“Todo mundo come”

John Wall está cada vez mais perto de retornar ao Washington Wizards após 2 meses fora em consequência de uma cirurgia nos joelhos. Em teoria o armador deveria voltar às quadras nos próximos dias, mas na pior das hipóteses estará pronto para defender seu time na primeira rodada dos Playoffs se o Wizards mantiver sua classificação. Mas ao contrário de outros times que aguardam ansiosos o retorno de jogadores centrais nesse momento delicado da temporada – como o Nuggets, que comemorou a volta de Paul Millsap, e o San Antonio Spurs que tem sonhos eróticos com o regresso de Kawhi Leonard – o Wizards aguarda John Wall com um misto de apreensão e ressalva. Não restam muitas dúvidas de que o time precisa dele, e no entanto todos os indícios mostram que o time não está exatamente eufórico com o seu retorno.

Nos tempos de Allen Iverson, um dos jogadores que mais passava tempo com a bola nas mãos na história da NBA, eventualmente lesões forçavam o Sixers a jogar sem sua maior estrela. O resto do elenco, limitadíssimo, entrava em quadra como se fosse noite de Natal: jogadores podiam finalmente participar do ataque, atuar em posições importantes, finalizar jogadas, sentir um gostinho de serem verdadeiramente importantes para o funcionamento do time. O ânimo dos jogadores era tamanho que lesões do Iverson sempre levavam a duas ou três vitórias seguidas do elenco de apoio, até que finalmente eles “caíam na real” – começavam a perder sem parar até o retorno triunfal de seu jogador principal. A síndrome é conhecida: jogadores se empolgam com os holofotes e a quebra do marasmo que é ter que assumir diferentes papéis numa situação completamente nova, mas eventualmente a falta de talento e a ausência do jogador ao redor do qual a equipe foi construída faz com que o time entenda que a estrela está ali por um motivo. Alguns críticos apontavam que o Sixers parecia melhorar sem Iverson em quadra – e o mesmo já foi apontado nas raras ausências de LeBron James no Cavs, também – mas esse tipo de afirmação estapafúrdia não conseguia resistir à segunda semana, depois que a empolgação passava e as derrotas começavam a se empilhar.

Kevin Durant recentemente sugeriu, em entrevista, que essa “melhora momentânea” dos times que perdem suas estrelas não é apenas por conta do ânimo renovado dos elencos de apoio, mas também porque os times adversários ficam com muita dificuldade de estabelecer um plano de jogo. Como se planejar para enfrentar o Cavs sem LeBron? Ninguém em sã consciência faz a menor ideia de como o time se comportará e, portanto, é impossível planejar à altura. Após duas ou três partidas já é possível saber qual é a movimentação tática do time sem a super-estrela, de modo que os adversários podem entrar em quadra preparados para marcar aqueles jogadores desconhecidos e as movimentações do elenco de fundo de banco. Nos Playoffs, em que os times podem se preparar profundamente no período de um jogo para o outro contra o mesmo adversário, esses elencos de apoio podem ser destrinchados e completamente anulados por qualquer time mais talentoso ou taticamente mais preparado.

Talvez essa seja a melhor explicação para o Wizards ter vencido 5 partidas consecutivas assim que John Wall se afastou para a cirurgia, iniciando as afirmações de que o time talvez fosse melhor sem ele. Mas, novamente, o discurso é difícil de se manter após a segunda semana: a sequência de vitórias deu lugar para duas derrotas consecutivas. Durante toda o tempo em que John Wall esteve afastado, o Wizards acumula 14 vitórias e 11 derrotas, um time bastante mediano – pode se gabar da vitória em cima do Celtics fora de casa em duas prorrogações, da vitória em cima do Heat também num jogo que foi à prorrogação, e também triunfos em cima de Raptors e Cavs, todos rivais diretos de Conferência; mas também pode se envergonhar de derrotas para Hornets e Knicks, bastante fora da zona de classificação para os Playoffs. A sequência atual de 3 derrotas consecutivas, segunda sequência tripla de derrotas dessa fase, mostra que não é como se o time estivesse melhorando progressivamente conforme se acostuma a jogar sem John Wall. Pelo contrário, fica cada vez mais evidente que os times estão se preparando melhor para enfrentá-los, que o Wizards tem dificuldades crescentes de criar jogadas e perde cada vez mais em objetividade ofensiva. Mas se esse é o caso, por que a volta de John Wall é motivo para apreensão?

A principal resposta é psicológica: o modo como os outros jogadores do elenco do Wizards se SENTIRAM durante a ausência de seu armador principal. Durante a sequência inicial de 5 vitórias seguidas sem John Wall, os jogadores não estavam felizes por terem vencido partidas, mas pela MANEIRA que haviam ganhado – foram 4 partidas que o time deu coletivamente ao menos 30 assistências, incluindo uma partida em que foram dadas 40 assistências. Como efeito de comparação, o Golden State Warriors, time que mais dá assistências na NBA, dá em média 29.7 assistências por jogo. Isso significa que sem John Wall o Wizards se transformou repentinamente no time mais ALTRUÍSTA de toda a Liga, com todos os jogadores passando a bola e arremessando quando em posição adequada para finalizar. Bradley Beal afirmou a plenos pulmões: “Isso é basquete divertido. Todo mundo toca na bola, todo mundo dá arremessos. Torna a vida fácil. Faz com que o vestiário se una, mantém nossa camaradagem”. E  acrescentou: “Assim, todo mundo come”.

Foi esse depoimento que começou o apocalipse em Washington: John Wall entendeu como uma ofensa pessoal, como se o resto do elenco fosse mais unido e feliz sem ele, e resolveu tirar satisfação. Bradley Beal e especialmente Marcin Gortat, amigo de Wall, tentaram apagar o incêndio dizendo que não se tratava de um ataque direto ao armador, mas sim uma constatação de que o esforço para superar a ausência de sua estrela estava dando resultado e mantendo todo mundo engajado. Mas não há como camuflar: o time se sente melhor sem seu grande líder em quadra. Não se trata mais daquela síndrome em que os jogadores estão apenas eufóricos porque estão participando e vencendo, mas que as derrotas retornam um senso de dependência da estrela ausente. O Wizards perdeu uma partida por 47 pontos de diferença para o Utah Jazz, a segunda pior marca da história da franquia, e mesmo assim o elenco está empolgado – porque Bradley Beal marcou 51 pontos em outra partida, máximo de sua carreira; porque Tim Frazier tem 6.5 assistências por jogo nos últimos 2 meses, enquanto Tomas Satoransky tem quase 6; porque agora o time dá assistências em 70% dos arremessos que converte em quadra, números similares aos do Warriors.

Já não é sobre vitórias, mas sobre como o resto do elenco se sente nesse novo formato. John Wall saudável fica com a bola nas mãos pelo menos metade do tempo em que está no ataque todos os jogos e dá 40% de todas as assistências do time. Agora, a bola roda na mão de todos e os líderes em assistências são Bradley Beal, com 23% das assistências, e Satoransky com 20%. É um time que dá mais assistências e também um time em que essas assistências surgem de todos os membros do elenco. Psicologicamente, parece mais empolgante do que depender das 9 ou 10 assistências de John Wall todo jogo, que acaba cobrando um preço por isso – centralizar a bola em suas mãos e lhe dar autonomia para ditar o ritmo da partida e escolher a dedo a participação dos seus companheiros no ataque.

A culpa, no entanto, não é de John Wall, mas da maneira que o Wizards, desde sempre, decidiu usar seu armador. Cercaram o jogador de arremessadores e de paredes capazes de protegê-lo com corta-luzes, de Nenê a Gortat. Se apoiaram na ideia de que Wall iria aumentar a velocidade do jogo e soltar a bola para os demais, que seriam apenas coadjuvantes de talento duvidoso. O salário gigantesco de Bradley Beal não aconteceu porque o Wizards acreditava que ele seria uma estrela independente, mas porque acreditavam que ele seria o melhor arremessador disponível para ficar nos arredores de John Wall, que iria acioná-lo nos momentos corretos. John Wall foi forçado a se adequar a uma visão defasada de basquete, em que um jogador controla tudo apenas com seu poder de passe e sua velocidade colossal, e que os demais orbitam ao seu redor. O resultado desse modelo são jogadores pouco engajados, defesas focadas em parar apenas um jogador, e um John Wall que nunca teve incentivo para se tornar um arremessador digno ou tranquilidade para sentar e descansar por dois minutos. Desde que chegou ao Wizards, o esquema tático sempre foi ele – um esquema que, obviamente, não sobrevive à sua ida ao banco.

Essa ideia de moldar John Wall para que fosse algo entre John Stockton e Steve Nash sem, no entanto, um ataque complexo e colaborativo como eram os ataques dos quais participaram essas duas estrelas, sempre foi algo que gerou enorme conflito. Por um lado, sempre tivemos um John Wall sobrecarregado e frustrado, exigindo uma segunda ou terceira estrelas, acreditando que seus fracassos em conseguir resultados na pós-temporada se davam por conta da falta de talento coletivo. Por outro, vimos Bradley Beal assumir um papel de maior importância no time entre trancos e barrancos, sob críticas do próprio John Wall, e sem espaço para assumir o papel verdadeiramente relevante que merecia. Beal simplesmente tornou-se grande e talentoso demais para o modelo em que esse Wizards foi construído. Ao lado de John Wall ele precisa ser um mero arremessador e abrir mão da bola, e se ele senta John Wall perde a principal arma a ser acionada no perímetro. Os dois precisam ser usados ao mesmo tempo, mesmo que ambos sejam limitados quando o outro concentra a bola nas mãos. John Wall nunca foi incentivado a ser um jogador que segura a carga ofensiva sozinho, enquanto Beal foi sempre incentivado a servir de mero apoio. Isso explica o motivo do Wizards jogar menos de 10 minutos em média por jogo com os dois jogadores no banco de reserva – situação em que o time toma, em média, 9 pontos a mais do que consegue pontuar. Nos Playoffs passados vimos justamente isso, o Wizards ser DESTROÇADO quando precisava descansar os dois jogadores simultaneamente, e ambos completamente exaustos ao final das partidas, desperdiçando enormes lideranças no placar rumo a uma eliminação precoce.

Nessa temporada, o Wizards parece dar os primeiros sinais de que pode escapar desse modelo fadado ao fracasso. Primeiro, mesmo enfrentando dores e pequenas lesões constantemente, John Wall conseguiu beirar os 36% de aproveitamento em bolas de três pontos que os tornam, enfim, uma arma a ser minimamente temida no perímetro e, portanto, eficiente sem a bola nas mãos e também sem arremessadores como Bradley Beal do seu lado o tempo todo. Segundo, Bradley Beal provou que é um jogador ofensivo completo e que pode fazer parte de um elenco plural, que movimenta a bola constantemente, e que encontra pontos em todos os lugares da quadra.

No basquete atual, não faz sentido nem um arremessador que não saiba infiltrar e cavar faltas, nem um armador que monopolize a bola sob pretexto de comandar todas as assistências do time. O Warriors mostrou que ter bons passadores significa que passes extras serão dados quando a bola estiver girando, não que apenas um jogador comandará as linhas de passe. Da mesma maneira, o Rockets mostrou que arremessadores ganham muito mais espaço se seus defensores temerem constantemente as infiltrações – James Harden e Eric Gordon arremessam livres justamente por conta de suas bandejas. Hoje, até mesmo armadores completamente focados no passe, como Lonzo Ball ou Ricky Rubio, precisam encontrar outras maneiras de serem efetivos. Lonzo Ball nunca deixa a bola parar, quase sempre abrindo mão do comando da equipe em nome de uma constância de movimento; Ricky Rubio finalmente parece eficiente no Utah Jazz por ter se tornado mediano nas bolas de três pontos, convertendo 33% de seus arremessos mesmo chutando mais do que em qualquer outro momento de sua carreira.

John Wall não precisa ser o lugar em que a bola estaciona para que surja alguma movimentação ofensiva – ele pode ser uma ferramenta para mover a bola e pode ser eficiente nas bolas de três pontos, enquanto Beal precisa atacar a cesta, como vem fazendo, para consolidar seu lugar como um arremessador decisivo. O problema é que embora os talentos individuais tenham evoluído nessa direção, a parte tática só caminhou rumo a uma abordagem mais “moderna” quando John Wall deixou a quadra com sua lesão no joelho. Depois de experimentar essa pitada de modernidade, não acho que há volta possível: derrota nenhuma no mundo convencerá esse elenco de que jogar com John Wall monopolizando o ataque é a maneira correta de se jogar, mesmo que ele seja o mais talentoso membro da equipe.

É por isso que o retorno de Wall é motivo para apreensão e muito, muito cuidado. Seus minutos devem ser limitados, com sua participação acontecendo de maneira progressiva e, de preferência, inaugurando um universo em que ele passe o mínimo de tempo possível em quadra ao lado de Bradley Beal – não por questões de personalidade ou de atrito, mas porque o time precisa ter seu talento “espalhado”, da mesma maneira que o Rockets faz com James Harden e Chris Paul. E o técnico Scott Brooks terá o enorme desafio de aproveitar a OPORTUNIDADE que foi a ausência de John Wall para instaurar, agora em definitivo, um basquete mais dinâmico e inteligente na equipe. Às beiras dos Playoffs, Wall terá que ser integrado numa função levemente diferente, com uma nova abordagem com relação ao controle da bola e, com sorte, uma nova postura com relação ao bem estar psicológico do seu elenco.

Não há futuro possível para o Wizards sem John Wall, isso seria absurdo, especialmente nos Playoffs quando, como disse Kevin Durant, os times estarão preparados para explorar as limitações ofensivas desse time. Mas John Wall retornar ao modelo que sempre jogou também não será um caminho de futuro, mas de passado – ele precisa ser inserido num modelo mais coletivo e descobrir, rapidamente, que a distribuição de responsabilidades é aquilo que ele na verdade sempre desejou em seu caminho para as Finais da Conferência Leste.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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