência foi tudo: conseguiram jogadores veteranos como o Zach Randolph, tiveram grana para dar um contrato gigantesco para os novatos que deram certo como o Rudy Gay, deixaram os novatos que eram mais-ou-menos em quadra sem medo de perder até ver se podiam render algo, deram a grana para os que se sairam bem depois de muita insistência como o Mike Conley, e trocaram os que não deram em nada por jogadores veteranos, como o Hasheem Thabeet mandado pelo Shane Battier.

Essa é uma receita razoável para reconstruir um time, mesmo se for feita de modo capenga. Basta apertar o botão do apocalipse, se livrar das estrelas, guardar a grana para abraçar alguma oportunidade maluca, draftar uma caralhada de novatos, e não ter vergonha de perder muito até dar certo. O Wolves está no mesmo caminho. Não é um plano genial como o do Thunder ou do Blazers, mas é um plano acessível até para as equipes mais confusas, como o Pistons. Só que ainda falta o ingrediente secreto capaz de tornar essa reconstrução capenga do Grizzlies uma equipe capaz de vencer o Spurs, falta o “elemento X” capaz de tornar açúcar, tempero e tudo-que-há-de-bom em Meninas Superpoderosas: um cara como o Tony Allen.

“Isso é fácil”, você deve estar pensando. “Conheço um monte de idiotas sem cérebro capazes de se machucar sozinhos dando uma enterrada que não vale pra porcaria nenhuma”.

Sim, isso é verdade. Jogadores que esquecem o cérebro num pote na geladeira antes de saírem de casa são comuns, e o Tony Allen deu mais dor de cabeça para o Celtics do que ajudou nos anos que esteve lá. Mas algumas coisas são fundamentais: ele é um bom defensor, aprendeu a defender em conjunto com Kevin Garnett, e veio de um ambiente extremamente motivado, coletivo e focado em vitórias. Imagina só o Tony Allen e sua mentalidade vencedora herdada dos tempos de Celtics no vestiário do Grizzlies, em que todo mundo devia achar a coisa mais natural do mundo perder jogos de lavada (especialmente o Zach Randolph, que provavelmente sempre pensou que “vitória” fosse apenas uma palavra que queria dizer “o time adversário”). O confronto com certeza foi imediato. Tony Allen não teve medo de pegar no pé dos companheiros, de exigir uma postura diferente em quadra, de cobrar por defesa. Mesmo sendo um jogador zé-ninguém com minutos limitados. Em quadra, guiou pelo exemplo sendo um jogador burro que mesmo assim dava o sangue dentro de quadra na defesa.

Diz a lenda que numa partida de pôquer no avião do Grizzlies, indo para um jogo, OJ Mayo perdeu 1.500 dólares para o Tony Allen mas se recusou a pagar. Tony Allen teria agredido verbalmente o adversário, questionado sua moral, e os dois saíram na porrada a um ponto tal que o OJ ficou cheio de hematomas na cara e teve que ficar de fora da partida seguinte da equipe. Desde então, pelo que dizem, os jogadores do Grizzlies chegaram a um acordo: todo mundo pode falar o que quiser para todo mundo, cobrar, questionar caráter, o que for, porque eles são uma família e não vão sair na porrada. O pôquer passou a ser proibido nas viagens da equipe, mas o incidente uniu os jogadores. Tony Allen vem de um lugar em que é normal exigir, cobrar e questionar seus companheiros de equipe, o Garnett até fez o Glen Davis chorar dentro de quadra. Quando o Grizzlies entendeu que é esse tipo de ligação que faz equipes vencedoras (e equipes defensivas), as coisas finalmente entraram nos rumos.

O dinheiro do Grizzlies foi bem usado com os novatos que quiseram ficar (ao invés de esperar por estrelas que só querem jogar com outras estrelas) e com jogadores caros que seus times estavam jogando no lixo, como o Zach Randolph, que agora se sente acolhido e valorizado (tudo porque o Grizzlies, além de dar uma oportunidade ao ala, não esperou um segundo para lhe dar um contrato gordo assim que ele teve uma partida genial contra o Duncan). Mas um dos dinheiros mais bem gastos dessa equipe é com o porcaria do Tony Allen. O que ele trouxe à franquia é inigualável. O Grizzlies até trouxe de volta o Shane Battier, ainda um dos melhores defensores da liga, mas ele é bom moço, reservado, controlado. Tony Allen vem da linhagem Garnett de gritos, cuspe na cara e beber sangue de criancinhas que motiva qualquer equipe – mesmo aquelas que preferem sair para ir no bingo.

É claro que esse Grizzlies ainda tem muitos problemas. Pra começar, sentem falta do Rudy Gay, que sabe criar o próprio arremesso, é o melhor arremessador de três da equipe e defende várias posições. Falta um facilitador no ataque para que as cestas não precisem ser todas brigadas, ganhas na marra. E o banco ainda é mais mirrado do que os seios da Keira Knightley. Mas agora eles têm uma dupla de garrafão que acredita um no outro, Marc Gasol e Zach Randolph se procuram no ataque, abrem espaço um para o outro, e se complementam na defesa – e essa dupla só foi possível graças à troca do irmão do Marc, Pau Gasol. E isso é maior do que parece: nenhuma dupla de garrafão na NBA tem, nesse momento, esse grau de companheirismo e essa intimidade em quadra, nem mesmo Pau Gasol e Andrew Bynum. E o resto do time acredita que pode vencer jogos de verdade, mesmo se forem nos playoffs, mesmo se forem fora de casa, mesmo se forem contra o Spurs, e mesmo se forem contra o melhor colocado do Oeste – tudo porque um tal de Tony Allen mudou a postura dessa equipe, encheu de porrada um ladrão no pôquer, e custou apenas um punhado de milhões antes tão bem economizados.

Tony Allen e Shane Battier vão ter muito trabalho marcando Tony Parker e especialmente Manu Ginóbili, que voltou de contusão agora com um braço biônico e continua acertando aquelas cestas idiotas e inexplicáveis que vencem jogos de playoffs dos modos mais aleatórios possíveis. Mas bizarramente a batalha no garrafão contra o todo-poderoso Tim Duncan parece tender para o Grizzlies. Eu sei que todo mundo aqui por essas bandas da caipirinha pede pelo Tiago Splitter para ajudar na marcação de Randolph e Marc Gasol, mas sejamos realistas, por melhor defensor que o Tiago seja, ainda falta treino físico para lidar com o muro de tijolos que é o Marc e o muro de banha que é o Randolph. É desleal. Popovich prefere apostar na experiência de Duncan e McDyess, ou compensar no ataque com Matt Bonner, coisa que o Splitter ainda não pode fazer. De todo modo, o Grizzlies está um passo a frente no garrafão (com a ajuda do excelente Darrel Arthur e de Sam Young, também vindos com escolhas de draft da troca do Gasol) e mordendo com força em tudo em que estão atrás, tentando vencer mais na vontade do que na técnica – e gerando com isso a série mais equilibrada desses playoffs. Se fosse a equipe de Pau Gasol e Jason Williams de três anos atrás, com técnica de sobra, entraria se achando incapaz de vencer uma partida de playoff. Isso não é auto-ajuda, não tem nada mais idiota do que esse lance de “tudo que você acha que pode fazer, você pode fazer”, mas postura é algo essencial no esporte. Quando uma equipe realmente acha que pode vencer, ela fará o que for necessário. Se tiver dois gordos gigantes no garrafão, então, é capaz que até consiga.

Esse Grizzlies então nos serve de alerta não só para o papel da postura, da defesa e da paciência na construção de uma equipe, mas também para como uma troca pode parecer muito, muito idiota quando acontece – e ser mesmo idiota – apenas porque não temos como perceber que seria ainda mais idiota continuar insistindo nos mesmos erros. Memphis Grizzlies: tropeçando sempre de novas maneiras desde 1995.

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