Os videogames não são capazes de simular o que Stephen Curry está fazendo em quadra. Esse desabafo vem de Mike Wang, diretor de jogabilidade do “NBA 2K16”, a maior e mais bem detalhada simulação virtual do basquete da NBA. Isso porque, assim como a própria NBA, a série de jogos “NBA 2K” alimenta-se da revolução estatística da última década, e Stephen Curry vai contra tudo aquilo que as estatísticas nos ensinaram nesse período.
A princípio, nossa principal fonte de informações sobre o mundo é nossa percepção pessoal. Quando assistimos a uma partida de basquete, saímos com impressões claras do que funcionou e do que não funcionou, do que alterou ou não a história do jogo, e do que nos impressiona ou motiva internamente. Vibramos com os lances de efeito, com as bolas difíceis, com as jogadas bem executadas e vamos criando uma percepção do esporte a partir dos nossos próprios olhos.
Curiosamente, os lances que te impressionam ou emocionam numa quadra de basquete tendem a ser uma análise estatística inconsciente: para vibrar com uma enterrada difícil, é preciso comparar mentalmente com as jogadas “comuns” de infiltração que você vê rotineiramente, com a enterrada média dos jogadores da NBA, para só então perceber que a enterrada difícil está fora da curva, foi uma aberração. As jogadas que nos impressionam, que nos tiram do sofá aos pulos, só o fazem porque se encontram num território de raridade estatística. Caso acontecessem o tempo inteiro seriam banais, corriqueiras e desinteressantes.
Só somos capazes de tirar o máximo de um jogo da NBA quando já vimos jogos suficientes para que sua mente fique passando para você internamente, enquanto você assiste a um jogo, uma PARTIDA MÉDIA DA NBA. É um cineminha na sua cabeça com jogadores médios, jogadas médias, bandejas médias, defesas médias. Quanto mais familiarizado com essa partida média você está, mais impressionante ficam os desvios do padrão, as grandes jogadas, os grandes jogadores. Alguém que nunca viu uma partida de basquete na vida não faz muita ideia se a jogada que acabou de acontecer é simples ou complexa, se é rara ou rotineira. É difícil se empolgar.
O problema desse processo todo de compreensão da norma padrão e do deslumbre com a exceção é que tudo isso acontece num campo muito pessoal da própria percepção. Cansei de ver Tim Duncan ser uma exceção tão silenciosa, quietinho lá no canto dele, que eu sequer era capaz de perceber que algo especial estava acontecendo. Ao fim de um jogo em que Duncan parecia pouco participativo, seus números me mostravam um quase-triplo-duplo gordo que havia sido o grande diferencial para a vitória. E eu nem vi.
O “boxscore”, uma planilha com os números da atuação de um jogador em quadra, ajuda a perceber algo que não passou pelo filtro da sua percepção pessoal. Facilitando a comparação numérica entre os jogadores, permite saber o que de inesperado aconteceu nessas atuações. Mas é claro que o “boxscore” contém apenas alguns poucos números, é um recorte do que o senso comum compreende que deveria estar sendo priorizado em quadra: são pontos, rebotes, assistências, roubos, tocos, o aproveitamento dos arremessos. O resto nossa percepção dá conta: os dribles fora de série, os arremessos nos segundos finais de um jogo, uma enterrada na cabeça de alguém.
Mas quanto mais números foram surgindo, mais estatísticas ficaram disponíveis, mais fomos percebendo os nossos erros de percepção. Carmelo Anthony e Dirk Nowitzki pareciam uns amarelões, sempre perdendo jogos importantes, até que os números nos mostraram que eles passaram anos no topo da Liga em eficiência nos minutos cruciais dos jogos. Jogadores que não roubavam bola e nem davam tocos não pareciam grandes defensores até que começamos a medir a porcentagem de aproveitamento a que forçavam seus adversários. Pivôs que não davam tocos pareciam inúteis defensivamente até que medimos os arremessos “alterados”, quando jogadores precisam desviar para não tomar um toco e acabam finalizando de maneira inadequada. Os números mostraram que talvez não estivéssemos percebendo coisas essenciais, ou que talvez simplesmente estivéssemos olhando para o lugar errado.
Aos poucos essa revolução estatística foi fazendo com que nos preocupássemos com a “eficiência” dos jogadores. Se antes era suficiente ver Allen Iverson ter média de 33 pontos por jogo mesmo com sua altura diminuta na temporada 2005-06, dez anos atrás, agora passamos a nos importar se esses pontos eram ganhos de maneira eficiente. Se, estatisticamente, eles eram ou não a melhor maneira de levar um time à vitória. Aos poucos, um arremesso ridículo que entrasse parou de ser tratado como “mágica” ou “talento” para ser reconhecido como uma DECISÃO RUIM, um arremesso que não compensa a longo prazo, um acaso que deve ser evitado. A percepção foi subitamente alterada: o jogo de Allen Iverson foi de ser espetacular para os olhos de toda uma geração para se tornar um estilo indesejado, egoísta, ineficiente. O aproveitamento dos seus arremessos e os locais da quadra em que ele os dava pareciam numericamente ser um detrimento para seu time. Começou-se a caça às bruxas: Iverson e muitos outros foram jogados para fora da NBA; outros, como Kobe Bryant, tiveram que lidar com um golpe enorme em suas reputações.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Se arremessos estúpidos tivessem um rosto, seria o de JR Smith”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/02/JR-Smith.jpg[/image]
De fato, alguns arremessos que PARECIAM uma boa ideia na hora foram provados como opções piores estatisticamente. Para se ter uma ideia, na temporada passada o aproveitamento da Liga inteira em arremessos entre 1 e 3 metros da cesta foi de 38%. Enquanto isso o aproveitamento geral nas bolas de 3 pontos foi de 35%, um número muito próximo, e que além de tudo vale UM PONTO A MAIS. Estar a 3 metros da cesta para arremessar parece uma ideia não tão inteligente quanto dar alguns passos para trás, espaçar a quadra e arremessar de fora. Outro exemplo: arremessos de pull-up (estar batendo bola e de repente arremessar) tiveram na temporada um aproveitamento de 40%, enquanto os arremessos de catch-and-shoot (correr sem a bola, receber a bola com os pés parados, e aí arremessar) tiveram um aproveitamento de quase 52%. Aquele jogador que está batendo bola na frente do marcador e dá um arremesso do nada está tomando uma decisão bem pior do que receber a bola para um arremesso parado, que precisa de uma melhor movimentação da equipe e jogadas planejadas. Não foram só os jogadores individualistas que receberam um golpe público por conta das estatísticas, foram também os técnicos que não criavam jogadas capazes de colocar seus jogadores nas melhores condições de arremesso. Na temporada passada JR Smith acertou 22% de suas bolas de 3 pontos após driblar e 46% após receber um passe com os pés parados. O fato de que MESMO ASSIM ele arremessa mais vezes após o drible do que após um passe mostra como suas escolhas em quadra são equivocadas – e como os técnicos não conseguem gerar mais oportunidades eficientes para ele.
Nos últimos 5 anos, principalmente, abrimos mão das nossas percepções sensíveis mais óbvias em busca de um entendimento mais profundo, mais adequado, mais UNIVERSAL do que acontece dentro de uma quadra. Para além das opiniões pessoais, fortemente borradas por aquele “jogo médio” que está em nossas cabeças – e que é diferente para cada um de nós – existe a possibilidade de que os números nos ajudem a entender quais opções estão dando certo DE FATO, e quais jogadores estão sendo eficientes apesar das minhas incríveis limitações em percebê-los em quadra em tempo real.
E quando estávamos todos entrando num acordo, quando essa “revolução estatística” estava nos mostrando caminhos inescapáveis (que passam – e moram – na linha de 3 pontos) e os jovens jogadores já chegavam do draft prontos para serem eficientes dentro dos nossos novos padrões teóricos, eis que nos deparamos com uma aberração nos gráficos: Stephen Curry.
Tentando ao máximo simular a vida real, a série “NBA 2K” utiliza da ENORMIDADE de estatísticas disponíveis para desenvolver não apenas seus jogadores mas também a FÍSICA do jogo. Quando você dá um arremesso no videogame, o jogo precisa decidir se a bola vai entrar ou não, e leva em consideração para essa decisão a capacidade do jogador que arremessou e a SITUAÇÃO do arremesso: a distância dos marcadores, a distância do arremesso, se o arremesso foi dado parado, se antes houve um drible, se o corpo estava no movimento de girar para a cesta, etc, etc. Isso quer dizer que para simular uma partida da NBA de verdade, arremessos a 3 metros de distância de cesta precisam ter uma taxa de sucesso (38% na temporada passada) menor do que a taxa de sucesso dos arremessos dados a 5 metros da cesta (40% na temporada passada). Com medo de criar apelações que quebrem nossa sensação de que estamos jogando uma partida realista, tente arremessar na corrida com Stephen Curry e a bola provavelmente não entrará. Mais importante: tente arremessar um ou dois passos para trás da linha de 3 pontos e a bola certamente não entrará, tendo em vista que esse é um arremesso praticamente inexistente na NBA e de baixíssimo aproveitamento.
Mas o Stephen Curry do mundo real, aquele criado em meio a uma revolução estatística que o forçou a ser não apenas um arremessador de 3 pontos mas também um jogador EFICIENTE em todos os aspectos do jogo, contraria as estatísticas atuais da NBA. Basicamente, os números criaram um monstro, uma aberração estatística, que agora os números não dão conta de delimitar.
Exemplo principal: Curry arremessou 49 bolas a um metro e meio ou mais para trás da linha de 3 pontos. Seu aproveitamento? Sessenta e sete por cento. SESSENTA. E. SETE. Isso significa que seu total de pontos nesses 49 arremessos é MAIOR do que seria o total de pontos de alguém que acertasse TODOS os seus 49 arremessos de 2 pontos. Para Stephen Curry, arremessar do meio da quadra – e errar de vez em quando – gera mais pontos do que se ele acertasse todas as suas bandejas!
Em todos os seus arremessos da linha de 3 pontos, Curry tem um aproveitamento espetacular de quase 47%, números de um especialista que se dedicasse em quadra a apenas receber passes para bolas de 3 pontos no “catch-and-shoot”, sem dribles, e arremessasse pouco por partida, apenas nas melhores circunstâncias. Mas não: Curry arremessa após o passe, após o drible, e arremessa numa frequência tão absurda que quebrou o recorde de bolas de 3 pontos convertidas numa temporada mesmo faltando VINTE E QUATRO jogos para a temporada terminar. Some a isso o fato de que Curry tem esses números com menos de 34 minutos por partida, e que sua função não é exclusivamente arremessar – suas infiltrações são essenciais para o espaçamento da equipe e ele é fundamental no corta-luz para os outros arremessadores.
Tudo aquilo que aprendemos sobre os números – e que tornaram Curry quem ele é – o Curry vem e faz diferente. Enquanto o arremesso de três vindo do drible é um dos PIORES da NBA, com média geral de 28% na temporada passada, Curry acertou mais de 42% dos seus, número que muitos arremessadores especialistas não conseguem nem em condições ideais.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”O gesto que Stephen Curry já queimou na sua retina”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/02/Gesto.jpg[/image]
É por isso que temos reações tão complexas e CONTRADITÓRIAS ao que o Stephen Curry está fazendo em quadra. Os puristas do basquete, os “anti-números”, os que acham que o basquete é puro “sentimento” e que os ex-jogadores sabem o que funciona ou não independente de contas matemáticas, odeiam o Curry porque ele é filho da “revolução estatística”, uma máquina de eficiência e 3 pontos. Acusam Curry e seu Golden State Warriors de “não ser basquete”, querendo dizer que é um TRUQUE MOMENTÂNEO, diferente de como o esporte era jogado há uma década atrás. Enquanto isso, os que se baseiam nas estatísticas acham Stephen Curry um jogador que toma péssimas decisões em quadra, dando os arremessos que estaticamente são os menos eficientes, e que se estão caindo agora é por pura SORTE, não valendo a pena a longo prazo. Mas o que estamos vendo, na verdade, é que o basquete mudou, evoluiu, Curry está em outro nível, um patamar que não estávamos preparados quando começamos a analisar números. Por sorte, as estatísticas mostram que os arremessos de Curry são MUITO EFICIENTES – mais eficientes do que acertar todas as suas bandejas, aliás – mas o problema é que só são eficientes PARA ELE. Curry é o ponto tão fora da curva que sequer aparece no gráfico. Ninguém sabe o que fazer – nem para pará-lo, nem para analisá-lo.
No fim, o que nos resta é mesmo a percepção de que algo MUITO RARO está acontecendo quando ele está em quadra. É isso que nos leva a pular, gritar e levar as mãos à cabeça quando ele acerta casualmente um arremesso do meio da quadra para vencer o Thunder na prorrogação.
Essa raridade é o que leva Mark Cuban a pedir para que a NBA afaste a linha de 3 pontos. E que leva o marcador de Curry na jogada contra o Thunder a estar marcando a linha de três pontos. A cabeça dos jogadores também está passando um filme de um “jogo médio” na cabeça para guiá-lo e Curry está tão fora desse filme que a memória muscular, aquela que assume nos momentos de pânico, não dá conta de acompanhar. O certo a se fazer em bolas de três na transição no estouro do cronômetro é marcar a linha de 3 pontos. Quanto tempo vai levar até que nos acostumemos que esse é o jeito correto, mas que não dá conta da aberração fora da curva?
No meio da prorrogação, após acertar dois arremessos de 3 pontos difíceis, Curry pegou a bola e sem nenhuma preparação – nenhuma jogada foi executada, nenhum corta-luz, nada de nada – simplesmente arremessou uns 3 ou 4 passos para trás da linha de 3 pontos, apenas para “testar” se a bola continuaria caindo. Minha reação é óbvia: queimar um arremesso desses numa prorrogação, tão de trás da cesta, sem nenhuma jogada desenhada, com uma casualidade dessas, é coisa de JR Smith e deve ser criticado. A longo prazo não pode valer a pena! Meu cérebro ainda passa o filme médio da NBA na cabeça e não está preparado para a verdade assustadora: para Stephen Curry vale a pena, muitos passos para trás, em movimento, parado, no começo ou no fim dos jogos. Nunca um jogador contrariou tanto aquilo que estamos dispostos a esperar de uma partida de basquete. Levará tempo para entendermos que as regras para ele são outras. Até lá, ficamos com a percepção de estarmos vendo uma aberração da natureza, indizível, inefável, incalculável, algo que nenhum número ou palavra é capaz de limitar.