O texto abaixo foi o primeiro que usamos em uma nova seção do Bola Presa, o Audiopost. Nela vamos ler alguns de nossos textos e disponibilizá-los no nosso feed do Spotify ou qualquer outro tocador de podcasts. Conforme consultamos com nossos leitores/ouvintes, é uma alternativa para os multitarefas que não tem muito tempo para parar e ler um texto. Além do texto lido em voz alta, no final discutimos o tema, a inspiração do post, o processo de escrevê-lo e até o que ficou de fora.
Introdução do Audiopost – 0:15
Um fim para Vince Carter – 0:58
Debate sobre o texto – 15:40
Em 1999, o armador Steve Francis foi o segundo a ter seu nome chamado no draft após ser escolhido pelo então Vancouver Grizzlies. O jogador, entretanto, recusou-se a jogar pela equipe, forçando uma troca antes mesmo de comparecer ao ginásio do time pela primeira vez. Na época, jogar no Canadá era quase um castigo: Vancouver Grizzlies e Toronto Raptors tinham apenas 5 anos de existência, um time medonho dadas as difíceis regras de expansão da liga, uma torcida pouco interessada e frustrada pelos resultados negativos, e pouca cobertura da imprensa dos Estados Unidos. A impressão geral era que os times do Canadá eram o lugar que você iria jogar caso fosse foragido da justiça e quisesse desaparecer, não ser nunca mais mencionado e ser excluído dos jogos de transmissão nacional e internacional. Steve Francis queria ser famoso e jogar numa franquia de sucesso, então simplesmente se negou a ir para outro país em que todo mundo estaria assistindo hóquei. Dois anos depois Steve Francis se tornaria uma estrela, só que em Houston, enquanto o Grizzlies se veria obrigado a abandonar Vancouver e migrar rumo aos Estados Unidos, mais precisamente para Memphis. Se o Toronto Raptors não sofreu o mesmo destino – e se eventualmente foi campeão da NBA, né – foi apenas porque um ano antes de Steve Francis chegar à liga, em 1998, Vince Carter foi a quinta escolha do draft e aceitou, numa troca relâmpago, ir jogar pela equipe canadense.
Assistir à NBA com afinco em 1999 e 2000 não era tarefa fácil, especialmente no Brasil – a gente era meio que obrigado a se alimentar de migalhas. Pouquíssimos jogos eram transmitidos e apenas nas televisões por assinatura, a internet ainda era precária demais para que fosse possível assistir às partidas e não havia nada parecido com o YouTube para nos oferecer algum acesso à liga. Nosso contato com a NBA consistia de basicamente duas frentes: vídeos curtos, bem curtos, que precisavam ser baixados no computador vindos dos lugares mais bizarros, e o programa semanal “NBA Action”, que passava na televisão paga. Os vídeos curtos eram sempre de jogadas de efeito, um drible desconcertante, uma enterrada, um arremesso de último segundo, e em geral não duravam sequer tempo suficiente para mostrar a construção da jogada ou mostrá-la por mais de um ângulo. Já o “NBA Action” era mais completo, contava com entrevistas com os jogadores e técnicos, seguia a semana de alguns dos melhores times do momento, mostrava resumos de jogos importantes e terminava com o famoso “Top 10”, com as 10 melhores jogadas da NBA naquela semana. No meu caso, eu não tinha televisão à cabo e portanto não conseguia assistir ao “NBA Action”, mas o Denis gravava pra mim praticamente toda semana em velhíssimas fitas VHS, que guardávamos com carinho e assistíamos muitas e muitas vezes. Nosso acesso ao basquete era picado, entrecortado, e composto de coletâneas de melhores momentos. E é aqui que entra Vince Carter: era impossível falar de “melhores momentos” sem que suas enterradas estivessem presentes.
Assim que chegou ao Toronto Raptors, na temporada encurtada pelo impasse de negociações entre jogadores e donos dos times, Carter já era um excelente jogador. Ganhou o prêmio de calouro do ano sem muita disputa. Na temporada seguinte, já tinha quase 26 pontos por jogo de média e levou o Raptors aos Playoffs pela primeira vez em sua história, sedimentando para sempre o time à cidade. Uma temporada depois, já levava o Raptors às semi-finais da Conferência Leste, dando ao time sua primeira série vitoriosa na pós-temporada. Mas a gente, por aqui, não fazia muita ideia de quão bom Carter era, de como ele contribuía exatamente para o time, de quão completo era seu arsenal ofensivo. A gente respirava apenas os melhores momentos e sabia que Vince Carter era uma máquina de dar enterradas fabulosas, sabia que ele ia sempre ocupar duas ou três posições em qualquer “Top 10” de qualquer semana. E era isso que a gente podia – e queria – ver.
Mesmo nos Estados Unidos, em que o acesso à NBA era obviamente muito mais fácil, a situação era semelhante: um público que nunca pararia para acompanhar o Raptors, ou que revirava os olhos para a ideia de um time ruim do Canadá, subitamente não conseguia tirar os olhos de Vince Carter por conta de suas enterradas de efeito e da frequência dessas jogadas nos jornais esportivos. Quando ele competiu no Campeonato de Enterradas em 2000, mesmo quem desdenhava do Raptors já sabia que seria um evento épico dado o histórico de Carter e o boato de que veríamos quatro enterradas verdadeiramente inéditas. E Carter, claro, não decepcionou:
Não demorou muito para que toda cobertura esportiva precisasse falar de Vince Carter, que as crianças – canadenses ou não – quisessem ser Vince Carter, e que seu tênis se tornasse um dos artigos mais cobiçados entre os fãs da NBA. E o curioso é que isso está apenas indiretamente relacionado com quão bom ele era de fato em quadra.
Foram os melhores momentos que tornaram Carter um ídolo global e mostraram que era possível alcançar grandes mercados e ser um sucesso de vendas mesmo estando no Canadá. Foram as enterradas que o tornaram um fenômeno cultural, um rosto reconhecível capaz de estampar cartazes de marcas famosas, e que criou uma identidade para o Toronto Raptors, “o time do Carter”, e até para a indústria de entretenimento canadense, que passou a gerar novos nomes a partir de então, no esporte e fora dele. Seu sucesso não rendeu grandes conquistas para o Raptors, mas deu ao time uma base sólida para sentir que fazia parte da NBA e ter a possibilidade de pensar a longo prazo – o bastante para, eventualmente, construir um time que pudesse ser campeão, como aconteceu na temporada passada. E se Kawhi Leonard aceitou jogar no Raptors, ainda que apenas por uma temporada, foi somente porque Vince Carter pavimentou esse caminho quase duas décadas antes ao provar que era viável ser uma estrela memorável e jogar no Canadá.
Se por um lado esse tipo de impacto só foi possível, no meio de uma época em que havia escassez de informação e dificuldade de acesso à NBA, graças às enterradas memoráveis de Carter, por outro lado ele não teria sequer minutos suficientes em quadra para executar essas enterradas se não fosse um jogador mais completo e talentoso capaz de liderar um time. No auge de Carter nas listas de melhores jogadas, não faltavam outros atletas, menores ou até amadores, tentando conquistar espaço na internet com seus próprios vídeos em que executavam enterradas nunca antes vistas. No começo dos anos 2000 a trupe “And1” viajava os Estados Unidos – e o mundo – com atletas amadores dando dribles desconcertantes e, mais importante, dando enterradas inacreditáveis. No entanto, nenhum deles era bom o suficiente para cavar espaço numa quadra da NBA, e portanto era incapaz de ter a credibilidade, a notoriedade e a admiração que Carter conseguia angariar. Carter não era apenas uma máquina de dar enterradas, ele também tinha um talento geral que lhe permitia dar essas enterradas no mais visto e desejado palco de basquete do mundo. Quão bom Carter era de verdade? O bastante para que a gente pudesse ver os melhores momentos – e eles transformaram uma geração num período muito curto de tempo.
Logo após seu primeiro contrato multimilionário em 2001, Carter começou a sofrer uma longa leva de lesões nos joelhos que foram minando seus minutos e sua carreira. Sem ele em quadra o Raptors acabou entrando em reconstrução, Carter pediu para ser trocado em 2004 e foi jogar no New Jersey Nets, onde foi parte importante de um bom time comandado por Jason Kidd que visitava os Playoffs todas as temporadas. Seu jogo, no entanto, já não era mais exatamente o mesmo, dada a perda de explosão dos seus joelhos sofridos. Em 2009, com 10 anos de NBA e evidentes limitações físicas, Carter já não parecia mais ter muito espaço como titular de um time relevante na NBA, e como a maior parte das estrelas que alcançam esse momento de suas carreiras, parecia fadado a abandonar a liga em breve e se aposentar. Teria sido mais um atleta a causar um imenso impacto cultural, angariar legiões de fãs, e então se afastar do esporte quando seu corpo começasse a falhar. Carter não seria nem a primeira nem a última estrela a abandonar o esporte porque seus joelhos não resistiram aos rigores das jogadas de efeito.
Mas não, não foi o que aconteceu. Aquele momento em que sua carreira poderia ter acabado não representava ainda sequer a METADE de sua carreira como jogador. Desde então, Carter jogou mais 11 temporadas por outros 6 times diferentes. Enquanto outras estrelas brilharam e se apagaram porque não havia mais espaço para que liderassem na NBA, Carter foi assumindo outros papeis, cumprindo outras funções, e construiu na unha um espaço cativo. De jogador que parecia destinado a parar cedo com lesões sérias logo na sua quarta temporada, Vince Carter se transformou num jogador que parecia poder jogar para sempre.
Foi ainda no Nets, em 2008, que Carter percebeu que a NBA precisava que ele desempenhasse um papel diferente do que estava acostumado. Naquela temporada Jason Kidd foi trocado para que o Nets pudesse dar início a um processo de reconstrução e coube ao Carter ser o líder veterano do time. O jogador colocou o armador recém-chegado Devin Harris sob sua tutela e ajudou Harris a ter a melhor temporada de toda sua carreira – ele não foi tão bem nem antes, nem depois. No ano seguinte, o Orlando Magic de Dwight Howard fez questão de trocar por Carter em busca de uma liderança de vestiário que tornasse o time mais competitivo. O Magic não conseguiu o título que pretendia, Carter foi trocado e parecia sem lugar algum na NBA, mas conseguiu um contrato com o Dallas Mavericks em que topou tranquilamente ser o sexto homem do time, abandonar suas enterradas em nome de um arremesso consistente de três pontos, e se tornar uma forte presença nos vestiários da equipe. O sucesso com o Mavs mostrou para toda a NBA que tipo de jogador Carter havia aceitado se tornar: o veterano que você traz para seu time para dar algum tipo de mentoria, consistência e credibilidade, além de umas bolas de três pontos em seus minutos limitados. O Memphis Grizzlies queria garantir unidade nos vestiários e uma presença veterana para melhorar os resultados do time nos Playoffs? Carter era a pessoa certa. O Sacramento Kings tentou convencer o mundo de que queria um time mais sério, comprometido, que não iria mais aceitar perder? Contratou Carter, coitado, que caiu nessa mentira deslavada. O Atlanta Hawks começou a se preocupar que a “cultura” ao redor de Trae Young não era muito boa e que o jovem armador precisava de exemplos de profissionalismo? Chama o Vince Carter, mesmo que ele tenha 43 anos de idade – e contando.
Vince Carter resolveu que pararia ao fim dessa temporada não porque deixou de existir espaço para ele, ou porque sua idade é uma preocupação na NBA, mas porque ele simplesmente sente que chegou a hora de deixar as quadras. Seus momentos finais no basquete não incluíram uma enterrada espetacular, um tour de despedida, um título da NBA; em vez disso, seus momentos finais foram jogando por um dos piores times da NBA, o Hawks, e convertendo uma bola de três pontos numa temporada subitamente interrompida por uma epidemia global. Mas frente ao medo de que fossem de fato seus últimos segundos numa quadra da NBA, caso a temporada não fosse retomada (como de fato não foi e nem será, ao menos no caso do Hawks), Carter foi ovacionado por torcedores e por companheiros. Sua segunda metade da carreira pode ser mais obscura e menos digna de atenção das coletâneas de melhores jogadas, mas não é menos digna de carinho e admiração por parte dos elencos que ele ajuda a guiar e ensinar. Nada mais emblemático do que seu lance final ser um abraço emocionado em Trae Young:
With the NBA season suspended until further notice, Vince Carter checks in and drills a three in the final seconds. pic.twitter.com/XLW1t7uIjW
— SportsCenter (@SportsCenter) March 12, 2020
Toda a história de Vince Carter tem uma estranha sensação de “interrupção”, como se o sucesso que poderia ter acontecido tivesse sido sempre interrompido: as lesões no joelho nas suas temporadas iniciais, o Toronto Raptors que parecia ter chances de título mas seu companheiro de time (e primo) Tracy McGrady quis sair, o impacto cultural no Canadá que se transformou em chuvas de vaias depois do pedido para ser trocado, o New Jersey Nets que após a chegada de Carter nunca mais voltou às Finais da NBA, o corpo que não conseguia mais dar enterradas, e até a sua temporada final que foi interrompida após a divulgação de que Rudy Gobert estava contaminado com covid-19. Mas nada disso impediu Vince Carter de impactar a NBA positivamente e de ser um modelo: mostrou que enterrar não significava que você não sabia jogar basquete, que era possível ser uma estrela no Raptors e no Canadá quando ninguém achava isso possível, que dava pra continuar relevante numa quadra mesmo quando o físico não dá mais conta, que nunca é tarde pra transformar seu estilo de jogo e adequar-se aos novos tempos, e que aceitar mudanças, interrupções e frustrações nos permite encontrar novos rumos, novos lugares, novos papeis, novas maneiras de continuar participando e influenciando aquilo que a gente ama. Quando as lesões cobraram um preço muito alto, parecia o final de Vince Carter, mas era apenas o final de um MOMENTO, de um dos seus caminhos, de um dos seus personagens; acabou se tornando uma oportunidade para ele começar um outro momento, deixar outro tipo de marca na NBA e sair aplaudido das quadras de qualquer maneira – talvez não no time dos sonhos, talvez não na melhor das situações de despedida, mas fazendo o melhor possível na situação que se apresentou para ele. Enquanto Allen Iverson e Carmelo Anthony ficaram fora da NBA cedo demais porque foram incapazes de lidar com os novos tempos e as adversidades que lhes foram impostas, Carter pegou essas adversidades – essas coisas inevitáveis, incontroláveis, como lesões ou a mudança dos tempos, dos estilos de jogo, das expectativas do esporte – e se adaptou a elas nos seus próprios termos. Carter decidiu que tipo de jogador queria ser dentro das limitações que lhe aconteceram, e esse jogador é tão digno de aplausos quanto o jogador que enterrava em cima dos adversários.
Na temporada interrompida, Vince Carter se aposentou de repente, no susto, de uma hora pra outra, com a bola de três pontos que ele teve que aprimorar para poder ser útil em quadra, abraçando a jovem estrela que ele resolveu que aconselharia rumo ao sucesso, e com gratidão e um sorriso no rosto de quem sabe se adaptar ao inesperado. Talvez não fosse o final perfeito, mas foi um fim. Aquele que Carter conseguiu construir.
Minha versão adolescente era completamente enlouquecida por Carter. Ele era a maior parte do conteúdo que me chegava na NBA naqueles tempos medonhos em que a internet atravessava os fios vindo de carroça. Mas minha versão adulta, que vive de NBA, que aprendeu a analisar a tática do esporte e se emociona menos com enterradas do que com ajustes técnicos, é agora igualmente enlouquecida por Vince Carter – só que um outro Vince Carter, esse que não enterra, mas que se aposenta agora sem pompa nem celebração. Porque quando a gente é adulto, passa a entender que existe mais chances de quebrar uma perna do que de ganhar na loteria; de terminar um relacionamento do que de achar o amor da sua vida; de falhar nos seus sonhos de infância ao invés de pilotar foguetes e concretizá-los todos. Mas o que Carter nos lembra nesses cenários de frustração é que está tudo bem: o que importa é quão bem a gente caminha pela adversidade, como a gente se reinventa no processo, como encontra maneiras de nos adaptarmos nos nossos próprios termos, e como inventamos maneiras de continuar sendo nós mesmos ainda que todo o resto diga que não podemos ser quem somos. Carter deu um jeito. Eu sei que nunca vou enterrar por cima de ninguém, e que existirão momentos de dor e dificuldade, mas isso não importa: talvez eu possa dar um jeito também.