Esportes em geral são a junção de duas coisas aparentemente contraditórias: nossa necessidade de controle (de criar regras, limitar as ações possíveis, determinar o que cada um vai fazer o tempo inteiro) e nossa paixão pelo imprevisível, pela surpresa, pela criatividade. O resultado é que inventamos um conjunto de regras que todos os participantes precisam seguir, e aí ficamos torcendo para alguém fazer algo totalmente inesperado dentro dessas regras arbitrárias. Não há esportista ou fã do esporte que não leve as regras MUITO A SÉRIO, afinal são elas que sustentam toda a brincadeira, mas se todo mundo se limitar a ficar apenas obedecendo as regras a gente MORRE DE TÉDIO. Queremos controlar o que se pode fazer apenas para ver alguém ir lá e fazer sutilmente diferente. Há uma parte disso, inclusive, que é um fascínio pela INTERPRETAÇÃO das regras de maneira quase sacana, como fazem as crianças (e os advogados?), tentando esticar, torcer e contorcionar as regras para que permitam algo que não estava previamente previsto. “OK, a regra diz que eu preciso arremessar a bola pra dentro daquele aro, mas e se eu pular MUITO ALTO e simplesmente colocar a bola lá dentro? Ninguém disse que isso não é permitido.” O primeiro cara que enterrou certamente fez explodir miolos – e levou todo mundo aos livros de regras, em busca das delimitações do que é ou não permitido. Uma vez de acordo que enterradas são perfeitamente aceitas no basquete, podemos esquecer um pouco do controle e simplesmente nos extasiar com a criatividade e a imprevisibilidade do lance. Até, claro, que ele comece a se tornar tão comum, tão banal, que se transforme apenas numa regra óbvia ao invés da surpresa do desconhecido.
Isso acontece especialmente com as capacidades físicas dos esportistas profissionais. As regras limitam o número de passos que um jogador pode dar com a bola em direção à cesta, mas a maior parte dos jogadores é tão grande, rápida e explosiva que isso não faz DIFERENÇA NENHUMA, com três passos já conseguem percorrer metade da quadra e finalizar a jogada com tranquilidade. Se a princípio isso pode parecer impressionante, com o tempo torna-se apenas o modo “comum” de se portar diante das regras. Isso mostra que toda nossa vontade de criar ambientes controlados, de limitar as ações possíveis, de conhecer todos os caminhos previstos nas regras é apenas para conseguir criar e identificar o EXTRAORDINÁRIO, o impensável, o surpreendente, o imprevisível. Um jovem fã da NBA, quando mergulha no esporte, quer conhecer o máximo possível da Liga para poder controlar tudo na cabeça, saber quem são os jogadores importantes, as jogadas comuns, os movimentos padrão, as estratégias utilizadas, etc. Ele cria mentalmente uma lista de TUDO QUE PODE ACONTECER NUMA QUADRA DE BASQUETE, algo que só é possível porque as regras limitam as possibilidades. Pode até demorar um tempo, mas quem acompanha NBA a fundo simplesmente se acostuma com o que pode ou não acontecer, consegue fazer previsões embasadas e vê tabelas estatísticas quando fecha os olhos. Isso é controle. Quem começou agora, assustado pelo enorme número de possibilidades, usa o máximo de filtros que puder para controlar a bagunça: quem ganhou título, quem foi para o All-Star Game, os 10 melhores jogadores daquela posição (irch!), os melhores times dos últimos anos e por aí vai. Mas o motivo pelo qual assistimos basquete é que não importa o quanto tentemos controlar as regras e as informações, o jogo sempre pode ter resultados inesperados que nos desesperam, nos fascinam e nos emocionam. O torcedor mais tranquilo, seguro e controlado do planeta ainda estará SUANDO LITROS quando seu time estiver participando de um Jogo 7 das Finais da NBA porque embora um resultado possa ser mais provável do que o outro, qualquer resultado é virtualmente possível numa quadra de basquete. É por isso que recebemos com lágrimas nos olhos Kevin Garnett sendo campeão da NBA aos berros de “tudo é possível”, ou o Cavs sendo campeão da temporada passada quando todos os indícios apontavam para um título fácil para o Golden State Warriors.
Todas as histórias de “mocinhos” e “vilões” na NBA acabam vindo mais ou menos desse processo de controle e imprevisibilidade. Por um lado, o fã recém-chegado querendo saber o que deve ver, quem deve acompanhar e o que é possível de acontecer numa quadra de basquete pode se ASSUSTAR com o imprevisível, querendo antes encontrar algum tipo de padrão ou critério pelo qual compreender o esporte. É como a criança que quer que os pais contem a mesma história toda noite antes de dormir até entender seu padrão, sempre em busca de controle e tranquilidade. Quando seu filho pedir para ver pela milésima vez aquele mesmo desenho sem graça da Disney, pense na tranquilidade que deve dar encontrar sempre o mesmo final nesse mundo em que coisas completamente aleatórias (como uma chuva de sapos) podem acontecer a qualquer momento. Da mesma maneira, quando a NBA ainda parece um caos, torcer para os grandes times ou os grandes jogadores fornece certa tranquilidade, menos altos e baixos, menos aleatoriedade, uma historinha mais controlada para se acompanhar.
Por outro lado, depois do susto com o excesso de possibilidades vem o costume com o que pode ou não acontecer em quadra, o padrão das capacidades dos jogadores, o padrão das jogadas, e aí é comum surgir uma certa AVERSÃO ao previsível no esporte. Se um time ganha todos os anos, a gente torce para que ele enfim perca – para ver se a gente se surpreende, pra ver se o coração bate, pula pela boca, pra ver se todo aquele controle e estatísticas e dados e estudo viram FAROFA frente ao poder maravilhoso do ACASO. Se um jogador é sempre o melhor, a gente torce para que ele seja superado; se um time sempre perde, a gente torce para que ele vá para os Playoffs. O esporte é esse equilíbrio estranho entre controle e acaso em que por vezes queremos a segurança de saber o que pode ou não acontecer, e por vezes queremos ser pegos de calças curtas e não entender absolutamente do que está acontecendo. Alguns de nós precisam mais de controle, outros querem mais surpresas, outros variam animadamente de um lado para o outro do espectro, dependendo de uma série de fatores presentes em nossas vidas.
Ao meu ver, isso explica o motivo de personagens como LeBron James serem tão polarizadores: alguns enxergam nele a segurança de estar sempre vendo o melhor, de não estar perdendo algo importante em outro jogo; outros enxergam nele o óbvio, o banal, o ESPERADO, e querem que sua grandiosidade seja destruída pelo aleatório simplesmente para que a gente possa SENTIR ALGO, para que o esporte seja interessante. O mesmo vale para o Golden State Warriors: para alguns o controle de estar vendo o que de melhor pode ocorrer numa quadra, e para outros o TÉDIO de estar vendo um time vencer sempre conforme o esperado, e por isso vale torcer contra com todas as forças. Esse Warriors vencer um jogo com o elenco que tem (somando, agora, Kevin Durant à constelação) é digno de BOCEJO para quem quer ser surpreendido pelo impensável. A equipe é tão dominante – na prática e nas previsões, nas análises estatísticas, nas possibilidades táticas – que se tornou automaticamente a grande VILÃ da NBA atual.
Analisar essa relação intrínseca ao esporte de tradição e inovação nos ajuda a humanizar um pouco o ódio por aquela que, por qualquer ângulo pelo qual se olhe, é uma das melhores equipes que já existiram no basquete. Ao mesmo tempo em que as vitórias previsíveis trarão inúmeros fãs ao esporte, menos assustados com o possível caos e excesso de informações da NBA, o sucesso do Warriors certamente atrairá cada vez mais ódio – e um ódio, segundo os critérios acima, plenamente justificado, ainda que se disfarce constantemente de argumentos fantasia como “apelões”, “covardes”, “isso não é basquete” e outras bobagens relacionadas. O único porém é que esse ódio pela presibilidade do Warriors acaba ignorando que, ao olhar para a História da NBA, o Warriors existir é uma das coisas MAIS IMPREVISÍVEIS que já aconteceram. Um time conter tantos jogadores de altíssimo nível, aprimorar uma nova maneira de se jogar basquete, ter as peças perfeitas para implementar esse esquema tático inovador e além de tudo ter Kevin Durant TOPANDO SE JUNTAR A ELES mesmo quando TUDO indicava que ele continuaria no Thunder por ao menos mais um ano é o equivalente a assistir água se tornando vinho na sua frente sem qualquer explicação aparente. Essa equipe é um absurdo, um eclipse, um evento inesperado que não acontecerá novamente na NBA por muitos anos. Se ela parece entediante, desequilibrada e contrária à emoção do esporte, é porque a emoção e o aleatório do esporte aconteceram na criação da equipe. Agora, simplesmente damos esse conjunto de jogadores como algo dado. Voltando à imagem inicial, é como a enterrada, que em algum momento já foi um absurdo de originalidade dentro das limitações do basquete, mas que agora é um lance comum realizado por quase todos os jogadores.
É por isso que entender o que há de banal e o que há de extraordinário no esporte exige uma visão mais ampla, de longa duração, capaz de ver como os padrões vão se consolidando ou se alterando ao longo dos anos. Os vilões entediantes de hoje são as aberrações extraordinárias de ontem e é fácil perder a noção de todas essas narrativas, esquecer quão extraordinário é, entre os humanos, um cara conseguir percorrer metade da quadra com apenas três passos, ou acertar arremessos com constância a quatro passos da linha de três pontos. No fundo, essas historinhas que inventamos de quais times amamos e quais times odiamos são também ferramentas de controle, um facilitador para o excesso de informações de um mundo majoritariamente caótico. Estamos entrando numa nova temporada da NBA que corre o risco de ver o Warriors dominando novamente sob críticas de estar “quebrando a graça do esporte”. Frente a isso, apenas lembremos que quando se trata da NBA o imprevisível está em todos os lugares, mesmo que não consigamos encontrá-lo no imediatismo do momento, e que nenhuma temporada está verdadeiramente decidida até o último segundo do último jogo dos Playoffs. É por isso que a partir de hoje, e nos próximos oito meses, não tiraremos os olhos da quadra.