Os Estados Unidos continuam sua campanha nessa Olimpíada num limbo muito esquisito: nunca dominam seus jogos, mas também nunca passam sufoco. A vitória em cima da Espanha por apenas 6 pontos não conta a história do jogo, dado que em nenhum momento os Estados Unidos correram riscos reais de perder – nem por um momento do jogo a Espanha chegou a liderar o placar – mas também não conseguiram deslanchar e abrir uma larga vantagem, deixando os espanhóis sempre em condições de acreditar numa vitória possível. Isso se dá principalmente porque a seleção americana apresenta sempre as mesmas dificuldades, que a impedem de dominar os jogos, mas suas qualidades são suficientes para que as partidas não saiam jamais do controle. As dificuldades são, principalmente, o jogo de costas para a cesta e a criação de espaços para arremessos de perímetro.
O jogo de costas pra cesta ainda é a maior dificuldade dos jogadores da NBA na hora de se adequar à FIBA, pois exige um jogo mais rápido dos pivôs, tanto na finalização quanto nos passes, e um posicionamento inteligente e sempre em movimento, limitando o poder das jogadas de força e o controle na marra da região abaixo do aro. Carmelo Anthony sempre teve sucesso no basquete internacional ali embaixo, mas é cada vez mais necessário nos arremessos de perímetro quando faltam opções mais simples de ataque para os Estados Unidos. Resta, então, contar com DeMarcus Cousins, que ainda não entendeu NADA das regras de contato da FIBA – aliás, se formos ser sinceros, ele ainda não entendeu sequer as regras de contato da NBA até aqui. Cousins é um dos jogadores da NBA com maior média de faltas por jogo, sendo várias delas faltas de ataque buscando espaço dentro do garrafão. Esse enorme volume de faltas gera imediatamente um enorme número de faltas técnicas, já que Cousins não se conforma com as marcações da arbitragem. Nessa Olimpíada, com os árbitros limitando ainda mais o contato físico do que ele está acostumado e com as defesas se amontoando no garrafão, forçando o pivô a brigar pelo posicionamento, Cousins virou uma máquina extremamente eficiente em COMETER FALTAS e RECLAMAR DELAS. Contra a Espanha, depois de sofrer no duelo individual com Pau Gasol, DeMarcus Cousins foi eliminado com 5 faltas ainda no meio do terceiro período.
Na ausência dele, o responsável por criar uma válvula de escape no garrafão contra a forte defesa pressionada da Espanha no perímetro foi DeAndre Jordan – que tem habilidade ZERO no jogo de costas para a cesta. Seus pontos fáceis vieram sempre em jogadas de ponte-aérea, com passes se aproveitando da defesa agressiva espanhola para encontrar DeAndre sem marcação, ou em rebotes ofensivos que simplesmente TRUCIDARAM a Espanha. O impacto psicológico do pivô na partida foi tão grande que é difícil colocar em palavras: os 16 rebotes (sendo 3 ofensivos) e os 4 tocos de DeAndre Jordan sequer arranham a superfície do estrago que ele causou nos espanhóis. Se o pivô do Clippers já é uma força física intimidante na NBA, o que dizer então dos espanhóis, que possuem em Gasol, um jogador que não sai do chão, seu jogador mais imponente de garrafão. De Andre Jordan foi responsável por um sem número de arremessos ridiculamente alterados pelos jogadores da Espanha para escapar de um toco que muitas vezes sequer estava vindo, muitas bandejas abandonadas no meio do caminho que viraram passes forçados para fora do garrafão na esperança de não se chocarem com o pivô, jogadores desistindo de arremessar no pick-and-roll por medo de Jordan alcançar o arremesso na cobertura, e eventualmente levou a Espanha a desistir da briga pelo rebote ofensivo por completo. Além de seu domínio físico, o grande mérito do pivô – que por tantas vezes nos foi alvo de piadas porque não é lá muito SABIDO em quadra – foi conseguir FICAR EM QUADRA mesmo com tanta agressividade defensiva, coisa que Cousins não fica nem perto de conseguir.
Fora do garrafão, os Estados Unidos continuaram alternando dois tipos de jogada: corta-luz fora da bola para gerar arremessos livres de três pontos e jogadas individuais, no mano-a-mano, arremessando por cima da defesa. Por melhor que a Espanha tenha marcado, a seleção americana criou muitas jogadas para que Klay Thompson arremessasse totalmente livre, mas quando algumas dessas bolas não caem e a Espanha consegue encaixar uma boa defesa eventual, os Estados Unidos parecem se contentar com os arremessos forçados no perímetro mesmo. É curioso a maior parte desses arremessos forçados parece NORMAL para nossos padrões de NBA, já que a defesa parece ligeiramente mais lenta, os marcadores mais baixos, a linha de três pontos mais próxima, o garrafão mais cercado, etc. É fácil entender o motivo de Kevin Durant achar que dar um arremesso por cima de Rudy Fernandez parece uma boa ideia, mesmo que estatisticamente não seja a melhor coisa a se fazer num jogo único, decisivo, mata-mata, em que uma série de arremessos errados pode ser suficiente para acabar com sua participação na competição.
Nesse sentido os espanhóis são mais controlados, buscando sempre os melhores arremessos possíveis e confiando pouquíssimo na capacidade individual contra a marcação cerrada americana. O resultado dessa abordagem é mista: por um lado gera uma maior quantidade de arremessos ESPERTOS do que os adversários, mas por outro fica muitas vezes sem um único arremesso possível de ser dado, com jogadores se recusando a atacar a cesta mesmo quando obviamente todas as jogadas serão quebradas pela defesa americana. Foi por conta disso que durante o primeiro quarto quase todos os arremessos da Espanha foram ou bolas de Pau Gasol, que estava assumindo as jogadas individuais, ou arremessos forçados de estouro de cronômetro, quando nada mais havia dado certo para a Espanha e ninguém ousava arriscar. Durante esse período os Estados Unidos erraram muitas bolas de perímetro, tanto forçadas quanto livres, mas acertou bolas de três pontos num ritmo muito superior ao que a Espanha conseguia lidar. Conforme o placar foi abrindo, a Espanha foi apertando sua marcação – na saída de bola, nas cobranças de lateral, nos passes de perímetro – e com isso conseguiu um punhado de roubos de bola para contra-ataque, mas a defesa agressiva também APOSTOU demais, e toda vez que errava uma bola criava espaços que os americanos, na insistência, aproveitavam. Mesmo quando a seleção dos Estados Unidos errava arremessos simples, quase sempre conseguia um rebote de ataque que pegava a defesa da Espanha mal colocada – em parte já pensando no contra-ataque – e tirava da cartola uma cesta e uma falta bônus pra coroar o desastre.
Nenhum dos dois times arremessou suficientemente bem de fora para fazer estrago, mas a Espanha passou o jogo inteiro correndo atrás, tendo que eventualmente forçar mais arremessos arriscados, ir para o tudo ou nada, e nessas condições os Estados Unidos sempre estão numa posição absolutamente confortável, fazendo o que fizeram o jogo inteiro, confiando no esquema e esperando que em algum momento as bolas simplesmente caiam. Os americanos ainda não conseguiram uma bola de segurança, nem Durant nem Carmelo estão dominando seus marcadores individuais, e Klay Thompson (que segurou as pontas nesse jogo com 4 bolas de três pontos) ainda não encontrou um ritmo e tem um péssimo hábito de arremessar em cima de marcadores que ele considera inferiores e acabar errando feio, mas se os adversários também não a tem e eventualmente precisam arriscar, os arremessos difíceis dos Estados Unidos estão muito mais dentro da zona de conforto dos arremessadores da NBA. Por enquanto não passearam e nem foram contestados, e a Espanha acreditou mais por proximidade do placar do que por qualquer coisa que estivesse acontecendo de verdade no mundo de jogo.
A outra semi-final viu a Austrália enfrentar a Sérvia. Com jogadas simples, bem executadas e encontrando espaços nas costas das defesas adversárias, a Austrália era pra mim a melhor equipe do torneio até agora. Até que a Sérvia simplesmente levantou um MURO e a Austrália entrou em colapso. Foi CONSTRANGEDOR ver a Austrália derretendo física e psicologicamente ao longo de todo o primeiro quarto, e se fosse luta de boxe qualquer treinador com um mínimo de dignidade teria jogado a toalha para parar o combate. O que a Sérvia fez de maneira impecável foi pregar dois POSTES na linha de fundo, um de cada lado da quadra, forçando os australianos a baterem para a cesta pelo meio do garrafão, onde eram ESMAGADOS por uma defesa física e jogadores gigantes. Em nenhum momento a Sérvia abriu mão de defender o fundo da quadra, anulou os backdoors australianos, contestou os cortes para a cesta com excelente defesa no perímetro e pivôs extremamente disciplinados no garrafão e a Austrália simplesmente entrou em PÂNICO sem saber como pontuar.
Enquanto isso, a resposta da Sérvia para a forte defesa australiana foi um Milos Teodosic preocupado como nunca em pontuar. Se havia alguma dúvida de que Teodosic era o melhor jogador de basquete fora da NBA – e que ele faria estrago na liga americana – essas dúvidas viraram farofa frente ao seu poderoso arremesso e um invejável controle de espaço na quadra. Nessa Olimpíada já vimos todo o arsenal de jogadas que o armador sérvio tem após cada corta-luz: ele mantém o drible SEMPRE VIVO (é o anti-Jeremy Lin), não tira os olhos do jogador que fez o corta (em geral, o pivô Miroslav Raduljica) e continua a jogada até encontrar o pivô para a finalização; se a defesa fechar no pivô, ele infiltra; se a defesa fechar o caminho pra cesta, ele arremessa. É impressionante de ver como o fato de que ele é sempre uma ameaça enlouquece as defesas e abre portar para ele sempre tomar as decisões corretas no ataque:
Players can learn a lot studying how Serbia's Milos Teodosic reads/passes/scores using the ballscreen @FastModel pic.twitter.com/J0n9Prt5Rg
— Greg Youncofski (@CoachGregUC) August 20, 2016
Mas contra a Austrália ele mostrou uma arma nova. Após receber o corta-luz, a equipe australiana faz a troca, com um pivô dando passos para trás para bloquear o caminho para a cesta enquanto o defensor que ficou no corta-luz persegue o adversário por trás, para dobrar a marcação ou contestar uma eventual bandeja, fazendo um sanduíche e diminuindo os espaços. Mas Teodosic DOMINA OS ESPAÇOS e após cada corta-luz mudava o ritmo da sua infiltração para ao mesmo tempo afastar o pivô, que pensava estar vindo uma bandeja, e fazer com que o seu marcador original se CHOCASSE contra suas costas devido a uma parada súbita, protegendo com as costas um arremesso de média distância. Foi assim que a Sérvia pulou rapidamente à frente do placar e a defesa da Austrália DESMANCHOU, desesperada com esse buraco na cabeça do garrafão que o Teodosic criava apenas com ritmo e inteligência. Com os pivôs, especialmente Bogut, tendo que contestar o armador sérvio nessas jogadas, Raduljica ficou completamente livre para jogar embaixo da cesta, se aproveitando de sua boa leitura de jogo para passar a bola para outros jogadores dentro do garrafão para manter a defesa da Austrália sempre atrasada e em movimento.
É a famosa bola de neve: quanto mais difícil era pontuar, mais a Austrália era agressiva na defesa e se atrapalhava contra Teodosic, cometendo muitas faltas; quanto mais a Austrália não conseguia defender, mais precisava arriscar no ataque e mais se atrapalhava, forçando arremessos de longa distância e cavando mais e mais o próprio buraco. No primeiro quarto a Austrália só acertou 2 dos 15 arremessos que tentou. O segundo quarto terminou com a Sérvia 21 pontos à frente no placar – só não foi maior a diferença porque os sérvios erraram muitas bolas fáceis e a defesa da Austrália não é nenhum passeio no parque, mesmo atrapalhada. Pior do que todos esses números: a Austrália não cobrou UM ÚNICO LANCE LIVRE durante todo o primeiro tempo, incapaz de criar qualquer jogada que não fossem arremessos de longa distância forçados. Os australianos até entraram melhor em quadra no segundo tempo, jogaram um pouco mais no garrafão, acertaram alguns dos arremessos forçados que tanto tentaram, cavaram faltas e até pareceram um time de basquete, mas a Sérvia continuou sendo o melhor time em quadra, o que somado à surra do primeiro tempo rendeu uma vantagem de 26 pontos ao final da partida. Um banho de água fria na Austrália, que parecia toda azeitada mas estava apenas a uma grande defesa inteligente de distância de não saber o que fazer numa quadra de basquete. É claro que foi um dia ruim da Austrália, se pudessem voltar à quadra fariam provavelmente melhor – como é o caso de toda surra colossal nesse nível de qualidade dos times, nada é puro mérito de um ou demérito do outro, exigindo uma combinação de ambas as coisas para acontecer. Mas a Sérvia mostrou que tem uma defesa adaptável, capaz de explorar as fraquezas do adversário, um garrafão fortíssimo e inteligente que joga de maneira entrosada, e um armador que pode pontuar de tantas maneiras e encontrar companheiros livres por tantos ângulos distintos que não há defesa do planeta que não entrará em pânico contra ele. Os Estados Unidos não chegaram a passar sufoco quando enfrentaram a Sérvia na primeira fase, mas certamente foi o time com mais chances de arrancar uma vitória improvável dos americanos. Depois da performance contra a Austrália, me vejo obrigado a recuar nos meus posicionamentos iniciais sobre essa Olimpíada: talvez o limbo dos Estados Unidos, que não dominam mas não sofrem riscos reais, não seja suficiente para uma medalha de ouro. Se encaixar tudo que mostrou contra a Austrália, a Sérvia tem chances reais de vencer o jogo. Quem sabe disso muito bem é o técnico dos Estados Unidos, Mike Krzysewski, que se diz apaixonado pelo Teodosic desde o Mundial de 2004. Ou seja: há existência de vida fora da seleção americana, e a seleção dos Estados Unidos sabe disso. Basta ver se serão capazes de sair desse limbo, vencedor mas insuficiente, para responder à altura no jogo mais importante dessa Olimpíada.