Na semana passada, Ben Wallace teve sua camiseta aposentada pelo Detroit Pistons numa bonita cerimônia que contou com a presença de todos os membros daquele Detroit Pistons campeão em 2004 do qual o “Big Ben” fez parte. A honra de ter a camiseta aposentada é merecida: Ben Wallace foi 4 vezes o Melhor Defensor da Temporada, 5 vezes eleito para o Time de Defensores da Temporada, foi para o Jogo das Estrelas por 4 vezes, liderou a NBA em rebotes 2 vezes e em tocos uma vez, líder da história do Pistons em tocos e, claro, foi campeão da NBA uma vez na temporada 2003-04. É um currículo inacreditável para alguém que, pela maior parte dos critérios que se possa usar, não sabia jogar basquete. Nunca na carreira Ben Wallace chegou a ter médias de sequer 10 pontos por jogo numa temporada e sua média de aproveitamento nos lances livres na carreira é de 41%. Na verdade, seu grande trunfo sempre foi a incrível capacidade de reduzir os adversários ao seu nível de jogo: era um incrível pântano de lodo que não jogava e não deixava jogar. Era a verdadeira imagem do “jogo feio”, da maneira que tentei apresentar num post recente: não é que jogasse de maneira quebrada e desorganizada (não sempre, ao menos), e nem que exercesse o anti-jogo, aquele que tenta tirar o adversário de cena; Ben Wallace era o auge do basquete “disruptor”, aquele que impede a execução do adversário, impossibilitando as jogadas que nosso senso estético acostumou a chamar de “jogadas bonitas”. Ele estava em quadra pra melar tudo, acabar com a graça, deixar tudo horrível e cinza e frio e triste. Mas fazia isso com tanta eficiência que acabava criando uma certa beleza bizarra no processo: ver Ben Wallace jogar era um espetáculo próprio.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Se o Ben Wallace corre na sua direção, abandone tudo porque a vida acaba de perder o propósito”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Big-Ben.jpg[/image]
Seu jogo era tão fora da curva quanto o Pistons pelo qual foi campeão em 2004, um time que se tornou uma exceção a tudo aquilo que acreditamos que uma equipe da NBA precisa fazer para ser campeã. O principal é a questão das estrelas: desde o começo dos anos 2000, todos os campeões da NBA tinham uma grande estrela consagrada ou mais de uma delas. O Lakers (2000, 2001 e 2002) tinha Kobe e Shaq; o Spurs (2oo3, 2005, 2007 e 2014) tinha Tim Duncan, Tony Parker e Manu Ginóbili; o Heat (2006) tinha Wade e Shaq; o Celtics (2008) tinha Garnett, Paul Pierce e Ray Allen; o Lakers (2009 e 2010) tinha Kobe e Gasol; o Mavs (2011) tinha Dirk Nowitzki; o Heat (2012 e 2013) tinha LeBron, Wade e Bosh; e o Warriors (2015) tinha Stephen Curry. O único time fora dessa lista é o Pistons campeão em 2004 alegadamente sem nenhuma grande estrela, com seu cestinha na temporada sendo o Richard Hamilton com míseros 17 pontos por jogo. O único All-Star do elenco na época era justamente Ben Wallace, o homem-que-não-jogava-basquete, vindo de uma temporada em que havia conseguido 15 rebotes por jogo, mas nem 7 pontos por partida.
Ninguém imaginava que um time sem uma grande estrela, com claras dificuldades em pontuar e nenhum jogador para chamar a responsabilidade nos momentos difíceis pudesse ser campeão. Dizem que nas Finais contra o Lakers, que tinha no elenco 4 futuros jogadores no Hall Fama (Kobe, Shaq, Gary Payton e Karl Malone, os dois últimos jogando suas últimas temporadas em Los Angeles por um trocado só pra vencer um título), Shaquille O’Neal falava abertamente nos vestiários como o Pistons era um time menor que não tinha qualquer chance contra o nível de talento que o Lakers tinha dentro e fora das quadras. O único que admitiu recentemente temer o Pistons naquela série foi Rick Fox, ciente de que a defesa adversária poderia ser suficiente para a vitória.
Mas embora ninguém acreditasse, o Pistons tinha clara noção desde o princípio de que ganharia a série contra o Lakers. Billups contou em entrevistas que eles temiam que o Wolves de Garnett ganhasse o Oeste, já que tinham um esquema difícil de lidar, mas que contra o Lakers se sentiam plenamente confortáveis e confiantes de que a defesa em alto nível seria mais do que suficiente. Antes da primeira partida, a comissão técnica do Pistons pediu uma reunião com os jogadores para que se preparassem para varrer o Lakers e para as consequências que essa varrida traria para suas carreiras e vidas pessoais. Um dos motivos para tamanha confiança é que Chauncey Billups sabia que Shaquille O’Neal era um problema defensivo para o Lakers: o pivô, dominante no ataque, não seria capaz de marcar Billups no pick-and-roll e nem Richard Hamilton, que só era acionado em jogadas em que saía cara-a-cara com Shaq nos cotovelos ou na zona morta para arremessos de média distância que o pivô não teria como alcançar. No ataque Shaq era imparável, claro, mas o Pistons optou por marcar todo mundo que não fosse o Shaq e desafiar o Lakers a conseguir vencer com um jogador só que era explorado defensivamente.
O Pistons ganhou tranquilamente – aliás, a tranquilidade daquela equipe era tão marca registrada quanto a defesa – e ninguém entendeu bulhufas do que estava acontecendo. Era o começo dos times explorando os pivôs grandões adversários, desafiando-os a sair do garrafão para marcar arremessos longos. E era o começo de times que defendem de maneira conjunta e não individualmente, e que se preocupam antes em interromper o jogo do adversário ao invés de se preocupar em como conseguir pontos. O Pistons foi a melhor defesa da NBA em 2003 (quando perdeu a Final do Leste para o Nets) e em 2004 (quando foi campeão), e a segunda melhor defesa em 2005, quando a melhor defesa (o Spurs) acabou sendo campeã em cima do Pistons numa série épica de 7 jogos. A defesa do Pistons era tão surreal que na temporada 2003-04 eles bateram o recorde da NBA ao limitar seus adversários a menos de 70 pontos em 5 jogos seguidos – a sequência só foi quebrada quando o Nets, maior rival do Pistons na época, acertou uma bandeja de último segundo para conseguir 71 pontos no placar e VIBROU com isso mesmo perdendo o jogo por VINTE PONTOS.
A NBA se viu obrigada a mudar as regras do jogo para deixar a vida dos defensores mais difícil e inflar artificialmente os placares, mas mesmo assim o Pistons abriu uma porta impossível de se fechar novamente: o Spurs ganhou mais dois títulos nos anos seguintes na base da defesa; o Boston Celtics de Garnett DESENCANOU abertamente do ataque, defendia coletivamente e no ataque IMPROVISAVA quase tudo; o Mavs só ganhou quando montou uma defesa monstruosa centrada em Tyson Chandler, o Ben Wallace branco; o Heat de LeBron era inteiramente focado na defesa e no ataque seguia apenas regras básicas, vivendo constantemente de contra-ataques; o Warriors campeão na temporada passada só se tornou um time “sério” quando abandonou a defesa-peneira de Don Nelson e associou seu ataque feroz com uma defesa capaz de criar o CAOS o tempo inteiro em quadra.
O Pistons foi uma exceção evidente, mas abriu os olhos da NBA para a importância de um estilo “disruptor” de jogo. É fácil olhar as bolas maravilhosas de três pontos do Stephen Curry e esquecer que o Warriors foi campeão tendo a melhor defesa da NBA – e se eles não são a melhor defesa dessa temporada é porque TEM PEGADINHA na estatística, o Warriors tem a melhor defesa de primeiro e terceiro período, o que significa que eles “relaxam” no andar do jogo por motivos de ESTÁ MUITO FÁCIL. Isso significa que o Pistons está num enorme grupo de “filhotes” ou “irmãos” de defesa, caminho hoje unânime rumo ao título.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Onde você não vê estrelas, eu vejo ESTRELA PRA CARALHO”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Pistons-2004.jpg[/image]
O que separa o Pistons dessa patota é mesmo sua ausência de estrelas – algo que a NBA, muito confusa com o título de 2004, tentou arrumar na temporada seguinte levando QUATRO jogadores desse Pistons para o All-Star Game. Algo parecido aconteceu, aliás, com o Hawks de 2014-15, líder absoluto do Leste sem ninguém entender como isso era possível sem estrelas, e que acabou com 4 jogadores no All-Star Game do ano passado. No fundo, Pistons e Hawks são exceções não por não terem estrelas, mas por estarem numa fronteira muito complicada da percepção de quem acompanha NBA. É uma mistura de expectativas erradas, estilo de jogo pouco convencional, minutos ou posses de bola reduzidas, que em conjunto dificultam enormemente nossa capacidade de medir o talento ou o “estrelismo” de um jogador. Estou aqui considerando “estrela” o jogador que impacta um jogo diretamente de maneira tão forte que é capaz de tornar uma derrota em vitória através de suas ações – e o faz continuamente, jogo após jogo, mesmo que os adversários esperem que isso aconteça. A dificuldade daquele Pistons é que Billups PODERIA alterar o rumo de um jogo sempre, mas o time tinha tão poucas posses de bola por jogar devagar que as ações de Billups poderiam não acontecer em nome de que acontecessem ações de Richard Hamilton ou Rasheed Wallace, por exemplo. Não dava pra todo mundo brilhar ao mesmo tempo naquela equipe e já que ninguém ESPERAVA que eles brilhassem, os próprios jogadores não se importavam de não receber os holofotes. No fundo Billups era um mestre dos arremessos decisivos e do controle de ritmo de jogo, Hamilton era um dos melhores arremessadores que a NBA já viu, Rasheed foi um dos jogadores mais completos de sua posição, Tayshaun Prince foi um dos melhores defensores de múltiplas posições da NBA, Ben Wallace foi um dos melhores defensores de garrafão, etc, etc. Mas não tínhamos os números, as estatísticas, as manchetes, as expectativas para julgar e perceber. Aquilo que entendemos tradicionalmente como “estrela” só acontece em circunstâncias específicas dentro dos esquemas táticos específicos. Kevin Durant provavelmente seja o melhor jogador de sua geração, mas quando ele chegou no Thunder recebeu carta branca para arremessar até a mãe, o que lhe rendeu um certo conjunto de confianças, habilidades, expectativas e atenção. Se tivesse sido draftado por um time já vencedor e começado a carreira no banco de reservas, seria diferente. Talvez os números não dessem conta da narrativa de um Durant “estrela inegável”, e ele só fosse parar no All-Star Game depois que seu time estivesse estabelecido no topo da NBA e a gente começasse a PROCURAR o talento que tornou isso possível.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”- Seu pai trabalha na Panco? O meu também!”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Curry-e-Green.jpg[/image]
Stephen Curry, por exemplo, já é um absurdo faz tempo. Draymond Green é o melhor que a geração de pivôs passadores tem a oferecer. Mas foi só nas circunstâncias corretas, com o esquema tático certo, que a gente começou a TENTAR ENTENDER o fenômeno Warriors, como tentamos desesperados entender o fenômeno Pistons em 2004, e aí Curry subiu para o nível de deus e Draymond Green deve certamente ser um All-Star, talvez Defensor da Temporada, coisas assim. Hoje, olhando para o passado utilizando as novas estatísticas que inventamos no presente, descobrimos que o Ben Wallace – aquele cara que não sabia jogar basquete! – era o líder em “Vitórias Produzidas” na NBA desde que chegou ao Pistons na temporada 2000-01. “Vitórias Produzidas”, ou “Wins Produced“, é uma estatística bizarra que leva em consideração os números de um jogador, seu aproveitamento em quadra, compara com os outros jogadores da sua posição na Liga, e tenta encontrar o número de vitórias do time que estão associadas ao rendimento do jogador em quadra. Ben Wallace não era um qualquer, foi o jogador que mais impactava o jogo durante três anos consecutivos, até ser campeão da NBA. A gente é que não sabia olhar – e há tanto mais que talvez hoje não estejamos conseguindo olhar também, até que exploda como uma bola de três de Stephen Curry na nossa cara.