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Foram 23 anos como técnico do Jazz. É quase o dobro da idade do Justin Bieber, é mais do que a idade da maioria dos nossos leitores, é mais do que a idade da maioria dos novatos que entram atualmente na NBA. Quando começou a treinar o Jazz, a Emma Watson sequer tinha nascido, e convenhamos que um mundo sem a Emma Watson não faz nenhum sentido. Faz tanto tempo que o Jerry Sloan estava no comando do Jazz que chegamos a pensar que era uma monarquia, que o cargo só seria abandonado quando ele morresse e seria assumido pelo seu filho, herdeiro do trono. Por isso tem gente dizendo que é a morte de uma era, o fim dos tempos, o apocalipse. Por ser o técnico que passou mais tempo em uma equipe em toda a história dos esportes americanos, imaginar Jerry Sloan fora do Jazz é sinal de horror para muita gente. Mas foram 23 anos, gente. Uma hora, tudo na vida dá no saco.
Jerry Sloan foi um gênio, daqueles que a gente usa para provar que prêmios e títulos são bobagem. Nunca foi campeão da NBA e nunca ganhou um prêmio de técnico do ano (se tivesse ganhado teria sido vítima da maldição e demitido no ano seguinte), mas sua carreira como técnico é fantástica. Comandou o Jazz em duas finais de NBA contra o Jordan, em 97 e 98, e só perdeu porque usar o Jordan é apelação. Treinou um dos melhores times de todos os tempos, com Malone e Stockton. É o terceiro técnico com mais vitórias na história da NBA. E o mais impressionante é a consistência: foram 13 temporadas com mais de 50 vitórias, e apenas 3 temporadas em que seu time não ganhou pelo menos metade dos jogos. Com tudo isso, foi parar no Hall da Fama mesmo estando ainda em atividade. Nenhum título, nenhum prêmio, mas ele sempre esteve lá treinando times incríveis e vencedores mesmo quando o elenco não ajudava, as contusões se acumulavam e os donos da equipe mandavam bons jogadores ou escolhas de draft embora para economizar dinheiro. Lembro de um Jazz horrível, sem nenhum jogador decente, que tinha o porcaria do Raul Lopez na armação e mesmo assim ganhou 42 jogos com atuações incríveis do armador. Lembro do Raja Bell ser longamente improvisado de armador e mesmo assim o time funcionar direitinho. Na época eu dizia que um macaco de circo seria um armador genial no esquema do Jerry Sloan, desde que ele conseguisse aturar o técnico.
Porque o Sloan é um gênio velhinho e todos nós sabemos que os gênios e os velhos são muito chatos. O Sloan obriga os jogadores a colocar a camiseta por dentro do calção, proíbe o uso de faixas na cabeça nos jogos e de celulares nas viagens da equipe. Quem entra em quadra pelo Sloan é quem se esforça mais, quem treina mais e quem obedece mais. Muitos jogadores talentosos como Andrei Kirilenko já mofaram no banco de reservas enquanto Matt Harpring, sem nenhum talento, dava cabeçadas em outros jogadores. Talento sempre foi secundário perto do esforço, o Jerry Sloan vem de uma infãncia difícil e valoriza dedicação e força de vontade acima de tudo. Por isso seus times são tão chatos de enfrentar, lutam até o final e mantêm o plano de jogo. No começo dessa temporada, o Jazz cansou de vencer jogos no final depois de perder por mais de 20 pontos. Coloquem o elenco do Cavs nas mãos do Jerry Sloan e eles não perderão 26 partidas seguidas porque antes disso acontecer terão matado a facadas os adversários. Tudo isso, claro, apoiado por um estilo de jogo rígido e eficiente, baseado em bandejas, pick-and-rolls e pouquíssimos arremessos de três, com pouca frirula e nenhum arremesso forçado. Quem sai do plano vai pro banco.
Com esse tipo de rigidez, é bem óbvio que o Jerry Sloan arrumou encrenca com muitos jogadores ao longo de seus 23 anos de Utah Jazz. As histórias podem não estar aí, podem não ter ido parar na Contigo!, mas os confrontos aconteceram. Teve muito jogador descontente no banco, muita bronca por cagada feita em quadra, muito jogador querendo fazer o que bem entendesse e tomando surra de chibata. Por isso, os boatos de que o Sloan resolveu abandonar o Jazz por causa das brigas com o Deron Williams me soam completamete absurdos.
Na partida contra o Bulls, na quarta-feira, Deron Williams desobedeceu o técnico em quadra e os dois bateram boca no vestiário, com gente dizendo que tiveram que segurar os dois pra não sair porrada (já pensou um soco das mãos gigantescas do Jerry Sloan?). O Deron disse que discutiram mas que não foi nada de mais, que os dois já tinham brigado mais feio antes e que outros jogadores também já tinham confrontado o técnico com mais violência antes. Ou seja, mais uma discussão na lista de bilhares de um técnico severo. Normal, quando um técnico quer estabelecer uma filosofia desse tipo em uma equipe, proibindo até coisas idiotas como faixa na cabeça, está pronto para enfrentar resistência, confronto e insatisfação. Sloan já lidou com isso por 23 anos, não há razão para imaginar que a discussão com Deron Williams tenha sido tão pior assim. Pelo jeito, ele só está de saco cheio. Sem Boozer, o Jazz tem dificuldades em estabelecer um jogo de meia distância e o pick-and-roll. Está brigando pelas últimas vagas do Oeste, perdendo jogos que deveria ganhar, cheio de altos e baixos nos últimos anos. E o Deron Williams é competitivo, se acha fodão, e quer ter mais liberdade nas mãos. O Sloan juntou tudo isso num pacote, viu que estava passando Big Brother na tevê, e resolveu tirar férias. É justo.
Realmente, Deron Williams é um armador bom o bastante para fazer mais em quadra do que faz atualmente pelo Jazz. Nas partidas em que o Jazz virou o jogo no segundo tempo durante essa temporada, todas foram mérito de um surto criativo do Deron, de ele colocar a bola debaixo do braço e resolver sozinho – ou seja, foram vitórias da desobediência. Jerry Sloan é um dos melhores técnicos que já existiram, é um gênio e está no Hall da Fama antes mesmo de se aposentar. Mas não é por isso que seu estilo não pode ser questionado, que cada situação não deve ser analisada individualmente. Sloan é o técnico ideal para comandar esse Jazz atual, para ensinar Deron Williams, trazer estabilidade a esse time? Talvez não – e isso não é nenhuma heresia. Ficar no time por 23 anos tornou proibido discutir se seria melhor o Sloan tomar outros rumos, e todos os times deveriam discutir continuamente se mudanças são ou não necessárias. Sem o Boozer em quadra e com o jogo de meia distância de Millsap e Al Jefferson tão abaixo do que se esperava, talvez fosse hora de mudar os planos de jogo e deixar Deron arremessar mais, jogar de costas para a cesta, usar o corpo contra os armadores adversários que são sempre menores do que ele. Talvez o time funcione melhor com mais liberdade, usando a criatividade do Deron, talvez o time precise da mudança de ares, de celular nos ônibus, da chance de provar que podem vencer mesmo sem o técnico Hall da Fama. Ou talvez o time simplesmente piore e desande de vez sem a tutela do melhor técnico de sua história. De todo modo, o importante é que agora o Jazz pode debater isso abertamente, pode escolher se mantém o mesmo rumo ou se toma caminhos diferentes. Com Sloan, nada era questionado. Agora, o Jazz pode pensar, matutar e tomar decisões. Por melhor que fosse Jerry Sloan, acho essa rigidez um preço alto demais a se pagar, e o time já estava há tempos demais nesse limbo eterno de se classificar para os playoffs com certa facilidade mas não ter nenhuma chance de título. Agora o time vai ser mais maleável e, quem sabe, simplesmente feder. Isso por si só já seria o bastante para injetar talento novo na equipe e romper o atual ciclo.
Os leitores do Jazz, que adoram tacar cocô na minha cabeça e sabem onde eu moro, vão dizer que eu sou herege. Na verdade sou um grande fã do Jerry Sloan e daquilo que ele faz com seus armadores – o Stockton é, para mim, um dos melhores de todos os tempos e um dos meus três jogadores favoritos deste universo. Ainda assim, Sloan vem de outros tempos. Enfrenta uma nova geração de treinadores nerds e carregados de estatísticas que não perdem tempo proibindo faixinha ou dando eletrochoque nos armadores que não seguirem tudo à risca. São treinadores novos que podem perder seus postos a qualquer momento, gerando mudanças, contrastes, evoluções. Sem isso, os times ficariam estagnados. Jerry Sloan deixa saudade, fico feliz que ele já esteja no Hall da Fama, que ele seja reconhecido mesmo sem ter nenhum anel. Mas era hora de ir embora e deixar o Jazz respirar um pouco, se virar sem ele. Tenho a mesma opinião com o Los Angeles Lakers: por melhor que seja Phil Jackson, já atingimos um momento em que o Lakers precisa urgentemente respirar novos ares para que exista contraste, mudança e evolução. Os finais são tristes mas necessários. O Jazz vai se sair bem, mesmo sem as mãos gigantescas do Jerry Sloan dando tabefes na bunda de todo mundo.