Na Copa do Caribe de Futebol em 1994, a seleção de Barbados enfrentou Granada numa partida da fase de grupos. Barbados precisava vencer por dois gols de diferença para se classificar para a fase de mata-mata e passou a administrar o placar assim que conquistou o 2 a 0 no placar. Faltando 7 minutos para o final do jogo, Granada conseguiu marcar um gol, passando a ser a equipe classificada para a próxima fase. Barbados tentou marcar um gol desesperadamente até os 42 minutos do segundo tempo, quando perceberam que a tarefa era quase impossível no pouco tempo que restava e resolveram então simplesmente MARCAR UM GOL CONTRA. Por que isso aconteceu?
A culpa não foi da frustração, mas sim do regulamento do torneio. Durante a Copa do Caribe de 1994, todas as partidas tinham a obrigação de terminar com um vencedor mesmo durante a fase de grupos. Isso significa que jogos empatados deveriam ir para a prorrogação com gol de ouro – o primeiro a marcar um gol seria considerado o vencedor. Para “valorizar” esse gol épico marcado na prorrogação, o regulamento estipulou que todo gol de ouro valeria dois gols no saldo total da equipe. Parecia uma regra que melhoraria a experiência do torcedor: jogos sem empate, prorrogações épicas e gols de ouro valorizados pelas equipes e pelo torneio.
O resultado, entretanto, saiu completamente do planejado: incapaz de conquistar um gol com apenas 3 minutos restantes na partida, Barbados resolveu simplesmente marcar um gol contra, empatar o jogo forçando-o à prorrogação, e lá ter muito mais tempo para conseguir um gol que, por valer dois, daria o saldo necessário para a equipe se classificar para a próxima fase.
Acontece que Granada percebeu que caso TAMBÉM fizesse um gol contra durante o tempo regular, perderia o jogo mas não daria ao adversário a diferença de dois gols necessária e, portanto, seria Granada a se classificar. Barbados teve que impedir que o time rival marcasse um gol contra, mas Granada podia também simplesmente marcar um gol a favor para conseguir a classificação da mesma maneira. Por 3 minutos, Barbados viveu a MAIS BIZARRA SITUAÇÃO DA HISTÓRIA DO FUTEBOL ao ser obrigado a defender seu próprio gol e o gol do adversário AO MESMO TEMPO para conseguir levar o jogo para a prorrogação. Tiveram sucesso nessa empreitada defensiva grotesca, marcaram o gol de ouro em seguida e foram para a próxima fase como se nada tivesse acontecido.
Esse caso absurdo mostra bem a distância que existe entre os responsáveis por criar as regras (e por toda a questão burocrática que torna o esporte profissional possível) e os responsáveis por jogar as partidas de fato. Enquanto os dirigentes estão interessados em tornar o esporte DIVERTIDO para o público e, consequentemente, RENTÁVEL, os jogadores ao se comprometerem com as regras do esporte só podem levar uma única coisa realmente a sério: a busca pela vitória.
Quando as regras da Copa do Caribe foram modificadas, a intenção era entregar ao público um espetáculo “melhor”, uma experiência de completude que o eventual empate não é capaz de entregar. O fato de que partidas de futebol podem tradicionalmente terminar empatadas sempre foi um enigma incompreensível para algumas culturas que esperam de seus esportes uma resolução, uma narrativa com começo, meio e fim. Partidas de basquete possuem quantas prorrogações forem necessárias para que possamos decretar um vencedor. Não por acaso os Estados Unidos sempre adotaram um esquema alternativo em suas partidas de futebol, com times que terminem empatados se enfrentando em disputadas de pênalti que na verdade começam no MEIO DO CAMPO, mesmo em campeonatos por pontos corridos.
Indiferentes à sensação de “completude” ou “satisfação” do público, entretanto, os jogadores estão em campo para ganhar. Existe uma região “cinza” em que a ética dos próprios jogadores deveria ser capaz de impedir alguns eventos (machucar um adversário porque a punição compensará, quebrar uma regra de uma maneira que essa infração não seja perceptível, etc), mas tirando esses obstáculos morais, cabe a cada jogador explorar as regras, entendê-las e dobrá-las da maneira que mais lhe aproximar da vitória. É daí que surgem as enterradas, os euro-steps, o corta-luz, etc. São todos apropriações das regras, utilizando-as de maneiras não previstas, de modo a aumentar suas chances de vencer jogos. Ao analisar as regras, o Golden State Warriors achou melhor arremessar mais bolas de três pontos; Barbados achou melhor fazer um gol contra; o San Antonio Spurs achou melhor descansar seus jogadores.
Ninguém vai a um jogo de futebol querendo ver seu time marcar um gol contra de modo a ter mais chances de se classificar. Ver um time ter que defender OS DOIS GOLS AO MESMO TEMPO é uma aberração pela qual nenhum torcedor do planeta deveria passar. O que nos atrai no esporte é justamente o fato de que os jogadores e suas equipes estão tentando quebrar seus próprios limites em busca da vitória. Vê-los se superando é catártico e inspirador, cria lembranças inesquecíveis e forja lendas do esporte. O problema é que essas coisas maravilhosas só acontecem porque eles estão buscando a vitória, não porque vai ser inspirador, bonito, inesquecível ou qualquer coisa desse tipo. O esporte é um ambiente à parte, lidando com regras próprias, e todas as coisas maravilhosas que nos atingem são apenas EFEITO COLATERAL da tentativa de vencer de todas as partes.
O paradoxo da questão é que às vezes o que é melhor para vencer não é nem um pouco memorável ou inspirador, sendo apenas uma leitura metódica e fria das regras de modo a tirar delas o melhor proveito possível. É o caso do gol contra, de descansar jogadores ou até mesmo de perder de propósito, entendendo que a vitória – maior e mais importante – virá depois como decorrência desses fatos. O que todos esses eventos possuem em comum é serem pequenas derrotas momentâneas em busca de uma vitória que só se concretizará num tempo futuro.
No caso de Barbados, um pedaço do jogo foi ESTRAGADO por uma tentativa de mini-derrota momentânea em nome de uma promessa de possível vitória na prorrogação, cerca de 15 minutos depois diante dos olhos dos mesmos torcedores que estavam no estádio. No formato atual da NBA, entretanto, as tentativas de mini-derrotas podem estar mirando em vitórias daqui a meses, nos Playoffs, ou daqui a anos, como o caso do Sixers e seu plano de acumular escolhas de draft. Os torcedores não conseguem ver essa “partida de longuíssima duração” e, caso consigam, talvez não estejam lá para aproveitar sua resolução. Quando um torcedor vai ver uma partida e todas as estrelas estão descansando, ele não estará necessariamente de volta para ver os resultados disso, com os jogadores descansados jogando ainda melhor – para isso, ele precisaria comprar um novo ingresso caríssimo para o ginásio!
A preocupação de Adam Silver, comissário da NBA e responsável por tornar o esporte o melhor entretenimento possível, é legítima. Seu interesse é continuar tornando a NBA um PRODUTO cada vez mais desejável e lucrativo. As mudanças de regras que aconteceram massivamente nos últimos 15 anos tiveram todas a intenção de tornar o basquete americano um objeto melhor de consumo. Mas precisamos entender que essas decisões sobre o jogo acabam causando impactos diversos DENTRO do jogo, sendo estudadas e utilizadas pelas equipes de maneira a aumentarem suas chances de vitória, não de vender melhor a si mesmos como produtos. A intenção da NBA era que o público se divertisse mais com placares mais elevados, mas o efeito colateral disso foi o aumento de faltas marcadas, times explorando a linha de lances livres, a exposição da incapacidade da arbitragem de apitar tantas faltas com a mesma constância e critério, e o aumento da duração dos jogos. O público agora reclama das faltas, da arbitragem e da quantidade de tempo “morto” nas partidas, todos efeitos colaterais da tentativa de tornar o jogo mais “divertido”.
Isso nos mostra que as conversas preliminares de Adam Silver de multar os times que descansem seus jogadores – ou ao menos de multar pesadamente os times que não avisem do descanso com antecedência suficiente para os fãs e as redes de televisão se reprogramarem – são completamente inúteis. Não adianta punir um comportamento que tem como intenção vencer partidas, afinal esse é o motivo pelo qual VEMOS O ESPORTE. É preciso entender quais regras e estruturas, cuja intenção era tornar o esporte mais divertido ou acessível ou vendável ou o que seja, acabam levando os times a preferirem descansar seus jogadores.
Não adianta punir os times que fizerem gols contra, seria ridículo, afinal é uma fronteira difícil delimitar quando o gol contra foi intencional, quando não foi, quando é benéfico, quando não é, etc. Isso só faria quem precisa de um gol contra aprender a FINGIR MELHOR. Da mesma maneira, multar um time que descansa jogadores só faria com que eles passassem a esconder os motivos pelos quais os jogadores não estão jogando, alegando pequenas lesões, indisposições ou o migué médico universal, VIROSE. Pra resolver o problema da Copa do Caribe é só acabar com a prorrogação em fase de grupos ou fazer o gol de ouro valer apenas um gol mesmo ao invés de dois.
No caso da NBA, as regras estruturais que levam os times a descansar jogadores são mais complexas, passando basicamente pelo tamanho da temporada (82 jogos) e o fato de que ao menos seu último terço é completamente desnecessário para uma parcela considerável das equipes. Os times que já estão classificados, que não se importam suficientemente com o mando de quadra ou que não estão em disputa real por colocação ganham mais por descansar jogadores do que por colocá-los em quadra. Não é questão de que “LeBron poderia jogar”, mas sim de que há mais vitórias a longo prazo com ele sentando (especialmente quando a equipe participa de jogos consecutivos) do que ficando em quadra e tentando garantir a primeira colocação do Leste. Esse formato é ruim para outras coisas que não apenas o público: ela atrapalha a tentativa de “condições iguais” a que todos os times devem ser colocados numa competição esportiva quando um time lutando por uma posição acaba enfrentando um time que está descansando suas estrelas porque o campeonato já não lhe faz mais sentido. Soluções teriam que questionar toda a estrutura de regras do torneio, desde o número de partidas ao funcionamento das rodadas, em que alguns times jogam mais partidas do que outros durante determinados intervalos de tempo. Além disso, há ainda a separação por Divisões e Conferências, que ajuda alguns times e atrapalha outros, levando a um desequilíbrio que eventualmente, no final da temporada, faz com que alguns times queiram descansar seus jogadores enquanto outros não podem sequer cogitar essa hipótese.
Culpar os times, os jogadores, os donos e os técnicos é uma saída simples, tola e que ignora o fato de que esportistas estão, por definição, tentando ganhar jogos. É estéril tentar punir os comportamentos que não são lucrativos sem entender quais são as regras que criaram esses comportamentos. Para ser verdadeiramente efetivo, esse questionamento sobre o valor do espetáculo da NBA deve ser capaz de reconsiderar toda a estrutura de regras da Liga – algo que a ideia de lucro e diversão ainda teme fazer, na ânsia de maximizar o número de jogos e o lucro deles proveniente, sem perceber que são a causa de uma série de efeitos colaterais que DIMINUEM o lucro e a diversão. É um paradoxo no qual ninguém quer enfiar verdadeiramente a mão.