Mais de 10 anos atrás, ainda nos primórdios do Bola Presa, cravamos: “um dia vamos comprar o Milwaukee Bucks“. A piada, que envolvia o super plausível plano de ganhar na loteria múltiplas vezes, não elegeu o Bucks por sermos torcedores da franquia, moradores da região e nem por afinidade. O motivo era menos lisonjeiro: o Bucks era simplesmente a franquia mais “acessível”, a menos valiosa da NBA, estimada na época em 250 milhões de dólares – 100 milhões a menos do que a então média da Liga. Ter sonhos loucos não impede ninguém de manter um tiquinho dos pés no chão, não é mesmo?
O valor módico em comparação com as outras equipes é fruto de uma série de fatores. Primeiro, Milwaukee é uma cidade relativamente pequena para os padrões da NBA, com meio milhão de habitantes, e muitos moradores da sua região metropolitana preferem torcer para o Chicago Bulls, geograficamente próximo e com muito mais títulos e tradição. No mapa das torcidas abaixo dá pra ver como o vermelho do Bulls cerca e invade o verde do Bucks:
Além disso, temos a falta de sucesso da equipe: apenas duas finais da NBA, ambas nos longínquos anos 70, um título solitário em 1971, e uma incrível sequência de DEZESSETE TEMPORADAS sem passar da primeira rodada dos Playoffs entre 2001 e 2018. A soma de mercado pequeno, clima frio e ausência de temporadas vencedoras torna muitíssimo difícil convencer estrelas a assinarem com a franquia. Não ajuda também a fama da cidade de ser, digamos, monótona – dizem que jogadores de outros times reclamam da mera ideia de ter que disputar uma partida por lá, já que não existem muitos atrativos depois que os jogos acabam. No Bola Presa, usamos por anos a expressão “uma terça-feira em Milwaukee” para representar o tédio e a banalidade de um dia comum de temporada regular. É o que diz a lenda: mais chata do que uma terça-feira, só se ela for em Milwaukee mesmo.
Isso não quer dizer que não tenhamos construído um carinho pela franquia, pelo contrário. Mas se esse carinho era inicialmente fruto do nosso auto-intitulado papel de futuros compradores, aos poucos foi sendo alimentado justamente pela graça de torcer pelo mais fraco, pelo menor, pelo desacreditado. Até chegamos a traduzir o “Fear the deer” gritado pela torcida em Milwaukee para um tupiniquim “TEMA A RENA”, misto de torcida e humor – é um grito de guerra, claro, mas afinal de contas, quem em sã consciência seria capaz de temer uma rena?
Nos últimos anos, entretanto, as coisas foram mudando uma a uma em Milwaukee. O preço do Bucks simplesmente disparou: saltou para 1 bilhão e 625 milhões de dólares, segundo as últimas expectativas (um ganho de mais de um bilhão em 10 anos!), suficiente para a vigésima colocação na lista de franquias mais valiosas. Em 2019, a sequência de 17 temporadas sem passar da primeira rodada dos Playoffs foi interrompida e o time alcançou as Finais da Conferência Leste. Em 2020, Giannis Antetokounmpo assinou um contrato super-máximo com a equipe para seguir na franquia por mais 5 anos, mostrando que mesmo as maiores estrelas podem optar por ficar na cidade. E por fim, uma terça-feira em Milwaukee se tornou o dia mais especial e importante possível: foi o dia em que o Bucks foi novamente campeão da NBA. O dia em que todos passaram, enfim, a temer essa tal de rena.
A terça-feira histórica que trouxe o título para o Milwaukee Bucks não foi apenas uma noite incrível de sucesso. Mais do que isso, ela foi aquele momento central que justifica todas as escolhas anteriores, que ampara todas as decisões tomadas, que arruma todos os equívocos e que silencia todas as dúvidas. A chegada de Jrue Holiday, abrindo mão de Eric Bledsoe e condenando a franquia de Milwaukee a extrapolar o teto salarial e pagar multas milionárias por anos a fio (algo particularmente pesado em uma cidade menos lucrativa do que os grandes centros urbanos)? Justificou-se numa partida defensiva impecável e num quase triple-double. A aposta em Khris Middleton, que para muitos não tinha talento suficiente para executar um papel de tanto protagonismo num time com sonhos de título? Pagou-se com arremessos fundamentais na hora decisiva. A insistência em deixar Brook Lopez em quadra, pagando-lhe fortunas, apesar da facilidade com que alguns times encontraram de punir sua defesa fora do garrafão? Recompensada com momentos brilhantes de defesa individual e influência direta no que foi um dos piores jogos de pós-temporada do pivô DeAndre Aytyon, seu adversário. Manter o técnico Mike Budenholzer depois dos Playoffs anteriores em que ele pareceu triturado pelos ajustes criativos dos outros treinadores e teve que lidar com a alcunha de “teimoso”? Rendeu um misto ideal de consistência e inventividade que apenas os grandes times conseguem alcançar.
E por fim – e mais importante – a aposta em Giannis Antetokounmpo. No futuro, ninguém jamais verá sua presença em Milwaukee como uma aposta: chamarão a confiança depositada no jogador grego de “óbvia”, de “evidente”, como se tê-lo fosse sempre a resposta certa em todos os momentos de sua carreira. Mas não foi. Giannis chegou à NBA como uma incógnita, um potencial físico inacreditável que ninguém sequer sabia se era capaz de jogar basquete. Se os olheiros da NBA não sabiam como seria a transição de um jogador como Luka Doncic, que já era o MVP mais jovem da história da Euroliga, como teriam qualquer confiança nos 9 pontos por jogo de Antetokounmpo na SEGUNDA DIVISÃO do basquete grego? A esse risco somou-se um segundo, o de torná-lo o exemplo máximo de um modelo de jogador que entrou no imaginário da NBA na última década, os “unicórnios”. Foi preciso confiar que esse jovem atleta de 2,11m de altura conseguiria jogar um basquete completo, da armação à finalização, do rebote defensivo à cesta adversária. Depois, novos desafios: o de acreditar que ele poderia ser um jogador dominante na NBA mesmo sem converter bolas de três pontos ou lances livres numa era do basquete em que esses são os dois tipos de arremessos mais eficientes e desejados pelas análises estatísticas. E, como desafio relacionado, tivemos a oferta de um contrato SUPER-MÁXIMO para esse jogador que não se encaixava perfeitamente no nosso imaginário de como deveriam ser os atletas mais bem pagos da Liga. E não foi apenas uma oferta de dinheiro: ela veio também acompanhada pelo voto de confiança de pedir que Antetokounmpo CONTINUASSE ARREMESSANDO – tanto as bolas de três quanto os lances livres – apesar do seu baixíssimo aproveitamento. Esse voto de confiança foi uma das decisões mais difíceis e polêmicas que já vi uma franquia tomar com relação a uma estrela. Afinal, deveria o time estimular seus atletas a fazerem apenas aquilo que fazem de melhor? Ou deveriam insistir para que tentem aquilo que não sabem, que não conseguem, muitas vezes condenando o jogador a atuações mais fracas (e eventuais vergonhas), mas possivelmente expandindo seu teto de desenvolvimento? Se o Bucks não tivesse sido campeão, provavelmente estaríamos criticando a abordagem do Bucks em incentivar os arremessos – talvez até estivéssemos criticando cada etapa que nos trouxe aqui, do draft ao esteriótipo de “unicórnio”, do contrato super-máximo à insistência tática de colocar Antetokounmpo na linha de lances livres.
Mas não foi só o título do Bucks que sepultou essas críticas, foi também A FORMA como Giannis ganhou esse título, especialmente na derradeira terça-feira em Milwaukee. Foram 50 pontos marcados, uma bola de três pontos importante e 17 lances livres convertidos em 19 tentativas – um aproveitamento de 90%, em outra galáxia se comparado com os 68% de aproveitamento da temporada regular ou com os menos de 50% de aproveitamento na série contra o Brooklyn Nets. Foi uma atuação tão dominante, mas tão dominante, que ela foi até mesmo capaz de reescrever o passado, dando sentido e significado para o que antes era só caos e dúvida. E se tem uma coisa de que franquias pequenas como o Milwaukee Bucks precisam, e de que jogadores da segunda divisão do basquete grego precisam, é reescrever o passado.
Existe uma percepção comum entre quem assiste à NBA mais de longe de que os times em mercados pequenos não possuem chances de título e estão só participando como figurantes. Às vezes parece que as grandes estrelas sempre querem jogar nas cidades mais ricas e badaladas, como New York e Los Angeles. Quem acompanha mais de perto sabe que simplesmente não é o acaso: nos últimos 10 anos, tivemos diversos títulos em cidades menos lucrativas, como San Antonio, Cleveland, Toronto (por tanto tempo esnobada por alguns jogadores americanos) e, agora, Milwaukee. Mas é verdade que quanto menos lucrativas são essas cidades, menor é a margem para erro. Existe muita resistência nessas franquias a contratações muito longas e caras, com medo de um endividamento incompatível com as conquistas e com a audiência. Pensar a longo prazo pode ser arriscado, pelo medo de que uma eventual estrela queira ser trocada. E às vezes essas mesmas equipes, ainda que com resultados apenas medianos, se dão por satisfeitas com um pequeno aumento de ganhos e não ousam fazer apostas mais arriscadas ou reconstruções drásticas que possam comprometer o que já foi alcançado.
É aí que entra o Milwaukee Bucks, a equipe que fez as escolhas difíceis, que se comprometeu com Antetokounmpo até o final, que torrou todo o dinheiro possível para construir e manter esse elenco, e que aumentou seu valor de mercado em 1 bilhão em uma década. No mundo do esporte, vencer resolve qualquer mazela – os conflitos internos no elenco, os erros dos técnicos, os endividamentos e até os deslizes pregressos de gestão da franquia, que passam a ser vistos como um “degrau necessário” na reconstrução até a vitória. E a boa notícia é que, embora qualquer time sonhe em se tornar uma dinastia e colecionar anéis de título por anos a fio, basta vencer uma única vez. O Sacramento Kings detém a maior seca atual da NBA, com 15 anos sem alcançar os Playoffs – mas basta um título para que até esses momentos de horror e sofrimento sejam vistos como momentos de aprendizado. Se o Minessota Timberwolves vence um título, estaremos todos exaltando como o time se comprometeu com Karl-Anthony Towns mesmo nos momentos difíceis, e que eventualmente isso deu os frutos pretendidos – os frutos óbvios, evidentes, inevitáveis, que só podem ser vistos assim depois que os frutos de fato já foram colhidos.
Na prática, sabemos que alguns desses times não têm chances reais e que essas vitórias redentoras não são possíveis. Mas não podemos ignorar o impacto SIMBÓLICO que um título ir parar em Milwaukee tem para essas pequenas franquias passando por dificuldades. Tudo que elas precisam é de uma justificativa para sonhar mais alto e arriscar de acordo, e certamente o Bucks será usado como justificativa em muitas reuniões nos próximos anos – se já não tiver sido em muitas reuniões anteriores.
Não é difícil imaginar o nome do Bucks aparecendo, ano passado, durante as conversas da diretoria do Charlotte Hornets, por exemplo. “Pagar 30 milhões de dólares para Gordon Hayward? Não tem problema, se LaMelo Ball virar uma estrela, a gente tem que ter feito esse investimento – o Bucks não pagou 35 milhões em Khris Middleton, por exemplo?” Em Atlanta, houve até uma pequena hesitação por oferecer um contrato caro para o ainda muito jovem John Collins, mas alguma coisa mudou – ofertas semelhantes, de mais de 20 milhões de dólares por temporada, foram parar no colo tanto de Collins quanto de Danilo Gallinari. “Se Trae Young for o nosso Antetokounmpo, precisamos abrir os bolsos com o resto do elenco”, imagino alguém dizendo a portas fechadas. Reverberações desse “efeito Bucks” podem ser imaginadas em vários lugares: dos 35 milhões para Rudy Gobert aos recentes investimentos de um renovado Chicago Bulls.
Nesse cenário, soa ainda mais estranha a atual decisão do outro finalista da NBA, o Phoenix Suns, de não oferecer um contrato máximo para DeAndre Ayton. O pivô alegadamente quer a mesma extensão máxima que foi oferecida a seu colega de draft, Trae Young, e não chegou a um acordo com a franquia. Sem esse acordo, Ayton se tornará um agente livre restrito na próxima temporada, podendo receber ofertas máximas de outras franquias – ofertas essas que o Suns parece hoje receoso em cogitar. Do ponto de vista do talento, certamente é mais fácil desembolsar esse dinheiro com Trae Young, especialmente depois do amadurecimento que demonstrou nos Playoffs passados e do impacto que ele teve no Hawks e na NBA. Mas a lição que o Bucks oferece é que franquias pequenas não deveriam necessariamente pensar em talento. Você está perto de ganhar um título? Chegou ou quer chegar numa Final? Esse jogador foi minimamente importante para o sucesso da última campanha? Então você lhe paga. Justifica agora dizendo que foi isso que transformou o Bucks numa franquia bilionária. E justifica mais tarde, eventualmente, conquistando um título. Sem Ayton, o Suns será um time pior e as franquias de mercados pequenos precisam se acostumar com essa ideia de não SE PERMITIR PIORAR. Mesmo que isso signifique pagar muito caro para Middleton, Hayward, Gobert, Gallinari, Ayton. Não tem outro jeito, esse é – literalmente – o preço a se pagar.
O sucesso do Bucks não é apenas inspirador para os outros times da NBA – é inspirador para o próprio Bucks também. O comprometimento salarial com o elenco rendeu uma boa janela em que o time continuará competitivo, na briga por títulos, e com uma tranquilidade que muitas franquias no topo não conseguem ter. É normal que times sejam campeões e acabem perdendo peças importantes, já que vários jogadores que compõe esses elencos de elite são adicionados em contratos curtos e acabam se valorizando demais nas campanhas vencedoras. Também acontece das estrelas precisarem de renovações tão elásticas que passa a ser inviável financeiramente segurar todo mundo no mesmo barco. Felizmente, não é o caso do Bucks: Antetokounmpo, no meio do seu super-máximo, fica com a franquia no mínimo até 2025; Jrue Holiday fica pelo menos até 2024; Middleton até 2023. O núcleo do time tem pelo menos mais duas temporadas juntos, potencialmente três, e até Brook Lopez tem mais dois anos garantidos com a franquia. São anos em que Antetokounmpo continuará evoluindo (na pré-temporada após o título, já vimos um avanço inegável nos seus arremessos de meia distância), que a química entre os atletas continuará se desenvolvendo, e que o técnico Mike Budenholzer seguirá imaginando maneiras para melhor aproveitar seus atletas.
Temos aí mais um motivo para times com estrelas jovens abrirem os bolsos mesmo sem estar tão perto assim de um título: se há evolução e o título chega, ainda dá para tentar muitas outras vezes repetir o feito. Só é necessário ganhar uma vez para justificar tudo, mas ganhar outras mais certamente parece algo dentro dos planos para quem investe antes mesmo de estar com as mãos na taça.
O sucesso do Bucks na última temporada não foi exatamente inesperado, já que eles haviam batido na trave e a tendência era de que continuassem evoluindo. Mas o Bucks ter ido parar nos últimos anos nessa situação em que era possível sonhar com um título, e que era viável justificar os salários de Giannis e Middleton, não era algo no radar de muita gente. Começou com um draft improvável, escolhas polêmicas e até mesmo uma ingenuidade saudável (Giannis armador?), e por fim culminou num time histórico e uma das maiores atuações da história dos Playoffs – ao menos certamente a melhor já vista por uma terça-feira.
Isso significa que muitos outros times podem ser, nesse momento, o “próximo Bucks” – times que estão usando essa história de sucesso como modelo, que já abriram os cofres, que estão dando carta branca para que suas estrelas enfrentem suas dificuldades. Em poucos anos, podemos ver alguns desses times batendo na trave e só aí começaremos a conseguir justificar suas escolhas atuais, seus gastos exorbitantes, suas escolhas de draft arriscadas. Pensando no Bucks, passei a ter dificuldade de criticar decisões estranhas em times como Hornets, Hawks e Grizzlies, por exemplo. Pelo contrário, fico imaginando que daqui alguns anos eles podem reescrever tudo e mostrar que sempre estiveram certos – e eu, meramente preso no presente, sempre estive errado. Não se trata aqui de acreditar em destino, mas de lembrar que os sucessos criam sua própria história anterior. Quando vemos o Hawks jogar, é como se olhássemos um astro no Universo e a luz chegasse muito atrasada. Em algum momento do tempo esse time talvez já seja campeão e a gente está aqui criticando o contrato gordo do Danilo Gallinari. O Bucks mudou nossa percepção do tempo – mostrando que é difícil julgar as coisas no instante em que acontecem, o Bucks nos ensinou a sonhar.