🔒Nenê contra a invisibilidade

No Jogo 3 contra o Oklahoma City Thunder, Nenê acertou todos os 12 arremessos que tentou em quadra e empatou o recorde de mais arremessos sem errar num jogo dos Playoffs, em vigor desde 1975. Em apenas 25 minutos, Nenê conseguiu 28 pontos e 10 rebotes, além de garantir a vitória num jogo que, de outra maneira, teria sido verdadeiramente complicado para o Rockets. Foi uma atuação verdadeiramente memorável .

Assim que a partida terminou, a imprensa esportiva americana só falava em Nenê. Queria entender, com razão, como aquela atuação era possível depois de uma temporada regular discreta em que passou em média menos de 18 minutos em quadra por jogo. Como um pivô com salário inferior a 3 milhões de dólares conseguiu ter tamanho impacto em uma liga em que Timofey Mozgov, pivô inexpressivo do Lakers, recebe exatamente 5 vezes mais para ter uma temporada completamente esquecível? Em poucos minutos os depoimentos começaram a brotar do chão como mandioca: primeiro o técnico Mike D’Antoni afirmou que Nenê é o melhor pivô da NBA quando saudável; depois um assistente técnico da equipe disse que Nenê é “a definição de profissional” por conta de sua preparação técnica, física e mental, já que o pivô brasileiro está sempre preparado, que tem orgulho do que faz, e que “tem um cuidado inacreditável com seu corpo”. E para fechar a noite, James Harden foi enfático:

“Ele é meu mentor, acreditem ou não. Assisto ele todos os dias treinar de alguma forma. Ele está na sala de musculação. Está fazendo várias das coisas certas para deixar seu corpo e sua mente preparados para ir lá e competir em alto nível todas as noites sem exceção.”

A parte triste disso tudo é que os depoimentos, extremamente respeitosos e admirados, não teriam acontecido caso o Rockets não estivesse nos Playoffs, momento em que o mundo inteiro está de olho em qualquer evento fora da curva. Ninguém indagaria sobre o processo de preparação física de Nenê se ele não tivesse se destacado no maior palco da NBA, a pós-temporada. É nesse momento que as histórias surgem, que o esforço ganha visibilidade e notoriedade. É só assim que Nenê recebe o respeito que merece.

De outra maneira, seu trabalho duro passaria invisível – como de fato passou durante a esmagadora maioria de sua carreira. Sua preparação física e mental ao longo dessas 15 temporadas de NBA, lutando contra suas constantes lesões e até mesmo contra um inesperado caso de câncer, recebeu continuamente pouca visibilidade. O Rockets não apenas ofereceu um rigor e uma técnica capazes de manter Nenê saudável ao longo de toda uma temporada como também construiu uma plataforma para que seu esforço seja recompensado e digno de conhecimento público: uma equipe com chances reais de título.

Como torcedor do Rockets, passei uma boa porção inicial da temporada intrigado com o fato de que Nenê passava pouco tempo em quadra. Embora entenda que ele não é capaz de oferecer algumas coisas que o pivô titular da equipe, Clint Capela, faz melhor – como proteger o aro e receber pontes-aéreas, fruto de sua incrível capacidade atlética – me era muito evidente que o time era consideravelmente melhor com Nenê em quadra. Sua habilidade para fazer um corta-luz é incomparável, seu posicionamento em quadra é impecável, sua capacidade de segurar passes difíceis torna a vida de James Harden mais fácil, e sua incrível visão de quadra permite que os outros jogadores confiem a bola em suas mãos para que ela gire e encontre companheiros livres. Ter Nenê para receber a bola quando um corta-luz dá errado e recomeçar a jogada da cabeça do garrafão é essencial para uma equipe que não aceita dar arremessos ruins apenas porque a movimentação pretendida quebrou. Sua capacidade de dar o passe certo mantém o ataque vivo, fluido, orgânico como um esquema tático do técnico Mike D’Antoni precisa ser. Por que, então, a média de apenas 18 minutos por jogo?

Minha dúvida só teve resposta por acaso, quando os comentaristas responsáveis pela transmissão dos jogos em Houston – acessíveis via League Pass – informaram rapidamente que apesar de Nenê estar limitado a 25 minutos por jogo e proibido de jogar back-to-backs, os temíveis “jogos em dias consecutivos”, estava liberado para jogar apenas o SEGUNDO TEMPO de back-to-backs enquanto Capela estava contundido, desde que não ultrapassasse 20 minutos de jogo nesses casos. Procurei internet adentro e nada, nenhuma menção ao limite de minutos de Nenê; apenas os responsáveis pela transmissão, que acompanham o time em todos os jogos em casa e possuem contatos diretos com a equipe, sabiam do que se tratava. Nenhuma menção ao regime de treinamento, à postura do jogador, nada. O mundo só saberia do incrível plano do Rockets e da dedicação de Nenê quando os holofotes da pós-temporada estivessem sobre os dois.

Nenê precisava de um time que estivesse disposto a cuidar de seu corpo com o mesmo cuidado que ele próprio. Não podemos esquecer que Nenê teve um câncer testicular aos 25 anos de idade que o tirou de toda uma temporada da NBA. A experiência não apenas fez com que o pivô dedicasse uma atenção especial à sua forma física e à saúde como também fortaleceu sua visão religiosa de mundo que dá ao seu treino e dedicação uma teleologia, um objetivo final, um destino. Podemos afirmar que Nenê trata seu próprio corpo com uma atenção e um RESPEITO que nem sempre encontra respaldo no que os times exigem dele. O Nuggets já fez Nenê chegar a 120 quilos, comprometendo sua mobilidade, sua impulsão e, possivelmente, também seus joelhos. Na temporada 2005-06, jogou apenas 2 minutos na temporada antes que seu joelho desmontasse em quadra. Em suas 5 temporadas com o Wizards, perdeu pelo menos 15 jogos por lesões em cada uma – em 4 delas, foram mais de 20 partidas. Sofreu com fascite plantar em parte considerável de sua carreira. Jogou todos os 82 jogos de uma temporada apenas uma vez, na temporada 2009-10. E ainda assim nenhuma equipe considerou seriamente limitar seus minutos, poupá-lo dos jogos em dias consecutivos, valorizar – ao invés de COMPROMETER – seu trabalho físico nos bastidores.

Quando começou a jogar menos minutos em Washington, foi apenas porque o técnico Randy Wittman foi obrigado a considerar um basquete mais “moderno” e passou a abrir mão dos pivôs para tentar espaçar melhor a quadra. Foi um golpe duro já que Nenê foi, nas palavras do general manager Ernie Grunfeld, o primeiro passo do Wizards na tentativa de construir uma “nova cultura vencedora” na equipe – que está dando frutos agora, com a atual semi-final do Leste. Nenê tinha a postura certa, uma seriedade e uma experiência essenciais para tornar a equipe madura, e uma presença nos vestiários transformadora para os novatos. Mas o time levou, como sempre, seu corpo ao limite, lidou com pouca paciência frente às lesões e eventualmente abriu mão do pivô para usar mais arremessadores. Não é à toa que Nenê considerou seriamente se aposentar ao fim da temporada passada: é difícil continuar trabalhando quando o esforço colossal é invisível e, portanto, não é reconhecido.

Boa parte da carreira de Nenê sofreu com essa questão. O brasileiro foi para os Estados Unidos tentar uma vaga na NBA sem qualquer alarde, apenas com um card do Shawn Kemp na carteira em busca de motivação e inspiração. Muita gente no Brasil achou que sua tentativa era absurda, juvenil. Faltou reconhecimento e apoio. Anos depois, já um jogador estabelecido na NBA, teve suas desavenças internas com a seleção brasileira de basquete e não recebeu nada além de raiva e desdém por parte da torcida. Mais uma vez, tanto imprensa quanto torcida foram incapazes de entender sua situação, suas dificuldades físicas, a importância de que ele poupasse e cuidasse do corpo, especialmente quando pediam que ele sacrificasse seu físico combalido em nome de uma organização que vivia não apenas na desorganização mas também, como agora sabemos, no mais profundo amadorismo e corrupção. Ao não jogar na seleção, Nenê estava na fisioterapia, nas clínicas, nas salas de musculação – um esforço que os torcedores, desdenhosos, não queriam conhecer, e que seus times, com campanhas medíocres, não eram capazes de expor.

Por muito tempo no que se refere ao Nenê vivemos de migalhas de informação: relatos de sua importância nos vestiários, a admiração da equipe técnica do Wizards pela sua presença, uma ou outra notinha sobre o trabalho de condicionamento e as novas dietas em Denver que tentavam devolver a Nenê sua agilidade. Agora, nas semi-finais da Conferência Oeste com um papel importante nos sonhos elevados do Houston Rockets, temos detalhes até de sua influência em Clint Capela, de como o brasileiro auxilia o pivô titular da equipe em seu jogo de pernas e o motivo a ser mais competitivo. Tudo porque Nenê encontrou enfim uma equipe disposta a verdadeiramente respeitar seu trabalho dentro e fora das quadras.

Nessa temporada, Nenê só jogou mais de 25 minutos em duas ocasiões: quando marcou 21 pontos contra o forte garrafão do Sixers em 27 minutos em quadra, e quando marcou 17 pontos em 26 minutos contra um garrafão do Thunder que contava com Enes Kanter e Steven Adams. No agora famoso Jogo 3 contra o Thunder em que ele transformou a dinâmica da partida e não errou um arremesso sequer, foram EXATOS 25 minutos. Não há ganância, não se muda o plano determinado frente às circunstâncias. O acordo com Nenê é inviolável, de modo que a saúde de Nenê torna-se inviolável também. Finalmente saudável, podemos nos surpreender com a inteligência e versatilidade do pivô em quadra.

Havia a dúvida de como Nenê se encaixaria no esquema tático de Mike D’Antoni não apenas pelo excesso de correria, mas também pelo simples fato de que ele é um pivô que, como tal, não é capaz de espaçar a quadra. Mas o encaixe foi impecável porque Nenê tem aquilo que os americanos chamam de “basketball IQ”, uma inteligência específica ao basquete, um entendimento elevado do jogo. Por um lado, Nenê tem a capacidade de se antecipar às jogadas e puxar contra-ataques como esse, com uma técnica apurada para o euro-step (que, em seu caso, foi chamado de “brazilian step”):

Por outro, Nenê possui um jogo sólido de costas para a cesta que vira uma saída importante para quando todas as opções no perímetro foram fechadas por uma defesa forte adversária, como vemos aqui no Jogo 1 das semi-finais contra o Spurs:

Confronto de veteranos

Além disso, Nenê é um passador sensacional em sua posição e sempre procura o passe como sua primeira opção, especialmente quando está na cabeça do garrafão. Isso faz com que as defesas tenham que reagir à possibilidade de seu passe, o que abre espaço para que ele infiltre, como nesse caso contra Chris Paul numa troca de marcação:

Vamos dar uma olhada numa coletânea com as principais jogadas de Nenê em sua partida impecável contra o Thunder no vídeo abaixo:

Vejam logo nas duas primeiras jogadas que Nenê encontrou um modo de espaçar a quadra, sem ficar congestionando o garrafão, ao se afastar para a cabeça do garrafão. Sua inteligência, no entanto, permite que ele infiltre quando necessário – mesmo fora de situações de pick-and-roll para criar uma possibilidade de passe para os armadores e finalizar em movimento.

Na terceira jogada, com 20 segundos de vídeo, Nenê esgotou suas rotas de passe – vejam que não há ninguém na zona morta do seu lado da quadra – mas o pivô não tem nenhuma dificuldade em CONTORNAR Steven Adams, compensando sua falta de impulsão e o tamanho do adversário, de maneira bem similar ao que vimos ele fazer com Pau Gasol em vídeo anterior.

Com 25 segundos de vídeo, vejam Nenê receber uma bola em transição e ao invés de tentar finalizar num garrafão congestionado, fazer um passe PRECISO para Eric Gordon na zona morta. Pensem só na alegria de Mike D’Antoni em ter um pivô capaz de fazer um jogo inside-out, ou seja, levar a bola do garrafão para o perímetro, só que EM TRANSIÇÃO, momento em que os pivôs sequer costumam acompanhar a posse de bola.

Aos 35 segundos do vídeo, vemos um dos maiores talentos do Nenê: fazer corta-luz DE COSTAS, prendendo adversários atrás de seu corpo enquanto pode visualizar inteiramente a jogada e se posicionar onde for mais favorável para o passe.

Por fim, aos 50 segundos vemos Nenê receber um passe EM TRANSIÇÃO nas costas da defesa, fruto de sua percepção de que a defesa adversária estava focada na linha de três pontos ou estava se reposicionando para buscar os arremessadores em transição. Ele faz isso de maneira oportunista em quase todos os jogos e até a toda-poderosa defesa do Spurs caiu num lance similar, em que Nenê não teve tempo de finalizar e acabou sofrendo a falta.

Percebam que a maior parte dessas jogadas é fruto de seu posicionamento e sua capacidade de habitar diversos lugares da quadra mesmo sem um arremesso de longa distância e sem uma impulsão capaz de forçar buracos na defesa de garrafão.

É impossível olhar essas jogadas e não pensar em como teria sido a trajetória de Nenê caso não tivesse sido assombrado pelas lesões durante toda sua carreira. Mas sua história de certa maneira nos explica o motivo de tantos jogadores abrirem mão de times com poucas chances de vitória em busca de papeis diminutos em times com impacto nos Playoffs. Lutar contra essas lesões deve ter sido terrivelmente excruciante e todo esse trabalho não merece passar invisível. Numa equipe vencedora, Nenê finalmente recebe a atenção e a admiração que merece. Numa liga em que cada time joga 82 partidas, é impossível trafegar no excesso de informação gerado. Não podemos conhecer todas as histórias, todos os esforços, todas as dores e sacrifícios. É por isso que as Finais são tão cobiçadas, por serem uma lupa em cada pequeno elemento que tornou aquela etapa possível. Finalmente temos Nenê sob a lupa – e deixo aqui minha torcida de que esse momento de reconhecimento faça toda sua jornada ter valido a pena.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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