🔒Toronto Raptors, time grande

Em um podcast recente do jornalista Nate Duncan com o comentarista, GURU dos números e ex-Memphis Grizzlies John Hollinger a dupla cria um ranking com as melhores organizações da NBA. Por “organização” eles se referem à parte de gerência do time, especialmente dono, General Manager e tudo o que é diretamente decidido por eles antes da bola tocar a quadra. Além de aprender muito sobre o funcionamento interno de alguns times, é divertido ver o quanto a função é difícil de ser analisada.

Podemos, por exemplo, julgar simplesmente por resultados. Quem ganha mais jogos deve estar fazendo um excelente trabalho nos bastidores, certo? Mas isso seria ignorar todas as decisões péssimas do Los Angeles Lakers, que hoje tem a melhor campanha da NBA, simplesmente porque LeBron James decidiu que queria morar por aqueles lados. Até a troca por Anthony Davis não é mérito total deles. Ainda que exista o mérito de acumular bons jovens jogadores e escolhas de Draft, o negócio só aconteceu por desejo de LeBron e do próprio Monocelha, que sabotou qualquer oferta concorrente dizendo que não ficaria no time que o pegasse por uma ou duas temporadas. Sem contar o CIRCO que foi a contratação de um novo técnico, fizeram tudo do jeito mais atrapalhado possível, mas calhou que Frank Vogel está fazendo um excelente trabalho. Vai entender!

Quando a dupla fala sobre o Golden State Warriors, há uma chuva de críticas: se enfiaram num buraco salarial que transformou o time no pior desta temporada, estão amarrados num contrato gigante com D’Angelo Russell que ainda não sabemos se vale tudo isso e falharam na hora de desenvolver seus jovens jogadores nos últimos anos. Onde estão os então promissores Patrick McCaw e Jordan Bell agora que o time precisa tanto de sangue novo? Por outro lado, que tal valorizar o fato que montaram o grande time deste século na base de bom Draft e conquistando Andre Iguodala e Kevin Durant como Free Agents? Acho que qualquer time pagaria esse preço para ter os últimos cinco anos do Warriors.

Há ainda divergência entre os dois no peso dado a cada quesito, Hollinger valoriza menos acertos no Draft (“muito caótico”), mas dá pontos para a estabilidade de técnicos e a pouca influência de um dono nas decisões. Já Duncan é muito mais duro com trocas e renovações de contrato, ao ponto de tirar do topo da lista o San Antonio Spurs mesmo após duas décadas sendo o exemplo máximo de organização perfeita.

A discussão me remeteu ao livro Moneyball, onde o o autor Michael Lewis conta a história de uma temporada do Oakland Athletics, time da Major League Baseball que consegue se manter entre os melhores do esporte mesmo tendo uma das menores folhas de pagamento de uma liga sem teto salarial. A obra se tornou referência na hora de falar da revolução do uso das estatísticas no esporte ao mostrar como o General Manager Billy Beane fugia do padrão ao usar números na hora de contratar jogadores, realizar trocas e até definir o estilo de jogo que o time iria ter.

O sucesso do Oakland Athletics é relativo. Pelo pouco que gastam, são excepcionais, com inúmeras classificações para os difíceis Playoffs da MLB. Por outro lado, o sonhado título nunca chegou. No livro, Beane diz que levar o time à pós-temporada é o máximo que ele pode fazer da sua função. O caráter caótico de quase todos os esportes, em especial do beisebol, faz dos Playoffs e do mata-mata uma quase terra de ninguém. Ganhar aqueles jogos passa por muito psicológico, superação e talento individual, decisões pontuais dos técnicos e uma dose considerável de sorte. Como cartola, Beane acredita que seu papel está em formar um time competitivo que dê conta dos 162 jogos da temporada regular. Com tantas partidas as variáveis se normalizam e seu trabalho aparece, algo que não existe no caos de uma final.

No basquete a coisa é diferente, mas nem tanto. A história da NBA mostra como é preciso ter um dos melhores jogadores da geração no elenco para ter chance de conquistar um título, o que limita o trabalho do General Manager já que não é fácil achar esses talentos, mas por outro lado o basquete é considerado aquele com menos zebra nos esportes americanos. Os jogos são longos, há muitas posses de bola e as séries são em melhor de SETE partidas. Mesmo que existam lesões e golpes de sorte, em geral a final traz os melhores times da temporada regular.

Na NBA, portanto, você vai muito longe se for um time bom, mesmo que nem sempre isso se traduza em títulos. E ir longe muitas vezes, por muitos anos em sequência, talvez o melhor jeito de julgar os comandantes de uma franquia. Para analisar isso gosto de olhar sempre para o tripé estabilidade, flexibilidade e maximização de recursos. Não há melhor exemplo de bom uso desse tripé que o Toronto Raptors comandado por Masai Ujiri. E talvez a maior prova desse sucesso nem seja o troféu da temporada passada, mas o início da defesa do título agora em 2019-20.

A estabilidade é assunto recorrente aqui no Brasil quando o assunto é futebol. A demissão de técnicos é tão frequente e gratuita que nos acostumamos a sempre criticar o amadorismo dos clubes ao chutar alguém após meia dúzia de jogos, mas ao mesmo tempo é preciso não sair por aí defendendo treinadores que não sabem o que estão fazendo e que precisam deixar o cargo para o time ir para a frente. O equilíbrio é difícil e nada óbvio. A estabilidade, porém, é necessária para saber o que está dando certo e o que precisa mudar. Mais que trocar de técnicos, a estabilidade está no plano de jogo, na abordagem do Draft, no desenvolvimento de jogadores, na estrutura do elenco. Nos últimos anos, por exemplo, estamos sempre gastando Previews da Temporada para falar como Philadelphia 76ers, Sacramento Kings e LA Lakers não vão parecer em nada com o ano anterior, sejam as coisas ruins ou boas. Um mar de perguntas respondidas pela metade.

O Toronto Raptors, por outro lado, sabe muito bem o que quer e caminha sempre por essa direção. Gosto do exemplo das bolas de 3 pontos: o time passou anos dando cerca de 27% de seus arremessos de longa distância, o que lá em 2013 ou 2014 era o bastante para estar entre os dez times que mais arremessavam de longe. Quando o time manteve esse número mas caiu para VIGÉSIMO na lista em 2017, Ujiri viu que era hora de mudar. Foi quando DeMar DeRozan foi INTIMADO a chutar de longe e o time saltou para uma fatia de 34% dos seus arremessos vindos da linha dos 3 pontos, Top 5 na temporada. Não houve técnico demitido nem grandes trocas: um problema foi identificado, tratado com técnico e jogadores e resolvido. Algo que só é possível se você tem anos de trabalho com as mesmas pessoas e confia nelas.

Claro que isso não impediu que, anos depois, tanto o técnico Dwayne Casey quanto DeRozan fossem chutados do Raptors. O caso do primeiro, por incrível que pareça, tem a ver também com estabilidade. Não só o time conhecia o treinador de cabo a rabo, das qualidades aos defeitos, com anos de Playoffs nas costas, como via na sua própria comissão técnica o crescimento de Nick Nurse, que era assistente por lá desde 2013. Já DeRozan mostra a segunda perna do tripé, a flexibilidade.

Como dissemos antes, é preciso ter um dos melhores do planeta para ser campeão, mas como trazer um desses caras para seu time? Difícil planejar: você pode perder de propósito para ter uma ótima escolha no Draft, mas o sorteio das posições é sempre uma pegadinha e nunca é tão fácil saber se aquela promessa de 19 anos realmente vai vingar. Limpar espaço no teto salarial antes de um cara virar Free Agent é uma boa, mas você concorre com outros trocentos times, todos com contratos máximos iguais e fica nas mãos da escolha de um indivíduo. Por fim, há a opção da troca. Nem sempre caras do nível de Kawhi Leonard ficam disponíveis para mudar de time, mas quando isso acontece é preciso ter certa flexibilidade no elenco para fazer a coisa acontecer.

O Raptors tinha isso: bons contratos, estrelas em alto nível, promissores jovens jogadores e algumas escolhas de Draft. Pode não ser um pacote nível Boston Celtics, mas dava pra entrar na briga com qualquer um. Eles entraram, ganharam e trouxeram um dos melhores jogadores da década. Fizeram algo parecido meses depois, mandando Jonas Valanciunas e Delon Wright para o Memphis Grizzlies para fechar o time com Marc Gasol. E todos funcionaram perfeitamente logo de cara porque a estabilidade ditou o tom: eles só precisavam aprender e executar o que já estava sendo feito, não houve nenhuma revolução tática para abrigar esses caras.

Por fim há a maximização dos recursos. O título da temporada passada e o começo incrível de 2019-20 só são possíveis porque Fred VanVleet e Pascal Siakam estão jogando o mais fino da bola. Os dois não eram ninguém quando chegaram por lá e viraram excelentes jogadores ao se desenvolverem internamente, passando por períodos no time da Liga de Desenvolvimento e com a equipe de assistentes focada só no desenvolvimento individual dos jovens jogadores. Saíram de lá também Norman Powell, OG Anunoby, os depois trocados Jakob Poetl e Delon Wright e os reservas desse ano que estão provando ser o mesmo sucesso que Siakam e VanVleet foram há duas temporadas: Chris Boucher, Terence Davis e Matt Thomas já carregaram o time nas costas algumas vezes nesta temporada.

Para ter todos esses nomes citados o Raptors não precisou torrar milhões de dólares do teto salarial nem mandar até as cuecas em trocas bombásticas. Muito menos teve que gastar lábia para convencer alguém a morar no frio do Canadá. Eles simplesmente pegaram caras que o resto da NBA pouco se interessava e transformou em coisa grande. Mérito individual de cada um dos atletas também? Sem dúvida, mas acontece com tanta gente há tanto tempo que é difícil não enxergar um padrão e um mérito da equipe de desenvolvimento comandada por Masai Ujiri.

No trabalho de Nick Nurse também é delicioso ver como ele coloca a sua marca, muda muito, mas ainda vemos resquícios do time que Dwayne Casey montou ao longo da década. Jogadas que são desenhadas para Kyle Lowry e funcionam continuam sendo utilizadas, por exemplo. E a defesa por zona, que Casey trouxe após usá-la como assistente do Dallas Mavericks campeão em 2011, ganhou ainda mais espaço com Nurse. No vídeo abaixo, o ex-técnico Stan Van Gundy mostra inúmeras variações de defesas do Raptors nesta temporada, muitas variações da zona, um passo além do que Casey fazia:

Impressiona não só a criatividade do técnico, que volta a utilizar coisas que são típicas do basquete universitário mas de um jeito que dá certo na NBA, mas também o entrosamento do time, que consegue fazer tantas coisas diferentes, adaptadas para cada adversário, mesmo no meio do calendário maluco da NBA. Boa parte das 15 vitórias em 19 jogos do Toronto Raptors na temporada atual vieram mesmo sem Kyle Lowry e Serge Ibaka, machucados. A impressão hoje é que praticamente tudo o que fosse tentado nesse time daria certo, tamanho o entrosamento e sintonia entre todas as partes existentes.

É comum ver times bêbados de confiança após um título jogarem ainda melhor após a conquista. Vimos o Lakers assim em 2001, o Pistons em 2005, o Celtics em 2009, o Heat em 2013 e o Warriors em 2016, por exemplo. Nem todos foram bi-campeões nesses anos, mas fizeram temporadas regulares mais consistentes do que quando levaram os troféus. Mas se a história mostra isso dos donos dos anéis, indica também traumas com a perda de grandes estrelas, caso do Raptors neste ano após a saída de Kawhi Leonard. Só ver o Lakers sem Shaquille O’Neal em 2005, ou todos os times deixados por LeBron James: o  Cavaliers em 2011, o Heat em 2015 e de novo o Cavs em 2019. Alguns desses ainda tinham super estrelas no elenco (Kobe Bryant, Dwyane Wade e Kevin Love, por exemplo) e mesmo assim não conseguiram lidar com a perda repentina de alguém tão importante. Mesmo nessa temporada vimos como o Golden State Warriors estava tendo dificuldades de se encontrar após perder Kevin Durant e Klay Thompson, mesmo antes das lesões de Steph Curry e D’Angelo Russell. O dano vai além da perda técnica e do desafio tático de se reinventar, passa também pelo lado psicológico do desânimo de andar para trás e ter que se contentar com menos. Só lutar por uma vaga nos Playoffs e mostrar “o poder do conjunto” não foi o bastante para esses caras. Para o Toronto Raptors, porém, mostrar que há vida sem Kawhi Leonard parece fundamental.

Nem todas as escolhas de Draft do Toronto Raptors vingaram, com nosso Bruno Caboclo sendo um exemplo famoso disso, e houve momentos de crise, tensão e diversas ameaças de destruir tudo e começar do zero. Mas desde 2013, sob o comando de Masai Ujiri, o Raptors é um time coerente, estável, com flexibilidade para mudar se preciso (a renovação de Lowry aponta para essa mesma direção) e uma capacidade rara na NBA de transformar qualquer um em uma peça melhor do que qualquer um previa antes. Isso aqui, aliás, também lembra Moneyball: muitos torcem o nariz para a obra porque ela foi um ponto de partida para a idolatria dos números no esporte, mas na verdade o que a história mostra são vários jogadores desacreditados, alguns já cogitando aposentadoria, que voltaram a ser relevantes porque novas estatísticas mostravam que eles, de alguma forma, poderiam ajudar. Superação individual de pessoas através do esporte, tem coisa menos fria e calculista que isso? E será que Pascal Siakam ou Chris Boucher teriam o impacto que tem hoje se não fosse uma franquia como o Raptors os ajudando a crescer? O sucesso do time está até nos nomes que eventualmente deixarem o time.

A coroação dessa trajetória parecia ser a temporada passada com o resgate da carreira de Kawhi Leonard, mas é ainda mais legal que ela se estenda por mais tempo com Pascal Siakam, já um dos melhores jogadores da NBA e com ainda 25 anos de idade. Ele tem tudo para se tornar o rosto do novo Toronto Raptors, alguém criado lá dentro e que já apareceu em um momento em que o time é visto com respeito ao redor da liga, não mais como um coitadinho entre gigantes. Vai ser difícil defender o título nesta temporada, mas não sucumbir na ressaca da conquista e da saída de Kawhi já faz do time uma das grandes histórias do ano.

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

Como funcionam as assinaturas do Bola Presa?

Como são os planos?

São dois tipos de planos MENSAIS para você assinar o Bola Presa:

R$ 14

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

R$ 20

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Como funciona o pagamento?

As assinaturas são feitas no Sparkle, da Hotmart, e todo o conteúdo fica disponível imediatamente lá mesmo na plataforma.