>

Mas e basquete, você não joga?”
Vale mencionar que, quando me deparei pela primeira vez com o tal basquete de rua, uns anos atrás, fiquei imediatamente fascinado. Sou apaixonado pelo conceito de todo e qualquer esporte, que cria uma linguagem comum entre seus praticantes através de suas regras. Dois praticantes de basquete ou futebol sempre se entenderão, em qualquer lugar do mundo, ainda que não falem a mesma língua. Falarão através do esporte, mostrarão as diferenças culturais no modo que o praticam, mas na essência estarão compartilhando da mesma prática e do mesmo interesse. O único problema é que, para que isso aconteça, o esporte precisa sofrer uma série de delimitações e restrições. Ao se estabelecer a regra do impedimento, poda-se um pouco da liberdade do futebol mas cria-se um conjunto de regras que devem ser seguidas por todos os praticantes. É justo, cria uniformidade.
No entanto, quanto mais regras são estabelecidas, menor a margem possível para a expressão do indivíduo, menor a possibilidade de ser criativo. Não adianta acordar com a genial idéia de segurar a bola de futebol com as duas mãos e correr em direção ao gol para demonstrar sua criatividade e visão de mundo, qualquer juiz do planeta vai apitar na tua orelha e te avisar que não pode tocar com a mão na bola. E se você estiver jogando sem juiz, apenas entre amigos, todos eles vão rir da tua cara, a não ser alguns, que vão te bater mesmo. E se você estiver jogando sozinho e fizer isso, agora entenderá porque não tem amigos. Ser criativo no esporte, então, é encontrar aquele pequeno espaço entre a liberdade e o permitido pelas regras, tipo petecar a bola com a cabeça, o famoso drible da foca. Mas basta perguntar ao Kerlon e ele te dirá que a competitividade no esporte cria praticamente uma regra escondida, a de que a criatividade tem que conseguir vencer também as porradas que dão em quem atreve a se expressar. Hoje em dia, muita gente tem vergonha de dar um drible novo, mas ninguém tem vergonha de descer o cacete. É uma regra silenciosa, velada.
Quando conheci o streetball, uma matemática inconsciente se formou na minha cabeça. Se esse basquete de rua tem menos regras, consequentemente tem mais liberdade, mais criatividade e maior espaço para a expressão pessoal. Parecia bacana, uma abordagem diferente, um passo mais longe do esporte, mas um passo mais perto da arte. Ninguém quer saber se você andou com a bola, se carregou, se deu dois dribles, se petecou a bola com os pés, o que importa é ser criativo e criar um espetáculo. Na minha primeira impressão, parecia uma prática de resistência contra as regras, as delimitações e o padrão, uma versão esportiva do jazz. Uma ferramente dos excluídos contra a repressão, dos guetos contra o domínio sóbrio e carrancudo da NBA do comissário David Stern.
Comecei a assistir o maior grupo de streetball dos Estados Unidos, conhecido como And 1, rodar o país dando espetáculos e recrutando candidatos para fazer parte do time, tudo num modelo bizarro de reality show que, estranhamente, não tem cenas de sexo. Eu vibrava com os lances, acompanhava a vida dos jogadores, torcia para os meus favoritos. Até que minha visão romântica da coisa foi sendo aniquilada por uma quantidade absurda de imbecis, excesso de competitividade e um tal de Rafer Alston.
Explico. A intenção da And 1 é, claro, criar um espetáculo com jogadores que se expressam livremente através de um jogo de basquete com o mínimo de regras possíveis. Mas apenas a demonstração de habilidades e criatividade não era suficiente, tornava-se necessário enfrentar outros times e ganhar de todos, para mostrar a superioridade da marca. Para isso, um técnico foi escolhido para traçar estratégias, gritar com um louco e dar ordens para os jogadores. Quando um jogador estava dando espetáculo mas não estava ajudando o time a vencer, ganhava esporros, puxões de orelha e ia sentar no banco. Se a vitória é tão importante para eles a ponto de renunciar aos jogadores criativos, então qual o sentido do streetball? Joguem o basquete convencional e joguem para vencer, sem dribles malucos e passes cheios de enfeite. Mas a sede de vitórias só aumentou com o tempo, principalmente porque a lenda do And 1, Skip to my Lou, acabou indo jogar na NBA. No começo, fez muita merda no Bucks, ele andava e carregava a bola o tempo todo, mas depois se acertou no Miami Heat como um bom arremessador, teve atuações sólidas e responsáveis no Raptors e então foi atormentar minha vida no Rockets como armador titular, usando o nome real de Rafer Alston. Desde então, todo jogador da And 1 não quer apenas vencer – quer também provar que pode jogar na NBA, que pode dar certo no basquete convencional. Para cada drible maluco há sempre um técnico berrando que aquilo vai comprometer a vitória, seguido pelo jogador que driblou desculpando-se para a câmera ao fim do jogo: “Eu consigo fazer isso com a bola, sei driblar assim, mas também sei jogar sério. Posso jogar contra os caras da NBA de igual para igual.” Claaaro que pode. Conhece aquela do português?
Fui assistir ao jogo do And 1 contra um selecionado brasileiro no Ibirapuera e essa vontade de vencer ficou mais do que óbvia. Ao tomar um drible constrangedor, o armador-sensação nanico e branquelo The Professor agarrou o brasileiro pela cintura, parando o jogo. Quando o placar começou a apertar, começaram a apelar para faltas duras, apertando na defesa e disparando cotoveladas. Ao fim, uma das estrelas do And 1 brigou feio com um brasileiro e teve que ser contido. Ah, os prazeres de ver o esporte unindo culturas, realidades distintas e fazendo com que uma queira beber o sangue da outra em nome da vitória.
Se eu me preocupo com a influência da And 1 no aprendizado dos fundamentos do basquete pela garotada? Se a And 1 está colocando o foco nos dribles ao invés de no posicionamento, defesa, arremessos, passes, rebotes e todo o resto? Não, não me preocupo, não me importo, tô cagando e andando. Mas eu me preocupo demais com o espírito competitivo que a And 1 injeta nas veias da pirralhada. Pessoalmente, joguei basquete apenas um punhado de vezes em quadras abertas em parques por aí. O basquete praticado é, em geral, o streetball. São adolescentes executando dribles malucos, passes de costas, e depois dando cotoveladas e socos no queixo para vencer a todo custo uma partida de brincadeirinha. Não compreendo. Se não há risadas, diversão e expressão no streetball, para que ele serve? Por que não estão jogando o basquete tradicional, competitivo, e tendo chances de jogar em clubes de verdade onde poderão ver muito sangue e ouvir muitos técnicos berrando com eles? Aliás, sendo que jogo de graça apenas para me divertir, qual seria o sentido de jogar contra adversários que me dão um soco na nuca para impedir que eu faça uma bandeja livre? Se você quer tanto a bola, pega a bola, toma, é melhor eu ir ver o filme do Pelé.
Por isso, entendo cada vez menos a existência do streetball. Nos Estados Unidos, inclusive, ele acaba criando um ciclo completamente deturpado. Ao invés de ser um esporte praticado por quem quer se expressar mais livremente ou por quem não conseguiu jogar na NBA ou em outras ligas profissionais, ele acaba seduzindo adolescentes que querem ou precisam de uma graninha e não acham que valha a pena ir jogar de graça por uma universidade. O problema é que são as universidades que revelam os talentos para a NBA, então quando um jovem prefere ganhar um dinheirinho para jogar streetball na TV ao invés de ir pra faculdade, ele está consequentemente recusando uma chance de jogar na NBA (além de perder a chance, claro, de ter um diploma universitário, que serve ao menos para render cela especial caso você seja preso). Mas jogar na NBA ainda é o sonho de qualquer jogador de basquete, seja pelas oportunidades, seja pelo dinheiro, e então aqueles que negaram ir para a universidade acabam tentando convencer o resto do mundo, numa quadra de streetball, que conseguem jogar sério e poderiam estar praticando basquete de verdade. Tudo em vão. O Rafer Alston, único a sair do mundo do streetball rumo às quadras da NBA, fez faculdade normalmente. E apesar de ser uma grande lenda no basquete de rua, fede generosamente no basquete tradicional (mesmo que alguns não concordem comigo, provavelmente por não serem torcedores do Houston como esse sofredor que vos escreve).
Teoricamente, acho o streetball uma iniciativa válida e divertida, mas apenas se alguém estiver se divertindo através dela. Em geral, quando vejo alguém se desfazendo das regras do basquete, costumo perguntar o motivo. “Por que você prefere jogar basquete de rua?” É uma escolha, claro, mas é em geral uma escolha incoerente. As regras viram farofa mas a competição, a vontade de vencer, a agressão, os egos, os técnicos, a obrigação, tudo está lá. Para quê tirar as regras, então, se o resto do pacote não fica nem um pouco mais divertido? No fim das contas, o streetball não é jazz, não é resistência – é apenas uma idéia que, deturpada, tenta arranjar em vão desculpas para existir. E que enquanto isso vende uns pares de tênis que, aliás, me causaram uma tendinite no joelho. Não recomendo.