>
O atual dono do Hornets, George Shinn, tem uma daquelas lindas histórias que nos fazem acreditar no “Sonho Americano”. Ele era o pior aluno da sala, trabalhou em fabriquinhas de pano, lavou carros, foi servente de escola, aí conseguiu ser formar numa faculdade Unigrunge da vida, juntou dinheiro, comprou a faculdade, criou um conglomerado monstruoso de escolas e cursos universitários, vendeu tudo, comprou o Hornets, e aí foi acusado de estupro. Ou seja, tudo aquilo que a gente espera que o capitalismo nos proporcione: a chance de crescer na vida e de ir parar num julgamento em rede nacional.
George Shinn disse que iria apresentar uma mulher que conheceu ao seu advogado, para lidar com questões de custódia, mas a mulher diz que Shinn levou ela para outro lugar e tentou dar uns amassos. Foi acusado de sequestro e estupro num julgamento realmente transmitido ao vivo pela televisão. O júri declarou o milionário inocente, mas sua imagem ficou tão manchada (ele teve que admitir durante o julgamento que havia traído sua esposa diversas vezes) que ele resolveu dar o fora do lugar em que morava – e assim como uma criança leva sua bola quando vai embora, o milionário levou o Hornets com ele no bolso. Foi assim que o Hornets saiu de Charlotte e foi parar em New Orleans, já que seu amigo Gary Chouest, dono de uma parte das ações do time, era do estado de Louisiana.
Mas os negócios em New Orleans nunca deram muito certo para o Hornets. A cidade é grande e gosta de basquete, mas a economia é debilitada e a população local tem dificuldades em lotar o ginásio (até porque prefere gastar o dinheiro com futebol americano). Depois do furacão Katrina, as coisas ficaram ainda piores. Estima-se que 44% da população de New Orleans tenha ido embora após o incidente, ou seja, é como uma cidade ter metade das pessoas de um dia para o outro (nível “invasão-zumbi” de catástrofe!). Enquanto a cidade tentava se reconstruir, o Hornets passou a jogar em Oklahoma City, onde os ginásios sempre lotavam. A excelente recepção por lá fez com que os compradores do Sonics tivessem mais vontade ainda de levar a equipe para Oklahoma City, rebatizando-a de Thunder. Já o Hornets teve que voltar para New Orleans assim que a crise melhorou, mas o ginásio está mais vazio do que nunca.
Depois que o George Shinn descobriu que estava com câncer e passou por um processo de recuperação, resolveu ouvir o CD do Padre Marcelo Rossi, ergueu as mãos pra dar glória a Deus, e resolveu que não quer mais se focar nessa besteira de basquete. Gary Chouest iria comprar suas ações do time e virar dono da brincadeira toda, mas o processo de compra levou meses e meses, e agora Chouest diz que a crise econômica complicou sua conta bancária e que ele talvez tenha que se dedicar integralmente a outras atividades. Ou seja, o troço todo miou. “Vendam para outro mané”, você pensa, “deve ter um bilhão de milionários querendo comprar uma equipe de NBA para dar de presente para o filhinho mais novo”. O problema é que os compradores vão obviamente querer tirar a equipe de New Orleans, o que seria péssimo para a cidade e continuaria a tornar a NBA uma bagunça, com equipes mudando de cidade a torto e a direito – e a NBA não quer ficar parecida com nosso NBB, não é mesmo? Normalmente, arrancar uma equipe de sua cidade não é a coisa mais fácil do mundo, envolve uma boa dose de burocracia e de migué, mas no caso do Hornets basta ler as letras miúdas na parte inferior do contrato: se durante 13 partidas, entre 1o de dezembro e 17 de janeiro, o Hornets não tiver mais de 14.213 torcedores no ginásio, o time tem o direito de deixar a cidade. Como até agora o máximo de torcedores que o time recebeu na temporada foram 14.020 (e isso porque o time está indo bem!), vai ser bem fácil para o próximo comprador arrancar a equipe de lá.
Foi então que o David Stern resolveu intervir. Se a NBA, como entidade, tem uma grana preta sobrando, que tal comprar o Hornets das mãos do George Shinn, e aí vender num futuro próximo apenas para alguém disposto a manter o time em New Orleans? Na prática, não deve mudar nada: o time continua com os mesmos jogadores, mesmo técnico, mesmo General Manager, mas a franquia passa a pertencer – temporariamente – à NBA. Não tem essa de “a NBA vai favorecer a equipe” ou “vão rolar umas trocas absurdas”, só muda quem é dono das ações, não há influência direta. Quer dizer, mais ou menos.
Os donos influenciam suas equipes de uma única maneira: assinando cheques. Quando o Mark Cuban assina um cheque e diz que está disposto a pagar todas as multas do planeta para que o Mavs tenha o melhor elenco possível, ele está agindo diretamente sobre seu elenco. Times em economias piores, com donos que não podem torrar dinheiro desse jeito, são obrigados a não assinar novos jogadores, se livrar de pirralhos para não pagar seus salários e não se comprometer com contratos muito longos – tipo o Jazz, que volta e meia se livra de alguém só pra economizar uns trocados.
Bem, o Hornets está numa situação bastante complicada: o time começou muito bem a temporada e Chris Paul é um dos melhores armadores do planeta, mas seu contrato acabará ao fim da próxima temporada e ele certamente pedirá antes para sair em busca de um time que lhe ofereça mais condições de ganhar um título. Cabe ao Hornets, então, duas escolhas: trocar o Chris Paul e começar tudo de novo, perdendo ainda mais fãs no ginásio e jogando fora as chances de lucrar nos playoffs; ou então manter o Chris Paul nessa temporada e investir pesado no time para que ele tenha chances nesses playoffs a ponto de convencer o armador a ficar na temporada que vem.
Muita gente elogiou a troca de Peja Stojakovic (que foi para o Raptors em troca de Jarret Jack e mais uns carinhas aí) do ponto de vista econômico, já que o Hornets se livrou do contrato monstruoso de 15 milhões do Peja, mas é justamente o contrário. O Hornets pagará alguns milhões a menos nessa temporada graças à troca, mas pagará mais de 5 milhões a mais pelo contrato do Jack na temporada que vem – temporada em que precisariam do dinheiro para contratar estrelas, enquanto o gasto nessa temporada não faria mais diferença. Foi um investimento para convencer Chris Paul a ficar, não para economizar verdinhas. E, para que o armador realmente continue no Hornets, outros investimentos desse tipo precisam acontecer.
O Hornets é, outra vez, um time ruim que joga muito bem – e isso é perigoso. Dá pra ganhar muitos jogos apenas com o entrosamento, a defesa, a movimentação, não desperdiçando a bola, mas muitos jogos serão perdidos simplesmente porque a equipe não tem talento o bastante. O Hornets, que há pouco tempo atrás era líder da NBA, já caiu para a sexta posição do Oeste. Provavelmente irão para os playoffs, podem causar estrago por lá, e o técnico Monty Williams se dá cada vez melhor com Chris Paul, os dois já são grandes amigos. Mas é impossível que o Chris Paul não perceba que ele está tirando água de pedra. Sempre fico imaginando o Chris Paul entrando no vestiário e vendo o DJ Mbenga tomando uma enterrada na cabeça de um anão, o Aaron Gray não alcançando algo em cima do armário porque não consegue pular, o Pops Mensah-Bonsu não conseguindo amarrar o próprio cadarço e o Belinelli e o Willie Green arremessando as próprias mães numa cesta de lixo. É um vestiário de chorar.
Para salvar a franquia de uma reconstrução total e de ter ainda mais prejuízos, é preciso que o dono da equipe resolva assinar cheques desesperadamente – e a NBA, que agora comprou o time, não fará isso. Manterá as finanças como estão, apenas esperando vender o time sem que ele se desvalorize muito, e para isso não podem sair acumulando dívidas. Supostamente não deveria fazer nenhuma diferença quem é o dono do Hornets, mas nesse momento em especial, em que o futuro do Chris Paul depende única e exclusivamente de resultados imediatos, é preciso um dono disposto a investir – sob risco de perder tudo. A cidade de New Orleans sai ganhando e mantém sua equipe, claro, mas o Hornets e seu elenco saem perdendo. Apenas um milagre – com o Chris Paul tirando muita água de pedra – lhe deixará convencido de que é possível ganhar um título com esse elenco atual, e a NBA não deve melhorar o elenco do modo necessário.
Aproveito a oportunidade, no entanto, para vislumbrar a possibilidade de que um dia os donos não pudessem mais intervir na NBA. Esse lance de poder arcar com multas de acordo com o naipe do dono e a economia local tornam a liga mais desequilibrada do que deveria ser. Foi então que eu lembrei de um artigo simplesmente espetacular do Elrod Enchilada, do site RealGM.com, em que ele propõe um novo sistema financeiro para a NBA – um sistema meio socialista.
Funciona mais ou menos assim: soma-se o teto salarial de todos os times da NBA, cerca de 2 bilhões de dólares que deveriam ser gastos com todos os jogadores da liga, e colocamos toda essa grana num pote. Ao invés de distribuir esse dinheiro igualmente a todos os jogadores (que ganhariam cerca de 4.5 milhões cada), cria-se um sistema de méritos para que nenhuma estrela choramingue por perder seu salário monstruoso. O sistema é o seguinte:
– 3.5% da grana total, antes de ir pro pote, vai para um banco para “jogadores contundidos”, que permite que esses jogadores possam ganhar o mesmo salário que ganharam no ano anterior caso percam mais de 50 jogos, ou uma porcentagem disso de bônus caso percam menos jogos
– 70% da grana do pote vai para os jogadores de acordo com a performance, ou seja, de acordo com os minutos jogados. Os 90 jogadores que estiverem em quadra por mais minutos receberiam 6.5 milhões, os 90 jogadores seguintes 5 milhões, até que os jogadores que menos jogassem recebessem 1 milhão (o mínimo atual).
– 20% do pote de grana iria para jogadores “votados”. Os 25 primeiros colocados na votação para MVP receberiam incentivos que vão de 5 milhões (para os 5 primeiros) até 3 milhões (os 5 últimos). Além disso, seriam eleitos por votação times All-NBA (com os melhores jogadores de cada posição, como acontece hoje em dia), mas seriam 10 times com os melhores do Oeste e 10 com os melhores do Leste, de modo que os que estiverem no primeiro time recebam 4.8 milhões e os que estiverem no décimo time recebam 1.2 milhões. São 100 jogadores premiados desse modo, ou seja, dois terços de todos os jogadores titulares da NBA.
– 10% do pote de grana vai para todos os jogadores dos 16 melhores times, em ordem de classificação para os playoffs.
Com isso, os jogadores fodões (que jogam bastante, são eleitos entre os melhores e estão em times vencedores) ganhariam entre 16 e 18 milhões, um All-Star que não está num time de elite ganharia de 13 a 15 milhões, outros titulares comuns ganhariam entre 8 e 10 milhões, e os reservas que mais jogam ganhariam entre 5 e 7 milhões. Ou seja, são salários compatíveis com aqueles que existem hoje em dia, mas a NBA mudaria drasticamente. Um jogador que de um dia para o outro começa a jogar muito bem seria imediatamente recompensando, ao invés de passar anos num contrato vagabundo até poder assinar um novo. Jogadores não poderiam parar de treinar depois de assinar contratos grandes (como aconteceu com Jerome James, Eddy Curry…). Não teríamos jogadores se esforçando apenas em “anos de contrato” (é como se todo ano fosse ano de contrato!). Jogadores que ficam muito tempo na quadra porque são bons defensores, por exemplo, ganhariam tão bem quanto os melhores pontuadores, que em geral tendem a receber mais. Todo jogador vai se esforçar para estar em quadra e ajudar o time, e terá benefícios por ajudar seu time a vencer e subir na tabela. E as finanças dos times ficariam sempre iguais, sem intervenção dos donos, e sem que contratos “burros” destruam toda a economia da liga. Os jogadores iriam para os times em que podem jogar mais e que possam vencer ao mesmo tempo, não para os times que paguem mais. Isso evitaria “panelinhas” em que jogadores precisem dividir minutos, ou grandes jogadores que se acomodam em times ruins.
Várias questões surgem com esse sistema, como o tempo que os jogadores permaneceriam nos times, trocas, etc. Elrod Enchilada responde tudo com maestria, sempre dando um jeito de fazer o sistema funcionar (um dia faço um post maior explicando todas as ideias do Elrod). Sua sugestão é para que não seja necessária uma greve dos jogadores por razões salariais e interromper o prejuizo dos times, mas trago a ideia de volta para que não aconteçam novamente coisas como esse Hornets, que precisa de alguém disposto a pagar taxas e não terá – enquanto Mavs e Lakers se esbaldam em elencos caríssimos. É uma pena que caras como o Chris Paul tenham que buscar sempre os “melhores mercados”, e o Hornets tenha que ficar com o “resto”.