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Volta e meia, sempre tem um carinha perdido por aí dizendo que na NBA não é permitida a tal “defesa por zona”, tão usada no basquete da FIBA que se joga no resto do planeta. Assim, quando a seleção dos Estados Unidos enfrenta outras seleções em torneios mundiais, em que valem as regras da FIBA, haveria uma suposta dificuldade em se acostumar, em aprender tudo correndo e em cima da hora. Balela. A partir da temporada 2001-02 a marcação por zona, tão implementada no basquete universitário e portanto conhecida pela imensa maioria dos jogadores, passou a valer sem frescura. Antes, um monte de regras chatinhas dificultava as marcações duplas e a defesa sem a bola, mas já faz quase 10 anos que isso mudou. Todo time decente da NBA eventualmente marca por zona, e a gente viu como o Thunder conseguiu usar essa defesa para dar uma canseira no Lakers nos playoffs passados.
O que não pode é um defensor ficar dentro do garrafão por mais de 3 segundos sem estar acompanhado por outro macho do time adversário. Isso não impossibilita as defesas por zona de forma nenhuma, apenas impede que um gigante chinês fique embaixo do aro o tempo inteiro, obrigando que ele esteja sempre próximo a algum jogador adversário que ocupe aquela área. Se não tiver nenhum adversário no garrafão, o gigante chinês precisa sair do garrafão também. Além disso, aquele desenho de um semi-círculo no chão também impede os defensores de ficarem ali “guardando cachão”, como se diz em linguagem de esconde-esconde. Dentro daquele semi-círculo, não importa se o defensor está parado lendo um livro, filosofando, trocando figurinhas ou contando anedotas: se tocar num jogador que esteja atacando a cesta, vai ser falta do defensor, e toca ter sua retina derretida pelas imagens do Ginóbili ou do Dwyane Wade cobrando lances livres.
Ou seja, a marcação por zona existe e está lá, em todas as partidas da NBA (menos as do Warriors, eles nem fingem que defendem). Mas a regra dos três segundos de defesa e o semi-círculo garantem que exista um caminho mais aberto para a cesta, favorecem o time que ataca, e facilitam a vida do jogador que ataca o aro lhe presenteando com muitas faltas e lances livres. O resultado disso é que, na NBA, os placares são mais altos e há um foco maior no jogo de garrafão – não necessariamente dos pivôs, mas de todos os jogadores, incentivados a infiltrar mais. Há mais de um ano atrás, o Rodrigo Alves do Rebote fez um levantamento estatístico fenomenal para descobrir quantos arremessos de três pontos tenta-se por jogo em diversos países, com a finalidade de tentar entender o motivo dos jogadores brasileiros arremessarem tanto de fora. Mesmo eu tendo desenterrado isso de um armário mofado virtual, todo mundo deveria dar uma olhada nesse artigo e nos dados levantados. É fácil perceber que, mesmo jogando partidas mais longas, o pessoal da NBA arremessa muito menos da linha de três do que o resto do planeta. E olha que o Orlando Magic sozinho deve ter inflado essa estatística um bocado.
Sem dúvida nenhuma isso faz parte da cultura de cada país, que pratica o esporte com seu temperinho próprio. No Brasil, por exemplo, a gente arremessa de três como se todo mundo fosse o JR Smith e a marcação por zona é associada a “covardia”, coisa de quem “não sabe jogar”. Isso fica bem claro no desabafo idiota do Nezinho ao ser campeão do NBB:
Mas há também um grande fator para os jogadores da NBA arremessarem bem menos de três pontos: as regras. Como vimos antes, as infiltrações valem a pena. Nas regras da FIBA, todo time marca por zona o tempo todo, o garrafão fica uma bagunça, infiltrar é quase impossível, e os jogos viram um festival de arremessos de três pontos. As grandes equipes do mundo sabem jogar de várias maneiras, mas se consagram com grandes arremessadores no elenco. Pior do que a seleção brasileira de basquete arremessar demais de três pontos é como os arremessos saem, se jogadas foram planejadas para que saiam livres, se os jogadores são bons arremessadores, se há técnica e velocidade no arremesso. Pelas estatísticas coletadas pelo Rebote, os brasileiros não arremessam tãaaao mais do que o resto do mundo, o que assusta é mesmo o aproveitamento, que fede muito.
Entendo perfeitamente a euforia da torcida brasileira com a presença de um garrafão realmente forte no Mundial de Basquete, formado por Varejão, Nenê e Tiago Splitter, galerinha toda da NBA reunida. Entendo também o receio com a seleção americana, que está mandando para o Mundial um time de reservas dos reservas dos reservas, formado por uns carinhas aí que toparam não tirar férias, e não tem absolutamente ninguém relevante para jogar dentro do garrafão. Mas a verdade é que, contra as melhores defesas do mundo dentro das regras da FIBA, o garrafão acaba sendo muitíssimo secundário. Os Estados Unidos podem colocar 5 jogadores em quadra capazes de arremessar de todo lugar, defender forte pra burro, e aí infiltrar no garrafão nos únicos momentos em que isso é possível: nos contra-ataques. O Brasil, mesmo que ainda tivesse Nenê, que volta para casa agora por estar contundido, teria dificuldades em impor um jogo de garrafão e não tem arremessadores técnicos e inteligentes o bastante para derrotar defesas por zona.
A seleção dos Estados Unidos demorou, mas eles finalmente aprenderam um troço importante: o problema não é levar para o Mundial uma seleção de restos, sem as maiores estrelas da NBA. O problema é levar os jogadores errados para as regras que irão enfrentar. Já vi seleção americana sem um único arremessador, e aí eles levam cacetada na orelha mesmo, não tem jeito. Isso também tem a ver com cultura e com as regras: como na NBA os jogadores que infiltram são beneficiados, é normal que haja uma maior admiração por eles do que pelos simples arremessadores. O Ray Allen nunca vai ter tantos fãs quanto o Dwyane Wade, é simples assim. Então muitas vezes leva-se aquela estrela fodona que não sabe arremessar de três e a equipe não funciona, quando um monte de jogadores secundárias teriam rendido muito mais. Claro que na NBA existem muitos jogadores que podem fazer de tudo ao mesmo tempo, mas levar gente focada nos arremessos é sempre o passo mais fácil para vencer no âmbito internacional. Não é mero acaso que o Carmelo Anthony, apaixonado pelo próprio arremesso, sempre acaba sendo cestinha da seleção americana, e que LeBron e Wade voltaram das Olimpíadas com arremessos de três pontos bem mais calibrados depois de tanto treino. Some a isso o fato de que a linha de três pontos na FIBA é cerca de um metro mais perto do aro do que a da NBA e teremos arremessadores muito eficazes e felizes. Não precisa levar LeBron, Carmelo, Wade e Dwight Howard, tá tudo bem colocar uns pirralhos para arremessar, como Eric Gordon, Stephen Curry, Danny Granger, Kevin Durant, e deixar qualquer manezinho dentro do garrafão mesmo. No basquete internacional, isso é o mais importante para vencer.
A FIBA parece estar ciente disso e colocou em prática algumas mudanças de regras. Pra começar, a linha de três pontos ficará mais longe uns 50 centímetros, o garrafão terá o mesmo formato retangular que o da NBA e o semi-círculo embaixo do aro será adotado. O formato atual do garrafão faz com que os jogadores tenham mais dificuldade de se aproximar da aro com um jogo de costas para a cesta, porque os 3 segundos máximos que um jogador ofensivo pode ficar no garrafão começam a contar mais cedo. Isso também leva vários pivôs europeus a arremessarem de três pontos, pra fugir do jogo lento e truncado do garrafão. Agora a vida de quem joga de costas para a cesta ficará mais tranquila, os arremessos de três ficarão mais dificultados pela distância e o semi-círculo vai recompensar um pouco os jogadores que decidirem infiltrar mais. Não sei exatamente quando as regras passam a valer oficialmente (ouvi dizer que é apenas em 2012, alguém me tira a dúvida?), mas vários torneios do mundo já estão implementando as mudanças, inclusive o NBB. Será uma ducha de água fria na nossa cultura apaixonada pelo arremesso e talvez, aos poucos, mude mesmo o nosso modo de jogar. Não ficaria nada surpreso se daqui a alguns anos a FIBA também colocasse em vigor a regra dos três segundos de defesa, de modo a abrir ainda mais o caminho para a cesta. Embora as diferenças sejam culturais e tem muita gente que gosta bem mais do basquete internacional do que do estilo de jogo da NBA, não dá pra negar que o modelo da NBA é mais dinâmico, privilegia o ataque e é muito mais popular. Se o objetivo é colocar doce na boca da criançada, o caminho é mesmo inibir a bagunça que é o garrafão do basquete internacional.
Mas, por enquanto, em que as regras da FIBA são o paraíso dos arremessadores, o basquete brasileiro ainda sofre mesmo é com a falta de arremessadores competentes e inteligentes. É curioso como nosso trabalho de base, que é limitado por verbas escassas e dificuldades culturais, parece gerar em maior quantidade jogadores enormes de garrafão e forma arremessadores sem critério ou sem a técnica de arremesso adequada. Nos arremessos, Leandrinho sempre deixou muito a desejar (antes mesmo de entrar no draft os relatos de sua mecânica esquisita já espantavam algumas equipes), e sua capacidade de infiltração é muito limitada fora da NBA, em que o garrafão é mais fechado. Seu estilo de jogo simplesmente não casa com o basquete internacional, assim como sua personalidade não casa com ser líder uma equipe como esperam que ele seja na seleção brasileira.
Engraçado é que descobri recentemente, numa entrevista da revista Dime, que o Leandrinho é quem pediu para ser trocado. Depois de tantos anos em que sair de Phoenix era o grande pavor de sua vida (lembro de um causo em que ligaram para o quarto de hotel do Leandrinho avisando que ele tinha sido trocado só de brincadeira e ele saiu chorando na frente dos colegas de equipe), parece que agora ele quer um papel maior, mais oportunidade de jogo, novas chances de ganhar minutos em quadra. Pediu para ir para o Raptors porque é amigo do engravatado Bryan Colangelo e acha que lá terá oportunidades para ser titular. Bacana. Mas mesmo essa maturidade e vontade de jogar não conseguem camuflar o fato de que Leandrinho não quer liderar uma equipe e tem uma enorme dificuldade em organizar as jogadas ofensivas de qualquer time (papel que Goran Dragic faz muito melhor e tornou o Barbosa desnecessário no Suns). Seu jogo depende da velocidade, não dos arremessos, e de receber a bola em contra-ataques, não de chamar jogadas. Seria muito tolo imaginar que ele pode chegar chutando traseiros na seleção brasileira quando tudo que acontece por ali vai contra seu estilo de jogo.
Do mesmo modo, Varejão e Splitter devem render muito bem na NBA na próxima temporada, mas serão limitados pelas possibilidades do basquete internacional. Varejão deve render muito, apesar da forma física meio baleada, quando se trata de defesa. Mas as principais armas ofensivas adversárias estarão no perímetro e, ofensivamente, Varejão não conseguirá segurar as pontas. Splitter é um jogador refinadissimo embaixo da cesta, do tipo que arrota em francês, mas a defesa por zona torna suas atuações muito mais complicadas – dificilmente conseguirá dominar uma partida por completo. Curiosamente os melhores momentos da seleção brasileira surgem quando Marcelinho “irch” Machado acerta a mira, então não dá pra esperar milagre nem do Splitter, nem da seleção – a gente já sabe que o Marcelinho vai ganhar um jogo e perder outros dois se receber sinal verde para arremessar.
Não acredito que o Splitter vai chegar na NBA chutando traseiros e dominando o garrafão do Spurs, falta físico e levará um tempo para que ele se acostume com mais contato e mais espaço para se mover perto do aro. Mas arrisco dizer, sem muito medo, que ele será eventualmente melhor na NBA do que foi na Europa, tudo graças às regras diferentes. Dar espaço para o Splitter atuar é pedir para ele te fazer de bobo, assim como o Duncan faz tão bem até hoje e terá o maior prazer (embora a cara não vá mostrar) de ensinar para o Splitter como lidar com os brutamontes que estarão lá para marcá-lo.
As notícias são boas para os brasileiros na NBA, mas no Mundial não consigo ver qualquer traço de esperança. Como expliquei em outro post, não vemos muito motivo em ficar torcendo para a seleção só porque compartilhamos as mesmas linhas imaginárias, idioma e piadinhas com a Preta Gil – mas dessa vez o sucesso da seleção apontava para uma atenção que o esporte não recebe há décadas no país e que traria recursos, incentivo e apoio para a base. Infelizmente não será dessa vez. Com ou sem Nenê, iriamos enfrentar defesas por zona incríveis durante todo o Mundial e o jogo de garrafão estaria imediatamente limitado, exigindo um preparamento ofensivo que – focado na defesa – o técnico Magnano não conseguiu colocar em prática. Sem Nenê, então, pior: perdemos defesa no garrafão e voltamos a olhar apenas para o perímetro, onde Leandrinho estará pensando em como será legal jogar na terra de seu colega Steve Nash, o Canadá, onde não terá que liderar uma equipe e nem ficar arremessando o tempo inteiro.