Diz a lenda que transformar uma equipe ruim em uma equipe boa na NBA é fácil, difícil mesmo é transformar uma equipe boa em uma equipe ótima. Como os piores times tem acesso facilitado às melhores escolhas de draft e um punhado de jogadores minimamente consistentes são capazes de tornar qualquer equipe rapidamente digna em quadra, a passagem de equipes ruins para equipes médias é bastante frequente na NBA. Dificilmente vemos equipes passarem muitos anos consecutivos no final da tabela de classificação, salvos os casos de péssima administração ou nenhum planejamento. Basta ver como nos últimos anos a Conferência Leste, que era motivo de piada na NBA, conseguiu ser tomada por uma enxurrada de boas equipes construídas na base de contratações modestas, escolhas de draft, bons técnicos e muita coletividade. Nesse momento, apenas 6 equipes da Conferência Leste possuem aproveitamento menor do que 50% e é perfeitamente possível que apenas 4 delas acabem a temporada nessa condição. O problema da Conferência, entretanto, está lá no topo da tabela: apenas duas equipes possuem aproveitamento acima dos 55%, mantendo o Leste dominado por duas super-equipes, Cavs e Raptors. Planos para transformar essas equipes todas emboladas no meio da tabela em potências da Conferência não faltam, mas é evidente que esse é um passo mais difícil – e raro – de ser alcançado. Conseguir se classificar para os Playoffs já coloca qualquer equipe entre a elite da Liga, mas é a passagem para candidato a título que intriga general managers, técnicos e analistas. Criar super-equipes ainda é uma ciência inexata visivelmente mais complexa do que arrancar times da lama.
Quando Steve Kerr assumiu o Golden State Warriors, a equipe havia conseguido 51 vitórias e 31 derrotas na temporada anterior sob comando do técnico Mark Jackson, suficiente para se classificar em sexto lugar para os Playoffs. Era óbvio que o Warriors era um time DE VERDADE – mas a eliminação na primeira rodada para o Clippers também tornava evidente que o time não era BOM O SUFICIENTE. Por isso o lema de Steve Kerr ao tomar as rédeas da equipe era “Good to Great”, ou seja, “bom para ótimo”. Sua função era dar o próximo passo, aquele mais difícil, complexo e incompreendido rumo à grandeza.
Curiosamente, seu plano para elevar o time ao próximo nível era um plano tático que levava para o terreno das quadras o lema cunhado para buscar uma melhora fora delas. Se o “bom para ótimo” se referia à melhora da equipe como um todo, Steve Kerr ressignificou o mantra para que fizesse referência aos TIPOS DE ARREMESSOS que sua equipe deveria buscar em quadra. O conceito é simples: convencer os jogadores a abrir mão de arremessos bons, que eles fossem capazes de converter, em troca de arremessos ótimos, que fossem quase impossíveis de errar. Isso significa reprogramar totalmente o modo de pensar dos jogadores, treinados para dar o máximo de arremessos que sejam capazes de converter e pouco dispostos a abrir mão desses arremessos em busca de oportunidades imperdíveis, que são mais raras e inconstantes. Basta pensar um pouco em nossas memórias históricas com o basquete: lembramos de cestas que eram possíveis de serem convertidas, mas pouco ou nada prováveis. Ninguém duvidava da possibilidade de que Michael Jordan acertasse “o arremesso”, seu lendário “The Shot”, muito menos o próprio Michael Jordan. Mas a graça desse momento histórico está no fato de que a cesta não era provável, com Jordan tendo que arremessar desequilibrado e parando no ar para esperar um possível toco passar pela sua área de arremesso. É um espetáculo de controle corporal, contorcionismo e IMPROBABILIDADE.
Se Jordan tivesse rejeitado esse arremesso e passado a bola para uma bandeja simples de alguém, muito provavelmente o momento jamais seria lembrado. Aí está a dificuldade: olhar para um jogador que pode acertar um arremesso difícil, que SABE ser capaz de acertar um arremesso difícil, e pedir para que ele não o faça; para que ele encontre um arremesso mais fácil, ou alguém em condições de um arremesso mais fácil. Isso é particularmente difícil porque estamos falando dos melhores jogadores do planeta, que são virtualmente capazes de acertar arremessos de qualquer lugar da quadra com qualquer tipo de marcação sobre suas cabeças. Convencê-los de que ainda assim é melhor não arremessar – uma estranha recusa, no estilo do “acho melhor não” do personagem clássico Bartleby, do romance de Herman Melville – é uma tarefa árdua. No romance, Bartleby diz “acho melhor não fazer” para ordens simples do seu trabalho, ordens que são POSSÍVEIS de serem realizadas, banais o bastante para que todos saibam que Bartleby é capaz de fazê-las, e é justamente por serem possíveis que essa recusa causa tanto estranhamento. Numa quadra de basquete em que qualquer cesta é POSSÍVEL para qualquer jogador, em que todo jogador profissional é capaz de realizar todas as ações necessárias numa quadra, a recusa também é um ato de quebra, de estranhamento, de ruptura. Steve Kerr quer que os jogadores “achem melhor não arremessar” mesmo que eles possam, que eles sejam capazes do arremesso. Apenas essa mudança de mentalidade é capaz de fazer com que arremessem apenas quando aquele é o arremesso IDEAL, aquele que estatisticamente não será perdido. É por isso que Stephen Curry arremessa a 3 passos da linha de três pontos: seu modo de jogo foi alterado por essa ruptura, ele foi obrigado a pensar – e jogar – “fora da caixinha”, dando arremessos onde a defesa não estará, de onde ninguém espera, de onde ele quase não será capaz de errar.
A implantação dessa mentalidade no Warriors foi facilitada pelo poder do lema: o “bom para ótimo” se refere a dois ambientes distintos (a melhora da equipe na tabela e o estilo de jogo em quadra) e faz instantaneamente a relação entre ambos. Em apenas três palavras (“Good to Great”) os jogadores são lembrados de que ao abrir mão dos arremessos que são capazes de acertar em nome de arremessos que sejam incapazes de errar, imediatamente tiram a equipe do grupo de times medianos e a erguem rumo à elite do basquete. É essa meta-melhora, a melhora que fica “acima” da melhora do tipo de arremesso, que FORÇA e RECOMPENSA a mudança do tipo de arremesso. Toda vez que algum jogador dá um arremesso possível mas improvável, o “Good to Great” está ali para lembrá-lo de que sua equipe não será grande se ele continuar cometendo esse engano. Por trabalhar em dois níveis, o lema força a ação individual na direção de um ganho coletivo. É assim que jogadores profissionais, criados para ler e reagir ao jogo da maneira mais próxima do que podemos chamar de “instinto”, podem repensar suas práticas e abrir mão de seus atos impensados em nome de um objetivo externo em comum.
A chegada de Kevin Durant ao Warriors acaba sendo uma excelente oportunidade de ver como esse modelo funciona porque Durant passou toda sua carreira no Thunder dando todos os arremessos que julgasse capaz de acertar, forçando bolas por cima dos seus marcadores e apenas não participando das finalizações quando a bola, compartilhada com seu colega de equipe Russell Westbrook, não lhe chegava nas mãos. No Warriors, toda essa mentalidade teve que ser REPROGRAMADA, com Durant sendo retirado das ações automáticas e impensadas e colocado dentro dessa leitura contextual e coletiva. O resultado, a princípio, foi muito engraçado: Durant, tendo que pensar antes de arremessar, abriu mão de arremessos óbvios, imperdíveis, para colocar a bola na mão de companheiros em situação pior do que a dele. Foi apenas um coro coletivo, envolvendo Steve Kerr e seus companheiros de equipe pedindo que arremessasse com mais frequência, que deu a Durant a confiança para ler sua situação e julgar sua real capacidade de acerto.
Todd Whitehead, do “Nylon Calculus“, tem feito um trabalho fantástico analisando dados do Warriors nessa temporada e recentemente coletou num gráfico incrível os tipos de arremesso que Durant está dando no Warriors e os que dava no Thunder, com o aproveitamento de ambos os casos.
What an amazing Durant shot chart from @CrumpledJumper https://t.co/g2SmE5Hzwk pic.twitter.com/b9hme2itv3
— Div B (@statcenter) December 7, 2016
A extensão vertical da tabela é a quantidade dada de cada tipo de arremesso. Esses arremessos estão divididos de acordo com as porcentagens da carreira de Durant em “arremessos bons”, “arremessos muito bons” e “arremessos ótimos”. A extensão horizontal da tabela são os pontos que Durant consegue, em média, para cada posse de bola em que tenta esse tipo de arremesso. À esquerda temos os números de Durant na temporada passada com o Thunder e à direita temos os seus números novos com o Warriors até agora.
Enquanto os “arremessos muito bons” continuam sendo dados na mesma frequência (apenas 18% das vezes), a diferença nos outros graus de arremesso da temporada passada para essa é gritante. Com o Warriors, 41% dos arremessos de Durant são “ótimos”, contra apenas 29% em seus tempos de Thunder. Isso porque o Warriors coloca o Durant em situações melhores de arremesso, mas também porque Durant entendeu que é NESSAS situações em que ele deve arremessar – transição, cortes em direção à cesta, de costas no garrafão ou com a bola lhe sendo entregue em mãos por um jogador que atrai a marcação. Jogadas em que Durant está sendo isolado no mano-a-mano diminuíram consideravelmente, ainda que Durant seja o jogador escolhido pelo Warriors quando essa jogada se faz IMPRESCINDÍVEL, e seus pontos nessas ocasiões subiram bastante – em parte porque o Warriors tem mais armas que atraem a marcação, dando mais liberdade para Durant, mas em parte porque são jogadas pedidas nos momentos certos, contra defesas específicas, e não a jogada padrão apenas porque Durant é capaz de converter as cestas.
Ninguém duvida que Durant possa converter qualquer tipo de arremesso em qualquer tipo de situação, ele é um dos jogadores mais completos e fisicamente dominantes da NBA. Mas abrir mão desses arremessos possíveis fez com que ele finalmente pudesse se focar nos arremessos em que é mais eficiente – e com muito, muito menos esforço. Nesse momento, quase 48% dos arremessos de Durant são dados sem que ele coloque a bola no chão, ou seja, sem que ele dê um drible sequer. É assim que ele tem um aproveitamento de 53% nos arremessos – recorde disparado da carreira – com mais de 40% de acerto nas bolas de três pontos. Os arremessos que ele dava cotidianamente no Thunder, agora Durant “acha melhor não”. Os arremessos que ele de fato dá são os impossíveis de errar, aqueles que ele não pode perder sob pena de ser um jogador menor. É assim que um jogador bom torna-se um jogador ótimo; é assim que um time bom torna-se um time ótimo. Por vezes, é preciso achar melhor não fazer aquilo que podemos fazer em nome de algo melhor – de algo verdadeiramente “ótimo”.