🔒Traição

Poucas horas após Gordon Hayward ter assinado um contrato com o Boston Celtics já apareciam na internet as primeiras imagens de torcedores queimando suas camisas em Utah. Uma coletânea em vídeo de fãs colocando fogo em seus uniformes de Hayward viralizou na internet a ponto de levar associações de caridade a fazer campanha nas redes sociais para que esses torcedores irados doassem seus uniformes para pessoas necessitadas. Esse fenômeno não é novo: só no passado recente podemos lembrar de fúrias flamejantes contra os uniformes de Kevin Durant, quando deixou o Thunder para jogar no Warriors, e de LeBron James, quando “levou seus talentos” para Miami após uma carreira inteira em Cleveland. Torcedores sentem-se traídos e então seus objetos de adoração, seus uniformes, aquela fantasia que vestem para celebrar um jogador e para em algum grau sentirem-se como eles, torna-se carvão.

O mais fascinante é que mesmo tão distantes de Utah, livres de qualquer relação geográfica, esses gritos de fúria ecoam em terras tupiniquins. Torcedores brasileiros chamaram Gordon Hayward de “traidor” internet afora, sentindo-se igualmente traídos porque um jogador escolheu jogar basquete em outro lugar. A onda é tão forte que jogadores agora precisam justificar suas escolhas com textos de 20 parágrafos no “The Player’s Tribune”, uma ferramenta que dá voz aos atletas, de modo a tentar salvar suas imagens públicas. São sempre tentativas de estabelecer uma longa narrativa que culmina naquela escolha, como se ela fosse o resultado necessário de toda uma vida, como se fosse o próximo capítulo óbvio de um livro épico. A intenção, claro, é que as escolhas de um jogador pareçam racionais, compreensíveis, inevitáveis frente à historinha. Trata-se de uma atitude desesperada de explicar para os fãs que o sofrimento de vê-lo partir não é aleatório, não é em vão, faz parte da incrível história de uma vida: a do jogador.

Camiseta

Essa dinâmica toda é um fenômeno recente. Outras grandes estrelas já deixaram suas equipes no auge de suas carreiras para buscar oportunidades melhores – Dennis Johnson nos anos 80, Alonzo Morning no meio dos anos 90, Dikembe Mutombo em 1996, Dennis Rodman por duas vezes, até mesmo Steve Nash quando deixou o Mavs rumo ao Suns, só pra listar alguns – e é claro que essas decisões causaram frustração e ira em alguns torcedores. Mas agora parece haver uma disparidade cada vez maior entre o que esporte é para os atletas e o que ele é para seus torcedores, exacerbada por uma cultura amplamente influenciada pelas redes sociais.


A NBA atual não é apenas uma liga de salários milionários (deixando para trás, com folga, os salários da liga mais amada dos Estados Unidos, a NFL), ela também é uma liga decidida a instruir seus jogadores a respeito desses salários. Quando um novato entra hoje na NBA, recebe imediatamente um curso sobre como gerir sua carreira, como cuidar de sua imagem, como gerenciar seus salários e criar planos para o futuro. É fácil entrar na NBA e encantar-se com os milhões a ponto de gastá-los pouco tempo depois da inevitável aposentadoria, ou então esquecer que nem todo mundo é bom (ou saudável) o bastante para somar fortunas bilionárias no basquete e que, a princípio, o máximo de dinheiro deve ser poupado sempre que possível. Depois de alguns casos de falência – o mais famoso deles, talvez, o de Antoine Walker e seus mais de 100 milhões de dólares que viraram poeira – a NBA tornou-se muito mais preocupada, com ajuda de ex-jogadores, em instruir os calouros sobre como a vida no basquete é um EMPREGO e deve ser pensada como tal.

A geração dos “Millennials”, nascidos entre os anos 90 e os anos 2000 (e portanto no auge do que a Sociologia chama de “Modernidade Líquida”), é conhecida por ter uma relação diferente com o conceito de trabalho. Por um lado, busca satisfação instantânea, seja ela financeira ou psicológica, o que resulta numa mudança frequente de empregos e numa completa ausência de estabilidade. Por outro lado, preocupa-se com a narrativa, com o legado, quer sentir que fez a diferença e evita os empregos que limitem “seu potencial”. Não à toa essa é a geração que criou o Facebook, a ferramenta da total instabilidade, em que os textos, os vídeos e as imagens duram poucos segundos sendo roladas verticalmente para fora da sua tela rumo ao limbo do esquecimento, mas em que todos os seus membros estão desesperadamente tentando mostrar toda sua potência, todos os seus feitos, todas as suas incríveis sacadas sobre o mundo. É uma geração que aprendeu a cultivar o ego, vivendo sob os holofotes do espetáculo que são as redes sociais, e a cultivar o desapego das relações que desaparecem com uma velocidade frenética. O resultado é uma legião de pessoas batendo no próprio peito para mostrar como são incríveis – todo mundo quer parecer Cristiano Ronaldo – e uma infinidade de críticas e paixões, palavras de agressão e de afeto, que são jogadas ao ar sem nenhum senso de consequência porque desaparecem muito rápido. Ao contrário das cartas, guardadas por décadas nas caixas de sapato embaixo da cama, o que falamos hoje na internet desaparece poucos minutos depois de ser pronunciado.

Some isso ao esporte, em que as metas são claras, em que os objetivos e os legados são óbvios, em que as vitórias são inegáveis – basta fazer mais pontos do que o adversário ao final de uma partida – e temos uma geração de jogadores disposta a mudar quantas vezes forem necessárias para cumprir seus objetivos, para sentir que estão fazendo a diferença, para ter uma chance de deixar seus nomes na história. Nick Young virou um exemplo perfeito dessa geração: louvou a si mesmo na internet por anos, soltou palavras de ódio contra os adversários, e eventualmente abriu mão de dinheiro – recompensa financeira imediata – para jogar pelo Golden State Warriors, onde a recompensa será mostrar seus talentos ao mundo num palco mais alto do que qualquer outro, com as oportunidades de atingir todo seu potencial e tornar-se quem ele acredita que pode ser. Aí basta uma olhadinha no cemitério da internet e lá está o rapaz ofendendo os torcedores do Warriors em 2016:

Jogadores que pegaram a transição entre gerações, como Kevin Garnett, rapidamente pularam de barco, percebendo que a falta de maleabilidade e a intransigência, o sonho de construir uma carreira inteira no mesmo lugar, era prejudicial para eles próprios. Trocando de ares, experimentando recomeços, se juntando a outros elencos era possível VENCER TÍTULOS e entrar para a história. Sua incrível dedicação a Minessota, pelo contrário, foi rolada para baixo na barra vertical da vida e ninguém se lembra mais. Mais ou menos na mesma época, Kobe Bryant pedia desesperadamente para ser trocado do Lakers para ter chances de ganhar um título –  foi a diretoria quem resistiu, manteve o jogador contra sua vontade e eventualmente conseguiu peças suficientes para que Kobe fosse campeão mais duas vezes em Los Angeles, em 2009 e 2010, e aceitasse continuar por lá até sua aposentadoria. Sua permanência uma carreira inteira com o Lakers foi mera coincidência, uma prova mais de habilidade dos diretores da franquia do que de preceitos morais, lealdade ou inflexibilidade. Ao contrário, Kobe sempre foi o exemplo máximo de jogador que está disposto a desconstruir todos os modelos para encontrar o caminho para a vitória – fez isso dentro e fora da quadra, muitas vezes em detrimento de si próprio, e sua permanência numa equipe não seria diferente.


Torcedores e atletas compartilham de um mesmo objetivo em comum: a vitória. Mas os jogadores da NBA possuem possibilidades de escolher o rumo de suas vidas, para onde irão, onde querem viver e onde querem jogar. Abordam essas escolhas a partir de um curso de GESTÃO DE CARREIRAS recebido na temporada de novato, e buscam as melhores oportunidades para si mesmos – tudo em um ambiente de individualismo e espetáculo que o Facebook tornou possível. Da mesma maneira que muitos de nós colocam os marcos pessoais e os profissionais nas redes sociais para ganhar aplausos antes que a rolagem vertical os engula, LeBron James achou que sua decisão inteiramente pessoal de ir para Miami merecia um palco de aplauso coletivo num programa de televisão ao vivo chamado “The Decision”. A indignação geral ao ridículo da situação – LeBron na poltrona, em rede nacional, avisando que iria mudar de time – só se dá porque estamos vendo a nós mesmos, nossos próprios hábitos, nossa própria geração serem levados AO EXTREMO, à sua imagem mais exagerada, caricata e grotesca. Um moleque que só conhece os palcos sociais da mídia e do Facebook acharia o “The Decision” normal: tudo é apenas uma escolha, líquida e maleável, a ser alardeada publicamente em busca de aplausos. Status do Facebook: “Fulaninho casou com ciclaninha”, “Parabéns!”, “Felicidades”, “Postem fotos da lua de mel”.

Para os torcedores, entretanto, essa ampla gama de escolhas não fica explícita. Especialmente nos Estados Unidos, a torcida por times da NBA é herdada através da família ou vem de algum evento pessoal e de alta carga afetiva, ainda na primeira infância. Vemos isso no futebol brasileiro, em que não é socialmente aceito chegar à adolescência sem ter tomado para si um time de futebol. É claro que se trata de uma escolha – torcemos para um time quando poderíamos torcer para qualquer outro, ou para nenhum – mas essa escolha é NATURALIZADA, se dá como se fosse a única possível, como se fosse uma escolha óbvia. Trata-se de uma mentira necessária para que a emoção do esporte aconteça.

Explico: um jogador tem sempre que lidar com a frustração das próprias derrotas e lutar pelas suas próprias vitórias. A narrativa de sua vida e a narrativa de suas conquistas e fracassos esportivos é a mesma. Nós torcedores, entretanto, não estamos de fato numa quadra de basquete, nossas vidas não são de fato impactadas pelas vitórias e fracassos. Isso gera uma enorme liberdade, já que poderíamos escolher torcer para qualquer time o tempo inteiro, na prática torcendo sempre para o time que acabar vencendo. O difícil é apenas encontrar qualquer prazer nisso, já que não há nenhum desafio, nenhuma conquista no processo. Acompanhar esportes é um enorme exercício de IDENTIFICAÇÃO auto-forçada, ou seja, nós MENTIMOS PARA NÓS MESMOS dizendo que quando um time vencer, será como se nós tivéssemos vencido. Essa identificação entre torcedor-time faz com que misturemos nossa narrativa com a narrativa da equipe esportiva, e a partir daí as conquistas e os fracassos passam a ter real impacto em nós mesmos. Somos capazes de torcer, vibrar e chorar com alguma coisa que fingimos ser NATURALMENTE NOSSA EXTENSÃO, um pedaço de nós mesmos.

Quando um jogador sai de nosso time, nos sentimos traídos porque parece que essa pessoa está se afastando de uma ligação natural entre a narrativa do esporte e da vida, como se ela estivesse abandonando o único lugar natural de se estar, o único modo do esporte ter impacto e obter algum significado. O problema dessa lógica está no fato de que o jogador JÁ É, em si mesmo, a ligação entre a narrativa de sua vida e a narrativa do esporte. Ele está em casa onde quer que ele vá, e ele tem identificação consigo mesmo e com o esporte sem precisar da mediação de outras instituições. O jogador está tomando decisões esportivas que são decisões imediatas com relação à sua própria vida, os seus objetivos, seu emprego, seus desejos como membro da Geração Y. Nós, torcedores, não tomamos decisões: naturalizamos uma relação de extensão, de representação, e nos vemos presos a ela. Somos reféns da ilusão que contamos e vemos apenas as escolhas de outros indivíduos, jogadores ou dirigentes, e deixamos que essas decisões nos afetem.

Essa capacidade de ser profundamente afetado por algo fora do seu corpo graças ao estabelecimento dessa representação é uma das magias do esporte, cria significado onde pode não haver nenhum e cria sensações de coletividade e de família onde antes havia apenas indivíduos solitários. É o motivo pelo qual o esporte existe e, consequentemente, o motivo pelo qual o Bola Presa existe. O único problema está em quando tentamos tornar essa nossa relação auto-imposta com o esporte como algo natural ou universal, que deve ser imposto a todas as partes. É a raiva do torcedor que acha que o jogador deveria se ver representado no time e jamais abandoná-lo, ou mesmo de torcedores indignados quando outros torcedores mudam de time, ou migram sua paixão de time em time junto com as idas e vindas de um jogador qualquer. Percebam que a relação de identificação entre um torcedor e um time pode acontecer também entre um torcedor e um jogador – posso sentir que as derrotas e as vitórias de Yao Ming são também minhas, por exemplo, e acompanhá-lo de equipe em equipe sem ter que jamais jurar fidelidade a um time da NBA. Não há traição porque as regras do que é ou não traição são auto-impostas, são acordos e combinamos que forçamos em nós mesmos para tentar nos divertir com uma coisa que acontece há milhares de quilômetros de nós e não tem necessariamente qualquer impacto direto sob nossos corpos.

Quando Zach Randolph deixou o Grizzlies, depois de ter ajudado a reerguer a franquia, em busca de um contrato mais lucrativo em Sacramento, a postura do time foi simples: obrigado por ter nos representado por um tempo, somos gratos justamente porque você não era OBRIGADO a estar conosco, você ESCOLHEU nos representar; quando essa escolha mudou, e fomos deixados pra trás, a gratidão continua. Nenhuma camiseta de Zach Randolph foi queimada em Memphis – pelo contrário, mesmo com o jogador ainda em atividade a franquia alertou que nenhum outro jogador poderá usar seu número, que será aposentado e erguido rumo aos tetos do ginásio assim que Randolph deixar de jogar basquete.

Jogadores não são torcedores, eles fazem escolhas pessoais e profissionais e precisam cuidar de si mesmos porque não há mediação, são seus próprios representantes. Não é algo fácil de entender para os torcedores, especialmente porque os jogadores da geração Facebook fazem suas escolhas em palcos enormes, com iluminação profissional ou textos milimetricamente escritos por assessores de imprensa. Tudo parece ser jogado em nossa cara, as justificativas parecem absurdas, o espetáculo às vezes parece querer nos ofender pessoalmente. Mas precisamos lembrar que não é sobre nós, nunca é sobre nós. Somos apenas indivíduos brincando de nos identificar com franquias ou jogadores e, como tal, precisamos eventualmente admitir que podemos escolher estender ainda mais essa identificação para compreender como esses jogadores pensam, sentem e agem. Precisamos ser capazes de usar o esporte como ferramenta para expandir nossa alteridade, nosso entendimento da diferença e do outro. É preciso, como indivíduos, aprender a sofrer respeitosamente enquanto entendemos os motivos de outro indivíduo se afastar de nós ou de nossos times. Não há traição possível quando somos capazes de entender uns aos outros.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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