đź”’PivĂ´s e os lances livres

Nessa segunda-feira, DeAndre Jordan alcançou um recorde na NBA capaz de fazer nossos olhos sangrarem: ao errar 22 lances livres ao longo de um jogo, o pivô do Clippers empatou a marca de Will Chamberlain em 1967 de mais lances livres não convertidos em uma única partida. DeAndre Jordan cobrou 34 lances livres, converteu apenas 12, e protagonizou com isso um dos jogos mais medonhos que a NBA já viu. Para ter uma ideia do horror, os mais corajosos podem assistir a uma compilação com todos os lances livres errados pelo pivô durante a partida. Tirem as crianças da sala, por favor:

Tragédias dessa magnitude ressuscitam discussões sobre mudança nas regras, profissionalismo e comprometimento. Se por um lado a regra permitir encher o DeAndre Jordan de porrada para forçá-lo a errar lances livres estraga qualquer jogo, por outro muitos argumentam que converter lances livres é simplesmente obrigação de um jogador de basquete profissional que ganha milhões de dólares, e que bastaria que ele treinasse o suficiente para se aproveitar das faltas que cometem nele. O problema desse argumento é que a dificuldade com os lances livres assola muitos e muitos pivôs há décadas no esporte, e é simplesmente impossível afirmar que esses jogadores não eram obrigados a treinar lances livres por seus times à exaustão. Na verdade, como a imagem abaixo parece mostrar, muitas vezes são justamente os pivôs aqueles que mais treinam lances livres durante as temporadas:

[image style=”” name=”off” link=”” target=”off” caption=””]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/12/Lakers-board.jpg[/image]

A imagem, de uma lousa no vestiário do Lakers em 2013, mostra a quantidade de lances livres cobrados e convertidos nos treinos por cada um dos jogadores da equipe até a pausa para o All-Star Game no meio da temporada, e ao lado mostra, para efeitos de comparação, os mesmos números para os lances livres ocorridos em jogos oficiais da temporada até aquele momento. Não apenas Dwight Howard cobrou mais lances livres nos treinos do que qualquer outro membro do elenco (foram 1532 em apenas meia temporada), mas ele também acertou quase 83% de suas tentativas. Já nos jogos oficiais, seu aproveitamento não chegou sequer a 50%.

O que explica isso? Como é que tantos pivôs, ao longo de tantos anos, continuam treinando insanamente, acertando suas tentativas nos treinos, jogando sem parar em altíssimo nível, e mesmo assim não conseguem acertar um mísero lance livre quando importa? Como é que DeAndre Jordan, uma máquina construída para jogar basquete, consegue errar 22 lances livres mesmo depois de tantos treinamentos exclusivos para sanar o problema? E por que esse mal parece só assolar os pivôs?

O principal motivo não está na falta de comprometimento, mas nos treinamentos de base lá no começo, quando esses jogadores tiveram o primeiro contato com o basquete. Em geral, jogadores que ainda novos já são muito altos são treinados para fazer o melhor uso possível dessa vantagem de altura: aprender desde cedo a jogar de costas para a cesta, se posicionar para os rebotes, fazer corta-luz, dar tocos na cobertura. A princípio, quando a habilidade dos jovens jogadores ainda é muito crua, essa vantagem de altura permite um domínio considerável da quadra de basquete. Basta pensar em um monte de crianças que não saibam jogar e imaginar como, entra elas, alguém desproporcionalmente mais alto terá uma facilidade inicial óbvia frente aos demais.

Isso gera duas questões centrais. A primeira Ă© que nesse formato as crianças crescem para ser especialistas. O jogador alto vai se especializar no garrafĂŁo, na defesa, em ganchos, etc, da mesma forma que o jogador mais baixo vai ser instruĂ­do a se especializar em arremessos de fora, em passes, em velocidade e assim por diante. A segunda questĂŁo Ă© que a altura, por ser inicialmente mais dominante em quadra, faz com que os jovens jogadores nĂŁo tenham que evoluir seu jogo, torná-lo mais versátil, mais criativo ou improvisar soluções inteligentes em quadra. Jogar perto da cesta e refinar um jogo de costas para a cesta Ă© mais do que suficiente. Isso se agrava ainda mais pela tendĂŞncia de tĂ©cnicos de escolher jogadores em peneira simplesmente porque sĂŁo mais altos, independentemente do talento ou habilidade que possuam. Cansei de ver pessoalmente em peneiras de categoria de base jogadores muito altos sem qualquer habilidade serem escolhidos porque podem ser “moldados” no futuro – entenda com essa expressĂŁo que serĂŁo transformados em especialistas que usarĂŁo sua altura e nĂŁo terĂŁo que encontrar outras saĂ­das para se tornarem mais efetivos em quadra.

Na prática, isso quer dizer que a maior parte dos pivĂ´s nĂŁo Ă© estimulada a arremessar de fora do garrafĂŁo ao longo de suas carreiras, e como sĂŁo eficientes desde muito cedo, nĂŁo tĂŞm qualquer motivo para acreditar que precisem desenvolver uma mecânica de arremesso decente. Lembro bem do Al Harrington, um jogador de 2,06m draftado em 1998 na NBA, contando que ainda no colegial foi abordado por um agente que tentou convencĂŞ-lo de que sua altura e explosĂŁo nĂŁo seriam suficientes no basquete profissional e que ele precisava ganhar um arremesso consistente. Quando aceitou participar de um rigoroso programa de treinamentos, o agente disse que Larry Bird arremessava 1000 bolas de trĂŞs por dia nos treinos e perguntou se Al Harrington era tĂŁo bom quanto Larry Bird. Quando o jovem jogador respondeu obviamente que nĂŁo, o agente entĂŁo afirmou que ele teria que arremessar 2000 bolas para compensar. Al Harrington chegou na NBA com um arremesso incrĂ­vel e, se nĂŁo era dos jogadores mais talentosos de sua geração, ao menos conseguiu esticar em muito a sua carreira se tornando um arremessador em times que queriam alas de força no perĂ­metro. A anedota nos serve simplesmente para mostrar que, em geral, jogadores altos nĂŁo passam por essa situação: seu conjunto de habilidades Ă© mais do que suficiente para conseguirem ser escolhidos rapidamente nos drafts da Liga. Nosso Rafael “Baby” AraĂşjo, com 2,11m e um fĂ­sico de guarda-roupas, foi a oitava escolha do draft de 2004 mesmo sem ter as habilidades necessárias para jogar no melhor basquete do mundo. Poucos anos depois, já estava irreversivelmente fora da NBA.

É normal que jogadores se especializem em algumas poucas coisas em quadra, mas os pivôs podem se dar ao luxo de se especializarem em menos coisas, de não saber executar todas as outras, e não são incentivados a ter um jogo mais abrangente. O problema é que não existe nenhuma regra que puna diretamente armadores que sejam particularmente ruins em algum aspecto do jogo como pegar rebotes ou dar tocos, mas há uma regra que pune fortemente os pivôs por não terem treinado, no começo de suas carreiras, mecânica de arremesso e consequentemente lances livres.

[image style=”wide” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Shaq esmaga com as mĂŁos uma bolinha de gude”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2015/12/ShaquilleONealII.gif[/image]

Embora muita gente diga que o tamanho das mĂŁos gigantes dos pivĂ´s atrapalhe a cobrança de lances livres ou que a altura enorme impede um arco perfeito, a maioria dos especialistas diz que isso Ă© balela. EstĂŁo aĂ­ vários pivĂ´s excelentes em lances livres para provar – Yao Ming, Vlade Divac, Brook Lopez e Arvydas Sabonis sĂŁo todos enormes e com mĂŁos capazes de causar um eclipse solar. O verdadeiro problema Ă© que a combinação de altura e mĂŁos maiores exige mecânicas levemente diferentes, um arco um pouco mais alto, e o pouco treinamento de arremesso que a maior parte dos pivĂ´s recebe quando está começando Ă© dada por armadores especialistas que nĂŁo possuem consciĂŞncia ou experiĂŞncia dessas pequenas diferenças que precisariam ser levadas em consideração na hora de treinar pivĂ´s.

Isso quer dizer que a memória muscular que esses jogadores possuem, estabelecida desde o princípio de suas relações com o basquete, é levemente incorreta, além de não ter sido treinada suficientemente para que funcione sempre da mesma maneira em todas as condições. Basta ver como o Dwight Howard altera sua mecânica de lance livre de um jogo para o outro, ou até mesmo ao longo de um mesmo jogo dependendo do grau de frustração, de cansaço, ou do número de vezes em que ele teve que ir para a linha de lances livres. Trata-se não apenas de uma mecânica que não foi consolidada na infância como deveria, mas também de um sem número de tentativas de mudar sua mecânica de arremesso ao longo da carreira, fruto de intervenções de técnicos e especialistas diversos decididos a resolver em definitivo seu problema com os lances livres.

Isso gera uma questĂŁo psicolĂłgica muito forte. Sem uma memĂłria muscular Ăşnica e enraizada ao qual recorrer nos momentos de pânico, os jogadores ficam questionando em suas cabeças a forma que deveriam ou nĂŁo deveriam estar adotando no arremesso, tornando suas mecânicas pouco fluidas, robĂłticas e consequentemente instáveis, mudando o tempo inteiro. Sem essa pressĂŁo, Ă© natural que pensem menos em como deveriam estar alterando a mecânica e convertam com mais facilidade os lances livres: isso explica a imagem que vimos no inĂ­cio do texto, com Dwight convertendo quase 83% dos lances livres nos treinos, em situações de mĂ­nima pressĂŁo, e Shaquile O’Neal notoriamente beirando os 80% nessas circunstâncias mesmo que, em jogos oficiais, tenha terminado a carreira com mĂ©dia de apenas 52% de aproveitamento. É por isso que quanto mais se fala nisso e mais se treinam novas mecânicas, contraditĂłrias com as mecânicas anteriores, maior a chance desses pivĂ´s sem mecânicas consolidadas errarem lances livres nos momentos de maior pressĂŁo em quadra.

Mas por que alguns pivĂ´s nĂŁo passam por essa dificuldade? De fato, estatisticamente, quanto mais alto se Ă©, maior a chance de vocĂŞ errar lances livres mais frequentemente. Mas alguns jogadores muito altos – pivĂ´s ou alas de força – nĂŁo foram levados a ser especialistas de garrafĂŁo durante sua formação nas categorias de base, o que aumenta suas chances de ter tido um treinamento que envolvesse arremessos, lances livres e domĂ­nio de bola, por exemplo. Caso interessante Ă© justamente o de Yao Ming, que por conta da cultura chinesa foi obrigado a desde pequeno fazer exatamente os mesmos treinamentos que todos os outros jogadores de basquete, sem diferenças, sem privilĂ©gios, sem especializações. Quando atingiu os 2,29m, Yao Ming já tinha sido acostumado com diversas posições, arremessava de qualquer lugar da quadra, passava bem a bola e sabia colocá-la no chĂŁo. Isso Ă© comum tambĂ©m na Europa, em que na categoria de base os jogadores sĂŁo treinados em todas as posições, mas acontece eventualmente nos Estados seja por conta de um tĂ©cnico ou agente mais consciente, seja por crescimento fora de Ă©poca. Anthony Davis, por exemplo, era um armador de 1,88m atĂ© que de repente, de um ano para o outro, cresceu 20 centĂ­metros e se tornou pivĂ´ no basquete universitário. Isso explica sua mecânica de arremesso constante, sua memĂłria muscular impecável, seu aproveitamento nos lances livres e atĂ© seu controle de bola, sendo usado cada vez mais para puxar contra-ataques no Pelicans. Esses jogadores de garrafĂŁo que possuem um jogo mais completo e um arremesso sĂłlido de meia distância ainda possuem o bĂ´nus de usar suas mecânicas de arremesso ao longo do jogo com mais frequĂŞncia, mantendo a memĂłria do movimento sempre ativa. Vale imaginar quĂŁo estranho deve ser para o Dwight Howard, num caso em que ele vá para a linha de lance livre apenas no fim do jogo, nĂŁo ter arremessado nenhuma bola longe da cesta durante toda a partida.

 

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamĂ­stico.

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