🔒A NBA está ficando menos física?

Na última segunda feira, Isaiah Thomas por algum motivo bizarro achou que seria uma boa ideia parar uma infiltração de Andrew Wiggins com um GOLPE DE CARATÊ no pescoço que desabou o adversário. O resultado foi óbvio, Isaiah Thomas foi expulso imediatamente da quadra. Mas a punição não parou aí: a NBA resolveu multá-lo em 20 mil dólares pela agressão ocorrida ter sido “acima dos ombros”. Em nota oficial, afirmou que trata-se de uma medida padrão para proteger seus jogadores. A machadada pode ser vista abaixo:

 

Não foi o único caso de agressão da semana. No dia seguinte à expulsão de Isaiah Thomas, Miami Heat e Toronto Raptors disputaram uma partida extremamente parelha que, de repente, viu Serge Ibaka e James Johnson trocando socos até um juiz entrar no meio e o bom senso voltar à cabeça.

Imediatamente essas imagens trazem à tona uma discussão antiga: por que a percepção popular é de que essas brigas desapareceram da NBA após um auge nos anos 80 e 90? Por que, dizem muitos, a NBA se tornou “menos física”, menos intensa, menos brigada, com jogadores que supostamente “cavam” faltas e defesas que não podem mais combater fisicamente os pontuadores adversários?

Essa percepção de que a NBA ficou “mole” no começo dos anos 2000 é extremamente popular e continuamente reiterada por jogadores das décadas de 80 e 90. O próprio Michael Jordan disse há pouco tempo atrás que contra as defesas atuais, “menos físicas”, ele marcaria facilmente mais de 100 pontos numa partida. Vários jogadores de sua época afirmaram, aproveitando o embalo, que Jordan poderia ter médias de mais de 40 pontos se jogasse basquete atualmente.

Já discutimos em posts anteriores que a percepção da “velha guarda” de que antigamente se arremessava melhor e que hoje qualquer arremessadorzinho tem sucesso é completamente falha: estatisticamente, nunca se arremessou com tanta qualidade e aproveitamento quanto nos dias atuais. Será, então, que existe algo de verdadeiro na afirmação de que a NBA era mais “física” nas décadas de 80 e 90 ou também se trata de uma má percepção de uma geração com dificuldades para aceitar os novos tempos?

O primeiro passo, certamente, é definir exatamente sobre o que estamos falando. Do que se trata esse conceito de “físico”, afinal? Estamos falando da força, dos músculos, da capacidade de explosão e aceleração, de corpos mais capazes de impor e de receber impacto? Se é disso que estamos falando, então dizer que os jogadores da NBA contemporânea são mais fracos e menos capazes de sofrer impacto físico colocaria o basquete como única exceção esportiva num mundo em que os novos atletas, mais bem preparados e amparados pela ciência moderna, quebram todos os recordes previamente estabelecidos. São poucos os recordes no atletismo com mais de 20 anos – a esmagadora maioria foi estabelecida nessa década. Na natação, a situação é ainda mais extrema: nenhum recorde mundial em vigor foi alcançado antes de 2008, todos eles tem no máximo 10 anos.

Esse é o motivo pela NBA estar sendo tomada pelos “unicórnios”, jogadores com mais de 2,11 m de altura que conseguem correr, pular e arrancar como se fossem armadores minúsculos. Nunca a tecnologia e a ciência esportiva foram tão avançadas como são hoje. É claro que tivemos espécimes absurdos no passado – Shaquille O’Neal transcende, fisicamente, qualquer era – mas hoje em dia os jogadores certamente são mais uniformemente condicionados e capazes fisicamente simplesmente porque essa é a tônica em qualquer esporte. Os grandes jogadores do passado certamente se beneficiariam dos treinos físicos e dos nutricionistas que existem hoje em dia e provavelmente teriam sido AINDA MELHORES, mas o livre acesso a esses serviços nesse momento do esporte faz com que seja quase impossível encontrar um atleta em má condição física, ao contrário do que víamos cotidianamente em décadas passadas – em que muitos atletas até FUMAVAM antes e depois dos jogos.

Certamente não deve ser desse tipo de “físico” a que a velha guarda se refere, portanto. Devem estar falando da agressividade, da possibilidade nas regras de aumentar o contato, de colocar as mãos nos adversários e de fazê-lo sofrer para pontuar. Em geral isso está relacionado com o banimento do “hand check” nos anos 2000, tornando falta o ato de “encontrar” seu adversário com as mãos para saber onde marcá-lo ou impedir que ele corte rapidamente ao seu lado. Dessa maneira, tentar parar um jogador hoje em dia que está batendo para a cesta se torna muito difícil, transformando qualquer contato em contato faltoso e premiando os pontuadores atuais com dezenas de lances livres. Com esse tipo de marcação, Jordan poderia alcançar 100 pontos – segundo ele próprio, claro.

Essa afirmação tem alguns problemas sérios. O primeiro é que embora nos lembremos de faltas duras nos anos 80 e 90 como se fossem normais, o número de faltas MARCADAS era também muito maior. Na temporada 1986-87, Michael Jordan teve 11.9 lances livres tentados por partida – praticamente DOZE. Como efeito de comparação, James Harden – o rei em cobrar lances livres porque ele explora falhas defensivas dos adversários e justamente aquele banimento do “hand check” – teve 11.7 lances livres por jogo como máximo de sua carreira. LeBron James, talvez o jogador mais agressivo fisicamente de sua geração, teve um máximo de 10.3 lances livres por jogo. Na temporada 1986-87 em que Jordan bateu seu recorde de lances livres, cada time da NBA arremessou uma média de 30.5 lances livres por jogo. Na temporada atual são apenas 21.8 lances livres por partida; na temporada passada foram 23.1. Isso aparece no número de faltas também: eram 24.5 faltas por jogo em 1986-87 contra 19.9 na temporada atual. Ou seja, arremessam-se menos lances livres porque cometem-se menos faltas hoje em dia do que na época da NBA “mais agressiva”. Na prática isso significa que as defesas se ADEQUARAM, porque dar muitos lances livres para os adversários é dar pontos fáceis. Se cobrasse menos lances livres hoje em dia, Jordan faria MENOS pontos, não mais. Sua lógica não faz sentido.

Outro ponto sobre essas defesas “agressivas” é lembrar que nos anos 80 e 90 era proibida a defesa por zona. Isso significa que a defesa era estritamente individual, um jogador era o único responsável por parar um adversário e se fosse deixado para trás precisava recorrer às faltas ou tomar cestas fáceis. Assistir aos jogos dos anos 90 (e mais ainda dos anos 80, quanto o ritmo era tão ou mais acelerado do que é hoje) é ver um festival de jogadores deixando seus marcadores para trás e infiltrando livres, sem nenhum pivô adversário ou defensor na cobertura para pará-los. As faltas e o jogo “duro” não eram sinal de boa defesa, mas sim um sinal de que a defesa era ruim e muitas vezes precisava “apelar” para um último recurso. Sem colocar as mãos num adversário seria impossível pará-lo num duelo um-contra-um, sem nenhum tipo de marcação por zona para cobrir uma infiltração.

Hoje em dia, armadores que batem para dentro da cesta não são recebidos com faltas, mas sim com MARCAÇÃO DUPLA OU TRIPLA num garrafão amontoado de gente que inclui pivôs e outros jogadores que são maiores e mais fortes do que os armadores tradicionais. A marcação por zona tornou o ato de pontuar muito mais complicado, especialmente dentro do garrafão. Para ajudar na comparação, peguemos de novo a temporada 1986-87, quando Michael Jordan liderou a NBA com 37.1 pontos por jogo. É ponto que não acaba mais! Na ocasião, um time arremessava cerca de 84 bolas de 2 pontos por jogo. Hoje são 56.7, não apenas porque arremessar de 3 pontos com a eficiência maior da atualidade compensa mais, mas também porque é MAIS DIFÍCIL infiltrar. Os defensores são mais fortes, mais rápidos e recebem AJUDA constante das defesas por zona e dos jogadores de garrafão. Ver jogos dos anos 80 é ver como a defesa por zona transformou a NBA dos anos 2000 num ambiente muito mais inteligente, muito mais técnico, mas também muito mais HOSTIL para os pontuadores, que precisam encontrar maneiras nada tradicionais de serem efetivos.

Certamente Michael Jordan sofreu nos anos 80 com estratégias como a “Jordan Rules”, um plano de enchê-lo de porrada toda vez que ele deixasse um marcador para trás e tivesse caminho livre para a cesta. Mas isso resultou em Jordan tendo uma média de lances livres nos Playoffs de 9.9 por partida, maior até do que a de LeBron James (9.1, mesmo com LeBron sofrendo a mesma tática nos Playoffs de 2009). A média maior de lances livres não reflete uma defesa mais dura, pelo contrário: reflete uma defesa com menos recursos. Contra LeBron, o Spurs soube montar uma defesa por zona que o afastou do garrafão nas Finais de 2007 e não teve que colocar a estrela adversária na linha de lances livres.

Será que nos lembramos da agressividade da defesa como algo mais “físico” e positivo apenas por conta das faltas duras, que geravam brigas e expulsões? O registro mais antigo que encontrei do número de expulsões foi da temporada 1995-96, com 74 expulsões ao longo de sua duração. São números virtualmente idênticos aos da temporada passada, que contou com 69 expulsões. A média é praticamente a mesma ao longo dos últimos 15 anos e não nos permite afirmar que as faltas ficaram mais ou menos duras – parecem, ao menos, gerar o mesmo número de punições.

Deixo então meu palpite: o conceito de “jogo físico”, extremamente genérico, é facilmente confundido com defesas despreparadas que apelavam para faltas, com o “hand check” que se implementado hoje tornaria as defesas IMPENETRÁVEIS por conta da defesa por zona, e também pela discrepância de força entre os jogadores – faltas de um jogador mais forte em um jogador mais fraco, comuns nos anos 80, parecem mais “violentas”, enquanto na NBA atual é difícil ver jogadores com físicos tão distantes. O número de faltas marcadas por jogo DIMINUIU, é mais difícil chegar na linha de lances livres hoje em dia, infiltrar é sinônimo de trombar com mais jogadores do que nunca, e o número de expulsões não variou em nada. Talvez a única mudança REAL em termos dessa “fisicalidade” seja na imagem da Liga, e é aqui que acredito estar o PONTO CHAVE.

Depois da briga entre os jogadores do Pacers e os jogadores do Pistons em 2004, numa partida em que Ron Artest foi até a torcida e atacou um torcedor de Detroit, a NBA resolveu transformar sua IMAGEM. Passou a punir as brigas e os socos não apenas com expulsões, que sempre existiram, mas com multas pesadas que impactavam o bolso dos atletas e com “ganchos” de até uma temporada inteira. A NBA estabeleceu um código de vestimenta para se afastar da cultura dos “guetos”, tentou desligar-se da associação popular com o hip-hop e as “gangues”, e tem implementado uma série de políticas internas para impedir os conflitos. Isso inclui punir jogadores que saiam do banco de reservas para participar de confrontos e até avaliar contato excessivo em longos e demorados replays para decidir pela expulsão de algum jogador. No fundo, pouco mudou nas quadras – os jogadores ainda fazem faltas duras, ainda brigam e ainda discutem, mas agora tentam não ser multados e portanto não abandonam o banco de reservas e evitam trocar socos. Mesmo no vídeo que abre esse post, Ibaka e James Johnson desistem de se socar logo depois do primeiro impulso. A NBA passa uma impressão de estar mais sob controle, os jogadores procuram menos justiça com as próprias mãos quando sabem que a jogada será revista num monitor e que o agressor pode ser punido posteriormente se a imagem se tornar pública através da televisão e da internet. Mas nada disso impede as defesas da NBA de serem as melhores e mais preparadas de todos os tempos, e nem impede Isaiah Thomas de distribuir um GOLPE DE CARATÊ eventual. O poder físico desses jogadores e a intensidade das defesas só aumenta, mas o jogo parar para conferir a agressão no replay dá uma sensação de que são todos “moles”, fugindo do contato. Pois a NBA está apenas fugindo do conflito, mais ligada à ética e à moral atual. Mas isso parece ter tido pouco impacto REAL nas quadras e aparece mais na narrativa do que nos números de verdade. Segundo eles, Michael Jordan não marcaria 100 pontos contra as defesas contemporâneas – quer dizer, a menos que fugisse do contato, das defesas por zona e do garrafão, e se tornasse um exímio arremessador de três pontos.


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