Quando iniciamos nosso projeto de assinaturas em outubro do ano passado, colocamos como uma de nossas metas mais ousadas a produção de um livro com textos inéditos sobre a NBA pós-Jordan, de 1999 até os dias atuais. Esse livro já era um sonho antigo, em que juntaríamos textos atemporais capazes de apresentar os momentos mais importantes, marcantes e significativos da NBA nos últimos 15 anos para além do que aconteceu puramente na quadra, abordando os impactos culturais de momentos pontuais.
Nossa intenção era que o livro funcionasse como um pequeno museu, em que algum momento específico é descrito e através dele é possível espiar indiretamente os rumos de um jogador, de uma franquia, de uma cultura ou do esporte. Ao invés de listar a carreira completa dos grandes nomes, nossa proposta era analisar um pequeno evento desse jogador e a partir dele traçar as linhas que possibilitem entender toda sua passagem pela NBA.
Obviamente, como ocorreu com muitos dos projetos do Bola Presa no último ano, nós subestimamos as dificuldades da empreitada. Para começar, esperávamos que a meta que possibilitaria o livro levasse mais tempo para ser alcançada, de modo que fomos pegos de surpresa. Além disso, outros projetos estavam na fila e tiveram suas próprias dificuldades para serem realizados, alguns por questões técnicas e de equipamento, outros por simples questão de tempo. A verdade é que não tínhamos como prever os ajustes que nossas vidas exigiriam para viabilizar o Bola Presa em sua nova versão; tivemos que escolher elementos para priorizar e ao longo de toda a temporada regular, a escolha óbvia foram os textos abertos e os exclusivos para assinantes, além dos podcasts semanais e dos podcasts mensais apenas para os assinantes. Nas férias da NBA, tivemos que correr atrás de organizar nossa vida fora do blog que teve que ficar de lado ao longo da temporada, incluindo nossa vida profissional “paralela”. Nem sempre é possível o melhor equilíbrio: nessas férias, infelizmente, os posts fechados minguaram um pouco, embora a produção de conteúdo tenha se mantido quase sempre constante.
Conforme nos aproximamos de uma nova temporada da NBA ao fim desse mês, as notícias sobre o Bola Presa são promissoras: não apenas o ritmo de postagens vai retornar ao seu modelo habitual, com 5 ou 6 posts por semana, mas também graças ao apoio ininterrupto de nossos assinantes poderemos nos dedicar ainda mais ao blog, caminhando rapidamente na direção de uma dedicação INTEGRAL E EXCLUSIVA num futuro muito próximo.
O primeiro resultado desse futuro que se aproxima é que já temos alguns capítulos prontos de nosso livro! Para mostrar o espírito do projeto, separamos uma versão inicial do capítulo 8 a respeito da primeira partida entre Yao Ming e Shaquille O’Neal ocorrida no dia 17 de janeiro de 2003. Com a partida como tema, encontramos espaço para analisar a carreira dos dois jogadores e até mesmo, num breve anexo ao final, algumas experiências desse que vos escreve.
Espero que aproveitem essa espiada inicial nesse projeto que estamos fazendo com tanto carinho e aproveitem para deixar sugestões, reclamações e comentários que possam nos ajudar a direcionar melhor nosso futuro livro! Aguardem mais espiadas e novidades muito em breve.
Mais uma vez, muito obrigado a todos os nossos assinantes e apoiadores, e vida longa ao Bola Presa!
Em 2003, após ganhar três títulos seguidos com o Los Angeles Lakers, Shaquille O’Neal já havia se consolidado como o jogador mais dominante da sua geração.
Na prática, isso significava que nenhum jogador ou equipe era capaz de pará-lo. Enfrentar Shaquille O’Neal exigia mudanças drásticas na estratégia defensiva e jogadores exclusivamente dedicados a miná-lo com faltas, forçando o pivô à linha de lances livres, seu único ponto fraco. É possível argumentar que O’Neal é diretamente responsável pela carreira de inúmeros jogadores grandes e não muito talentosos que conseguiam emprego na NBA apenas como corpos dispostos a estapear o dominante pivô. Nenhum adversário era capaz de contê-lo; dificultar suas atuações era sinônimo de abrir corredores para que todo o restante do elenco do Lakers pudesse vencer o jogo facilmente. O quarto título de campeão parecia simples questão de tempo.
Essa facilidade em quadra explica a empolgação do público com a chegada de um novo oponente – Yao Ming, o pivô chinês que na época media 2,27m de altura – e, ao mesmo tempo, justifica a irritação e desdém de Shaquille O’Neal com um jovem adversário que ainda não provara nada. Yao Ming acabara de ser escolhido como a primeira escolha do draft da NBA graças ao seu tamanho impressionante, habilidade nos arremessos de curta e média distância e uma velocidade na corrida desproporcional à sua altura, mas nenhum desses atributos havia se transformado em conquistas significativas numa quadra de basquete. Com passagens exclusivamente pela seleção de seu país e por um time do campeonato nacional chinês, Yao colecionava mais partidas discretas do que momentos de genialidade. Seu potencial era o que intrigava as equipes da NBA, de modo que o Houston Rockets apostava todas as suas fichas na possibilidade de um sucesso futuro, não de vitórias imediatas. Para sermos sinceros, a curto prazo o maior interesse da equipe de Houston era entrar em definitivo, como marca, no mercado chinês, vendendo camisetas e bonés. Os resultados em quadra poderiam esperar, mas o público já estava pronto para encarar Yao Ming como única esperança de fazer frente a Shaquille O’Neal. Para alguém consagrado, entretanto, essa esperança soava ofensiva, como se qualquer um, só porque é alto, pudesse ser suficiente para parar sua técnica, sua inteligência, seu físico e seu entendimento do jogo. É compreensível que, para Shaq, a torcida popular por Yao Ming tenha sido recebida como uma afronta ao seu talento, uma diminuição de seu trabalho pessoal e do impacto que seu jogo causou ao esporte.
Shaquille O’Neal respondeu ao que considerou uma agressão da maneira que sempre fez: devolvendo a agressão em forma de humor. Usou a mídia para deixar bem claro que esmagaria Yao Ming, com alguns comentários etnocêntricos e preconceituosos disfarçados de humor para tentar rebaixar o pivô chinês ao estado inferior que Shaq acreditava lhe ser devido. Yao, por sua vez, entrou nesse embate sem muito contexto do que acontecia ao seu redor. Ainda sem dominar o inglês, amplamente desconfortável com o papel de protagonismo que a mídia lhe forçava após vir de uma cultura esportiva focada na coletividade, o pivô chinês não compreendia muito bem a importância do duelo pessoal com O’Neal. O próprio conceito de “duelo pessoal” lhe parecia alienígena, um daqueles mal-entendidos que a diferença linguística acaba por criar. As ofensas de Shaq chegaram em Yao como ataques gratuitos, não como a valorização de sua ética de trabalho e de seu legado; a importância da partida para o chinês ateve-se ao “teste pessoal”, um indicador de como se sairia nessa nova liga quando comparado àquilo que seus companheiros de esporte consideravam “os melhores”.
Não era segredo pra ninguém que em seus sonhos mais sinceros o Houston Rockets imaginava que Yao Ming se tornaria uma versão chinesa de Shaquille O’Neal: dominante, intimidador e carismático. Na realidade, suas habilidades lembravam mais outros pivôs “clássicos”, como o ex-campeão Hakeem Olajuwon, mas era difícil imaginar na NBA do começo dos anos 2000 um pivô capaz de impactar o jogo de outra maneira que não a de Shaq, com sua mistura de força, velocidade e agressividade. Muito provavelmente Yao Ming foi avisado, antes de sua primeira partida com O’Neal, que esperavam que ele alcançasse aquele nível. O resultado foi que no dia 17 de janeiro de 2003, quando os dois se enfrentaram pela primeira vez em suas carreiras, o que estava em jogo ia muito além de uma partina banal de temporada regular: Shaquille O’Neal defendia sua própria imagem enquanto Yao Ming tentava rapidamente criar uma imagem própria, algum tipo de identidade capaz de retirar-lhe da massa homogênea do basquete chinês, da indecibilidade de ser apenas um potencial futuro, e dos esteriótipos vazios com que fora atacado desde que pisou nos Estados Unidos.
Antes de começar a partida, Shaquille O’Neal e Yao Ming ficaram frente a frente no centro da quadra para a disputa de bola ao alto, uma prévia condensada do duelo que aconteceria – e que, assim como todo o resto, continha uma história maior, anterior, desconhecida do fã incauto. Assim como para alguém distraído a partida entre os dois pivôs não significaria nada além de mais um duelo comum, a luta pelo tapinha inicial parecia um acontecimento banal. O porém estava no fato de que, para quem acompanhava o Rockets ao longo da temporada, o esperado era que Yao não disputasse a bola ao alto, tendo em vista seu baixo aproveitamento em vencê-las, fosse por falta de explosão muscular, lentidão de reflexos ou a comum teoria de que juízes não jogavam a bola alto o bastante para que o pivô chinês tivesse tempo hábil de saltar. Colocar Yao Ming na disputa inicial, então, era ignorar a eficiência e o histórico pessoal do jogador em nome de um duelo simbólico, de uma imagem capaz de significar todo o confronto, de uma foto capaz de estampar os jornais. Como esperado, Yao sequer pulou quando Shaq venceu o tapinha inicial com facilidade.
Na primeira posse de bola, Shaq recebeu a bola próximo à zona morta, tentou um crossover em cima de Yao Ming e trombou contra o corpo do pivô chinês embaixo da cesta. Ao contrário do que era de se esperar, o corpo de Yao não cedeu ao impacto, forçando Shaq a manter sua posição e permitindo que o arremesso fosse contestado por outros jogadores o suficiente para que Yao Ming conseguisse seu primeiro toco no adversário. Shaquille O’Neal caiu com as costas no chão enquanto Yao correu para o contra-ataque. A bola não chegou em Yao até Shaq já ter retornado à defesa e ter estabelecido sua posição, mas o pivô chinês realizou um gancho por cima do marcador para marcar os primeiros pontos da partida. Incomodado, Shaquille O’Neal passou a forçar suas jogadas: primeiro tentou um giro para a linha de fundo, que foi recebido com um toco fácil de Yao Ming rente à tabela seguido por uma bandeja de Yao no contra-ataque; depois, Shaq empurrou seu adversário sem pudor até se posicionar embaixo da cesta, receber a bola e subir para receber mais um toco de Yao, que foi capaz de manter os pés sólidos na defesa como nenhum defensor de O’Neal parecia sequer almejar.
Os minutos iniciais não deram a tônica da partida. Yao Ming, afinal de contas, era apenas um novato e recebeu seu par de enterradas na cabeça até o final do jogo, errando muitos arremessos por cima da marcação no processo. Shaquille O’Neal, mais calmo, impôs seu jogo e eventualmente enfrentou um Yao exausto, ainda sem o condicionamento necessário para encarar na totalidade uma partida só decidida na prorrogação. Foram 31 pontos, 14 rebotes e 6 assistências para O’Neal, números impecáveis. Yao Ming terminou a partida com modestos 10 pontos e 10 rebotes, mas 6 tocos que decidiram como seria lembrada aquela noite. O Rockets até ganhou aquele jogo, quase inteiramente graças à atuação espetacular de Steve Francis, mas o resultado real do jogo é daquelas coisas desimportantes que a História pode deixar de lado sem rubor. O resultado simbólico daquele jogo é que realmente importa: o abraço de Shaquille O’Neal em Yao Ming ao término da partida, a apreciação de um pelo jogo do outro; o presente capaz de, com um simples sorriso e um meandro de cabeça, legitimar o futuro; a celebração da diferença, das diferentes culturas, dos modos distintos de se jogar basquete. Em meio a simples regras comuns, unimos-nos todos em nossas singularidades e nos esbaldamos com a grandeza dos muitos caminhos possíveis, testando nossas escolhas frente às escolhas dos outros. Ao saber que enfrentaria Yao Ming, na crença de que esmagaria o oponente, Shaq bradou para a mídia: “aproveitem o show”. Pois bem, ninguém foi esmagado, mas o show não precisa de baixas, precisa de novas possibilidades. No primeiro confronto entre Shaq e Yao, o veredito para os fãs, para o esporte, para os chineses ou para todos os tímidos, os receosos, os fora de contexto ou despatriados, foi simples: mesmo frente a todas as adversidades, era possível ser Yao Ming.
Em 2oo9, conheci um site chamado “Chatroulette”. Sua premissa era sortear pessoas que estivessem visitando o site naquele momento para que conversassem entre si aleatoriamente, independente de seus gostos pessoais, língua mãe ou país de origem. O projeto era um convite para fora da “bolha”, para além de nossa rede de conhecidos que por questões sociais e econômicas tendem a espelhar nossa própria cultura e nossas crenças sobre o mundo. Com apenas um clique, o site sorteava um desconhecido que surgia repentinamente em nossa tela através de áudio, texto e vídeo. Caso a conversa não funcionasse ou algo na interação lhe fosse ofensivo, bastava mais um clique e, sem qualquer tipo de pudor ou aviso, o desconhecido era arremessado para fora do seu monitor e um novo era selecionado aleatoriamente para substituí-lo. Ícone de uma geração líquido-moderna, em que as relações sociais são efêmeras e pouco significativas, o “Chatroulette” tornou-se rapidamente um fenômeno global precursor do Tinder: era comum que os usuários continuassem sorteando parceiros de conversa a esmo até encontrar alguém esteticamente atraente. Confesso que perdi algumas noites de minha vida nessa socialização randômica, na ânsia de encontrar algum ponto de contato com pessoas de lugares longínquos do planeta. Infelizmente, a busca pelo desconhecido e pelo exótico era na maior parte das vezes infrutífera, resultando em pessoas muito parecidas vindas sempre dos mesmos países. Até que, certa noite, fui aleatoriamente transportado para dentro de uma cozinha chinesa. Um adolescente aparentemente entediado tomava café da manhã em sua cozinha enquanto o resto de sua família aparecia ao fundo em sua rotina, afobada com os afazeres antes de partirem para o trabalho. Tentei trocar algumas palavras em inglês, contando-lhe que eu era brasileiro, mas a conversa não fluiu muito bem, especialmente pela falta de familiaridade com o idioma por parte do chinês. Pensei, então, em um vínculo comum que podíamos partilhar mesmo tão distantes geográfica e culturalmente: o apreço por Yao Ming.
Com meu primeiro salário, dei-me de presente uma camiseta de Yao Ming no Rockets, com o uniforme já alterado para o vermelho que marcou a nova identidade estética da equipe após a chegada do chinês. A escolha me parecia óbvia: sou torcedor do Rockets desde o campeonato ganho por Olajuwon, mas Yao Ming era uma história que eu havia acompanhado desde o princípio e com a qual conseguia me relacionar não apenas num âmbito cultural mas também no estilo de se jogar basquete, no modo de ser um pivô que eu amadoramente tentava emular nas quadras públicas da vida. Usei orgulhosamente a camiseta de Yao Ming por muitos anos, não apenas para jogar basquete – há algo no ato de vestir a camiseta de um esportista que remete à criança que se fantasia de super-herói e encontra alguma tranquilidade nessa pequena fantasia. O pivô chinês teve a difícil tarefa de mediar duas culturas muito distintas e de certa maneira acabou recebendo carinho e estranhamento de ambas – afirmando ter “duas casas”, era bem claro que na verdade Yao estava fadado a nunca ter nenhuma. Como muitos adolescentes e jovens adultos, essa sensação de não-pertencimento me era algo familiar e vestir-me de Yao Ming parecia, num nível inconsciente, dar legitimidade às minhas questões e um certo nível de conforto para enfrentá-las. Ainda que as fantasias de poder sejam as mais comuns tanto em crianças quanto em adultos – da capa vermelha do Super-Homem às camisetas de Michael Jordan e Kobe Bryant – as fantasias de estranhamento e desconforto são úteis para externalizar as dificuldades internas, encará-las como traços identitários e então lidar com elas adequadamente.
Foi essa camiseta, já despida de grande parte de sua importância como fantasia, que eu resgatei do fundo do armário e orgulhosamente ostentei em frente à câmera do meu computador diante dos olhos incrédulos de meu jovem interlocutor chinês. Via “Chatroulette” o jovem pulava aos berros de “Yao Ming, Yao Ming” e fez questão de convocar toda a família para vislumbrar a cena. Eis que, nascido no Brasil, dono de uma camiseta de um time de Houston, eu fazia contato com uma família chinesa que parava seu corrido café da manhã para compartilhar o carinho por um jogador de basquete. Foi uma espécie de ritual globalizado, em que as fronteiras dissiparam frente ao elo comum do esporte trazido à tona por uma túnica vermelha e a repetição do nome de Yao, quase em formato de litania. E então, quando nada mais precisava ser dito, o café da manhã terminou e meu computador sorteou outra pessoa qualquer, com a qual não criei qualquer vínculo antes de ser sorteado novamente.