Quando Kevin Durant saiu do Oklahoma City Thunder para se unir ao Golden State Warriors, a NBA entrou em pânico. Times pequenos passaram a temer perder suas raras estrelas para times já consolidados ou, pior, JÁ CAMPEÕES. Caso um time não seja capaz de dar ao seu jogador condições para lutar por um título em cerca de oito temporadas, as chances de que ele abandone a equipe em busca de situações melhores é gigante. Isso se dá porque jogadores muito bons tendem a cumprir seu contrato de novato e imediatamente fazer uma extensão milionária. Ao fim desse período, em geral, já viram seu time passar pelo processo de reconstrução e tentar trazer reforços de peso para lutar por um título. Caso nada disso tenha funcionado, o jogador se sente no direito de procurar “lugares melhores”. O problema é que essa janela de tempo normalmente significa que o jogador abandona o time em que foi draftado justamente no melhor momento da sua carreira, e quando os times que os escolheram já fizeram comprometimentos demais de longo prazo com outras peças para tentar convencer suas estrelas a ficar. Na prática, assim que um time ruim escolhe uma jovem estrela na noite do draft, um relógio de OITO ANOS começa a correr na cabeça da diretoria: se o time não for um dos melhores da NBA ao fim desse período, a estrela possivelmente partirá para um time melhor e outro processo de reconstrução terá início.
Em 2017 tivemos a negociação de um novo contrato entre a Associação dos Jogadores da NBA e a Liga, algo que precisa ser feito periodicamente para que jogadores e times possam fazer alterações nas regras salariais e deixar todo mundo feliz. Nessa última negociação (que nós explicamos com detalhes na época em um podcast especial para nossos assinantes), surgiu uma nova regra para tentar impedir esse ciclo de abandono de times, informalmente chamada de “Regra Kevin Durant” ou “Durant Rule”: se uma estrela (alguém eleito para o “All-NBA Team”, o melhor quinteto da Liga; eleito MVP; ou então eleito Melhor Defensor do Ano) chegar ao fim de sua primeira extensão de contrato (ou seja, terminar efetivamente seu segundo contrato) com o time que a draftou, sua próxima extensão pode ser de até 35% do teto salarial, ou seja, um salário ABSURDAMENTE GIGANTE que nenhum outro time pode oferecer, apenas o time atual. O contrato, apelidado de “super-máximo” e que a gente gosta de chamar de POTE DE OURO, deveria ser suficiente para convencer estrelas no auge a continuarem com suas equipes, dar aos times “mais uma chance” e impedir a formação de super-equipes com jogadores que foram “criados” em times menores. Se a regra tivesse sido estabelecida alguns meses antes, por exemplo, Kevin Durant teria uma oferta supostamente IRRECUSÁVEL do Thunder para ficar e, na cabeça dos engravatados, não teria se juntado ao Warriors.
O primeiro jogador a ter a chance de assinar um desses contratos gigantes seria DeMarcus Cousins, que estava no Kings na época. Depois de 7 anos de fracasso em Sacramento (que viu seis técnicos diferentes tentarem assumir a bomba), Cousins chegaria naquele momento de querer jogar por um time “de verdade” e o Kings poderia lhe oferecer um pote de ouro para convencê-lo a ficar. Foi aí que o Kings, então, trocou Cousins sem pensar duas vezes. Foram eles que não quiseram comprometer 35% do seu espaço salarial com o jogador, um investimento alto demais para um time que não tinha reais chances de coisa alguma, e que retiraria flexibilidade salarial necessária para construir alguma coisa minimamente digna em Sacramento. Foi o primeiro momento em que vimos a regra atirar pela culatra e PREJUDICAR financeiramente uma equipe a ponto dela ativamente preferir trocar sua estrela ao invés de tentar mantê-la.
Agora vemos mais uma vez o POTE DE OURO falhar. Anthony Davis, atualmente em sua sétima temporada, teria mais um ano de contrato com o Pelicans mas poderia, ao fim da temporada, assinar uma extensão super-máxima. Caso ele recusasse, a mensagem seria clara: ao escolher não aceitar aquilo que seria o MAIOR SALÁRIO DA HISTÓRIA DO BASQUETE, indicaria que não tem qualquer interesse de ficar no Pelicans e o time teria, então, uma temporada inteira para trocá-lo. Acontece que Anthony Davis resolveu avisar agora, já, now, que não está interessado no pote de ouro. A recusa é de (respira fundo) duzentos e quarenta milhões de dólares por 5 temporadas, quase 50 milhões de dinheiros por temporada. Para Anthony Davis, o dinheiro não foi suficiente para convencê-lo a ficar no Pelicans até seus 30 anos de idade. Paira sobre todos os jogadores o assustador (e barulhento) fantasma de Kevin Garnett, que só foi ter sua primeira real chance de título ao ser trocado aos 31 anos de idade, depois de uma carreira lendária num Wolves imprestável, e que é muito vocal sobre a BURRADA que foi ter levado tanto tempo para mudar de time. A atual geração tem medo de ser esquecida em times irrelevantes e quer times bons imediatamente – quer dizer, imediatamente depois de 8 anos de espera, claro.
A recusa de Anthony Davis, no entanto, não foi uma grande surpresa. Davis já havia dito que tomaria a decisão sem levar em conta o pote de ouro, pesando apenas o que seria melhor para “sua carreira”. Jrue Holiday já havia afirmado publicamente que Davis deveria aceitar o contrato simplesmente porque era “um dinheiro capaz de transformar vidas para sempre”, mas Julius Randle alertou o companheiro, através da imprensa, que ele deveria considerar antes de mais nada o que seria melhor para sua família – e que isso não significava pensar no dinheiro em primeiro lugar. Dadas as dificuldades do Pelicans em chegar longe na NBA nos últimos anos, a recusa de manter DeMarcus Cousins na equipe (o que, segundo Cousins, deixou Anthony Davis “magoado e frustrado”) e o fato de que nesse momento o time estaria longe de chegar aos Playoffs, faz muito sentido que Davis não queira ficar. Surpreendente mesmo foi a MANEIRA com que a recusa do contrato máximo aconteceu.
Ao invés de informar o time internamente, como seria o comum, o agente de Anthony Davis resolveu anunciar a recusa para a imprensa e, numa total falta de sutileza, emendar que a estrela estava pedindo uma troca – que já estava IMPLÍCITA com a recusa para qualquer um que entendesse das questões salarias da Liga. O pedido público de troca não apenas gerou uma multa para Anthony Davis (de 50 mil dólares, numa tentativa de impedir que jogadores usem a imprensa para forçar trocas em cima de seus times) como também deu início a todo um processo de INVESTIGAÇÃO para ver se o Los Angeles Lakers não quebrou, mais uma vez, a regra de tampering da NBA.
A regra de tampering diz que times não podem conversar, negociar ou falar publicamente sobre contratações de jogadores que estejam em contrato com outros times. O Lakers tomou duas multas recentes, uma por Magic Johnson, presidente da equipe, ter elogiado publicamente Giannis Antetokounmpo, e outra pelo General Manager do Lakers ter tido conversas com o agente do Paul George antes do período de negociação dos jogadores. Dessa vez, a questão é mais complicada: o agente de Anthony Davis é Rich Paul, agente (e amigo pessoal) de LeBron James. Some isso ao fato de que Anthony Davis disse, supostamente, que dá preferência para uma troca para o Lakers e temos aqui indícios de que uma negociação ocorreu nos bastidores, através de Rich Paul e possivelmente envolvendo os engravatados da equipe de Los Angeles. Anthony Davis poderia ter esperado o final da temporada para avisar que recusaria o contrato super-máximo, mas alegou preferir avisar agora porque “quer o melhor para si e para o Pelicans”, supostamente dando mais tempo para o Pelicans se preparar. O anúncio, entretanto, pode ter levado em consideração a vontade de ser trocado imediatamente para o Lakers e conversas com os executivos de lá sobre o time de Los Angeles ter melhores chances de conseguir trocar por ele agora ao invés de no final da temporada.
Para entender o motivo do Lakers ter mais chances agora é preciso entender outra regra salarial da NBA, informalmente chamada de “Regra Derrick Rose”, ou “Rose Rule”. Na prática, ela funciona como o “super-máximo”, mas para jogadores que acabaram de sair de seus contratos iniciais de novatos: se o jogador assina uma extensão com o time que o draftou (e é uma estrela “comprovada”, ou seja, MVP, “All-NBA Team” ou Melhor Defensor do Ano), pode receber mais dinheiro do que receberia em outra equipe. Em teoria essa regra ajudaria times a não perder seus novatos logo de cara, mas na prática nenhum novato tão bom assim foge do time antes de assinar uma extensão comum. A “Rose Rule” serve, na verdade, apenas para ajudar jogadores jovens muito bons a receber contratos mais condizentes com seu talento. A pegadinha, no entanto, é que nenhum time pode ter mais do que um jogador com um contrato desses. Isso significa que enquanto Anthony Davis e Kyrie Irving não assinarem contratos novos (o terceiro contrato de suas carreiras), os dois não podem jogar juntos. Isso impede que o Boston Celtics, o time mais equipado para fazer QUALQUER troca na NBA, faça uma oferta por Davis.
O Celtics já mostrou, com a troca por Gordon Hayward, que não tem receio nenhum em adicionar super-estrelas sempre que possível. O que temos lá em Boston é o único processo de reconstrução do planeta que já deu certo, já montou um timaço e mesmo assim NUNCA TERMINA: o time continua com um estoque interminável de escolhas de draft de outros times, toneladas de veteranos com contratos gordos para enviar e dúzias de jovens jogadores com potencial que o time SEQUER PRECISA. Para o próximo draft, o time tem a escolha do Kings, do Grizzlies, do Clippers e a própria escolha – não tem nem onde ENFIAR tanto moleque assim. Trocar por Anthony Davis tornaria o Celtics uma potência assustadora, e para isso o time precisaria se livrar de peças que não são essenciais: possivelmente Gordon Hayward (que ainda tem 28 anos e seu talento está ofuscado pela volta de lesão), um dos seus jovens talentos que batem cabeça por minutos (Jayson Tatum ou Jaylen Brown) e um pacote de escolhas de draft. Algo nesses moldes seria a troca mais proveitosa para um time em reconstrução em DÉCADAS e daria ao Pelicans um terreno bem sólido para se firmar, enquanto tornaria o Celtics um candidato ainda mais sério ao título nos próximos anos. Todos os times da NBA tentarão enviar pacotes para o Pelicans – sim, Anthony Davis é bom NESSE NÍVEL e qualquer time deveria se desintegrar pela chance de tê-lo – mas é evidente que ninguém conseguirá mandar nada tão interessante quanto o Celtics poderá mandar assim que Kyrie Irving assinar seu próximo contrato.
Isso significa que se o Pelicans quiser esperar a oferta do Celtics, basta aguardar pelo encerramento da temporada, o novo contrato de Irving e aí receber o pacotão de maravilhas que virão de Boston. Para ir para qualquer outro lugar (como o Lakers, por exemplo), o Anthony Davis precisa tacar na cabeça do Pelicans algum tipo de SENSO DE URGÊNCIA, um comichão pela ideia de ter um time novo agora mesmo, ganhar tempo de treino e entrosamento, sonhar com ir para os Playoffs desde já com a molecada que vier ou algo desse gênero. Precisa contar também, claro, com o Lakers oferecendo ATÉ AS CALÇAS num pacote apetitoso o bastante para o Pelicans achar que o do Celtics não seria tão melhor assim. São cenários complicados, improváveis, e que o Pelicans desde o primeiro minuto resolveu mergulhar num BALDE DE ÁGUA FRIA ao dizer publicamente que trocaria Davis “no seu ritmo, respeitando as necessidades do time e não pressões externas”. Há pouca razão para correria, especialmente num time que tem arquibancadas relativamente vazias e, portanto, pouca pressão da torcida.
Os últimos pedidos de troca para o Lakers, inclusive, foram todos por água abaixo: Paul George queria ir para Los Angeles, mas foi trocado para o Thunder e desde então resolveu ficar por lá, enquanto Kawhi Leonard também preferia o mesmo destino e foi parar lá no Canadá. Anthony Davis pode sofrer a mesma situação: tramou um plano elaborado, planejou o timing perfeito para pressionar o Pelicans, e pode ir parar num time que não era seu alvo ideal – e sem o pote de ouro, vejam só. Por mais que os pedidos de troca pareçam dar aos jogadores muito poder, os times ainda podem decidir o que fazer com suas estrelas, trocando-as para onde acharem melhor no ritmo que mais lhes for conveniente. O que os times não podem, entretanto, é deixar de criar equipes competitivas ao redor de suas jovens estrelas. Independente do pote de ouro, o relógio de 8 anos está sempre correndo assim que as jovens estrelas são draftadas: lhes dê condições de título ou passe a se preocupar com cenários de troca e manchetes de jornal, arrumando uma nova casa para a estrela que você ajudou a criar. As regras salariais são simplesmente incapazes de impedir o desejo dos jogadores por vitórias, pós-temporada, relevância, títulos e tudo aquilo que envolve os times de elite da NBA. Às equipes, só resta responder a isso com planejamento e eficiência: vencer ainda é mais efetivo do que oferecer contratos milionários.