🔒Quando Harden pediu uma troca

Assim que James Harden pediu para ser trocado, todos os donos de times na NBA ficaram interessados na situação – mesmo aqueles que não tinham qualquer possibilidade ou interesse em conseguir uma troca por Harden. O interesse estava em como o Houston Rockets e a NBA iriam lidar com o pedido, e que tipo de precedentes isso poderia criar dentro da liga. O interesse, de certa maneira, foi por medo. Medo de que acontecesse com eles também.

Quando Anthony Davis pediu para ser trocado do New Orleans Pelicans estava em sua sétima temporada com o time. Durante esse período, só foi para os Playoffs duas vezes, em 2015 e em 2018 – da primeira vez, tomou uma varrida; da segunda, caiu com facilidade nas Semi-Finais de Conferência. Ao longo de sua estadia na equipe, o Pelicans ganhou apenas 44% de todos os jogos que disputou, número baixo demais no Oeste para que o time pudesse almejar qualquer conquista. As grandes contratações para ajudar Anthony Davis a chegar mais longe nos Playoffs foram Eric Gordon, Jrue Holiday e DeMarcus Cousins – três que, assim como Anthony Davis, passaram tempo demais lesionados. Lesões podem parecer aleatórias, mas críticos alegam que o fato de que o Pelicans usa a mesma equipe médica que o time de futebol americano da cidade pode ter alguma relação com a dificuldade de prevenir problemas físicos específicos do basquete. Ou seja, o cenário no Pelicans era de decepção, de fracasso, e era fácil encontrar motivos para responsabilizar a franquia. O pedido de troca de Anthony Davis não foi agradável para os envolvidos na direção do time, mas era mais do que esperado. Cedo ou tarde, se o time não conseguisse resultados diferentes, iria acontecer.

Em geral, pedidos de troca por parte de superestrelas surgem em circunstâncias similares: times que não alcançam os Playoffs, com dificuldade para trazer reforços, engessados com seus elencos e folha salarial. Às vezes são equipes que draftaram uma estrela mas nunca conseguiram montar um time competitivo ao seu redor; em outras, são equipes que perderam tração subitamente e não conseguem mais oferecer um time digno para os jogadores que restaram no elenco.

Os donos dos times estão cientes dessas situações e tentam ao máximo se planejar para evitá-las. Sabem que eventualmente precisam se arriscar, com trocas ou gastos, para construir um time capaz de convencer uma estrela a ficar – como foi o caso do Milwaukee Bucks nessa temporada, abrindo a carteira para dar um elenco de apoio mais robusto para que Giannis Antetokounmpo ficasse. Donos dos times sabem também que precisam trocar suas estrelas com antecedência assim que um processo de reconstrução começa ou está para começar, antes que jogadores precisem exigir uma troca publicamente (e, com isso, diminuir seu valor de mercado) – como foi o caso do Oklahoma City Thunder. A NBA também está ciente dessa dinâmica, e aprovou na década passada os contratos “super-máximos” (os famosos POTES DE OURO), para que jogadores fiquem tentados a ganhar um salário astronômico com suas equipes de origem e desistam de pedir trocas para times mais competitivos.

Mas o que os donos e a própria NBA não estão acostumados é com um caso como o de James Harden. Vejamos: para começar, o jogador tem, nesse momento, o quarto maior salário da NBA. Desde que chegou ao Houston Rockets, em 2012, foi para os Playoffs em TODOS OS ANOS – a maior sequência de visitas à pós-temporada atualmente na NBA. Jogou, nessas 8 temporadas com o time, duas Finais de Conferência e três Semi-Finais (e ficou muito, muito perto das Finais da NBA em 2018). E o time nunca parou de receber reforços ou de fazer mudanças em busca de mais competitividade: passaram pelo elenco jogadores como Dwight Howard (mais perto do auge do que hoje em dia), Carmelo Anthony, Chris Paul e Russell Westbrook. Quando Harden reclamou de Dwight, o time investiu em Omer Asik e Clint Capela; quando reclamou de Chris Paul, lhe trouxeram seu amigo de infância Westbrook; quando reclamou de Westbrook, lhe trouxeram John Wall. São muitas mudanças drásticas ao longo de 8 temporadas, mas Harden nunca esteve sozinho. Estamos falando de um time que se manteve competitivo, que quase foi campeão da Conferência Oeste, que trouxe jogadores de apoio, que fez as mudanças que sua estrela desejava, e que pagou o maior salário possível para sua estrela. E ainda assim recebeu um pedido de troca.


O pedido de troca foi tão fora das circunstâncias usuais que a reação do Houston Rockets foi, inicialmente, não levar a sério. O time seguiu com a troca de Russell Westbrook por John Wall, na esperança de que a nova parceria mostrasse a Harden que o time ainda poderia ter uma chance de lutar pelo título. E foi só então que o pedido de troca “vazou” para a imprensa.

O jornalista Michael Scotto conversou com vários agentes da NBA para entender como os pedidos de troca funcionam e descobriu que o momento em que a troca se torna pública é prejudicial para as equipes, pois cria uma situação de desespero e fragilidade que permite que as ofertas das demais franquias seja menos valiosa. Jogadores usam esse vazamento de um pedido de troca apenas como último recurso, uma espécie de ultimato para indicar que não se trata de algo momentâneo, mas sim de uma decisão definitiva. O clima que um pedido de troca causa é, inclusive, insustentável para o próprio jogador – que passa a receber ofensas da torcida e desdém dos companheiros de time – e acaba criando uma situação em que os times precisam acatar o pedido de troca para salvar a dinâmica interna do vestiário. Se mesmo assim o time nutrir esperanças de que ainda pode convencer seu jogador a ficar, um dos agentes entrevistados diz que orienta seus clientes a mudarem de “temperamento e disposição para mostrar que não vai funcionar”. Ou seja, jogadores são instruídos a JOGAR COM MÁ VONTADE, demorar para se apresentar ao time, faltar a treinos ou até aparecer fora de forma. James Harden cumpriu todas essas etapas: se apresentou atrasado para a temporada, foi visto numa balada quebrando os protocolos de saúde da NBA contra o novo coronavírus, perdeu jogos por estar em quarentena e apareceu totalmente fora de forma. O que nos parece falta de profissionalismo é, na verdade, profissionalismo DEMAIS: é tudo planejado, coordenado, sob orientação de um agente. Harden contratou do próprio bolso até mesmo um profissional especialista em trocas e finanças para trabalhar em parceria com o Houston Rockets e encontrar o melhor cenário possível para o jogador e o time. Não tinha mais volta.

Mas o Rockets não aceitou. Acreditou que, cedo ou tarde, seria possível convencer o jogador do talento do recém-contratado Chris Wood e da saúde dos recém-chegados John Wall e DeMarcus Cousins. E o resto dos donos da NBA acreditaram também, e acompanharam bem de perto. Nos bastidores, dizem que um grupo de donos pediu uma reunião de emergência com Adam Silver, comissário da NBA, para saber quais seriam as providências da Liga caso Harden se recusasse a jogar pelo Rockets ou jogasse mal de propósito. Pelo jeito, pediram punições duras; a ideia era não abrir precedentes para que outros jogadores em situações excelentes (de salário, de elenco, de chances de Playoffs) pedissem publicamente para serem trocados – e ainda com uma lista de times preferidos, o que reduz imediatamente o valor de mercado do jogador porque as demais equipes ficam ressabiadas. Cogitou-se até mesmo que várias equipes queriam que houvesse um boicote à troca de Harden, para “passar uma mensagem para os jogadores da Liga”. Fala-se inclusive de uma certa “etiqueta” dos pedidos de troca que não foi respeitada: Harden não esperou seu time ir mal, não pediu troca logo após uma eliminação nos Playoffs, não permitiu que a situação fosse resolvida internamente, não esperou um momento mais oportuno (até mesmo porque a temporada encurtada foi um momento NADA oportuno, já que os times ficaram comprometidos financeiramente com seus elencos mais cedo do que o habitual, o que dificultou ainda mais as negociações). Ele apenas decidiu que não queria mais e seguiu a cartilha necessária para forçar uma troca.

Uma intervenção da NBA, no entanto, tem seus limites. Quando um jogador se recusa a entrar em quadra ou a participar de treinos, seu time pode acionar a Liga e tomar três caminhos possíveis: multar o jogador (que paga para a NBA um valor específico, pré-definido, por ter violado as regras de seu contrato), suspender o jogador (que não participa de um jogo e abre mão da porcentagem do seu salário correspondente àquela partida) ou encerrar o contrato do jogador. A última opção, encerrar contratos, funciona para jogadores menores, não para estrelas – um time não ganha nada abrindo mão de seu melhor jogador e permitindo que ele vá, de graça, para outra franquia. Restam, portanto, as multas e as suspensões. Mas e quando um jogador pede uma troca, age com má vontade e tem péssimas atuações, mas não se recusa a entrar em quadra? Nesse caso estamos entrando numa situação completamente subjetiva: como determinar com precisão o quanto de uma atuação ruim foi “corpo mole”, “má fé”, e o quanto foi apenas um jogo complicado? Como provar isso, de modo a punir o jogador?

Nas oito partidas que jogou pelo Rockets nessa temporada, Harden tentou o menor número de infiltrações desde que chegou à franquia – um atestado óbvio de sua deplorável forma física e de sua má vontade. Ainda assim, teve média de 25 pontos, 10 assistências e 5 rebotes por jogo. Estamos numa área cinza: é impossível atestar algo como “falta de comprometimento”, especialmente se James Harden – bem assessorado e certamente instruído pelo seu agente – continuou produzindo números espetaculares. Com a temporada rolando, Harden não faltou mais nos treinos, não quebrou protocolos e produziu o que se esperava dele em quadra. Essa é a maneira de um jogador quebrar as “regras de etiqueta” mas não as regras do seu contrato – afinal, contrato nenhum no mundo obriga um funcionário a trabalhar feliz ou animado. Pode um time, então, manter um jogador descontente na equipe desde que ele esteja produzindo a contento?

É possível. Mas quando o Rockets deixou claro que era isso que iria fazer (mantendo a palavra depois da nota pública afirmando que estavam dispostos a ficar “desconfortáveis”), Harden fez sua última lição de casa: afirmou, numa coletiva de imprensa após uma derrota avassaladora para o Los Angeles Lakers, que o time não era bom o bastante:

“Simplesmente não somos bons o suficiente. Em termos de química, talento, tudo, e ficou bem claro nos últimos jogos. É uma situação doida, algo que eu não acho que dê pra arrumar.”

O momento da declaração é crucial: vem depois de uma derrota para o time de melhor campanha da liga, o que passa uma mensagem de “eu até tentei acreditar, mas não estamos no mesmo nível dos melhores”. Mas o conteúdo é que cimenta de vez sua saída do time, criticando o TALENTO dos seus companheiros de time – diretoria nenhuma do planeta seria capaz de manter ESSE NÍVEL de desconforto nos vestiários. No dia seguinte, tivemos declarações desgostosas de John Wall, DeMarcus Cousins e do técnico Stephen Silas, inclusive afirmando que “o melhor para James Harden e para o resto do time seria Harden não comparecer mais aos treinos”. Pouco tempo demais, o jogador havia sido trocado para o Brooklyn Nets.


Por mais que os times se preocupem com os pedidos de troca de estrelas em times vencedores, e que a ideia de um time que fez “tudo certo” sendo punido com a saída de uma estrela dificulte todo o conceito da NBA como uma liga de PLANEJAMENTO (mesmo que o Knicks não conheça esse conceito, claro), pelo que vimos não há regra possível capaz de impedir um jogador de forçar uma troca. Mudança de postura, voltar fora de forma, quebrar algumas regras e pagar multas porque estrelas são MILIONÁRIAS tornam a situação insustentável. Estrelas podem arcar com esses comportamentos disruptivos em parte porque podem PAGAR (ao contrário da Finlândia, as multas não são proporcionais aos salários, de modo que uma estrela pode pagar pelos seus desvios enquanto um jogador em salário mínimo precisa tomar cuidado com a sua conduta), mas principalmente porque os times SE PUNEM ao colocar um jogador de castigo, ao impedi-lo de jogar ou ao forçar que ele continue no elenco e no vestiário depois de comentários que podem levar os demais jogadores do time a PARTIR PRA PORRADA, como foi o caso de Harden.

Quando fala-se que a NBA é “uma liga de estrelas”, é disso que se trata: as pessoas ligam seus televisores porque querem ver as estrelas, e os times colocam as estrelas em quadra porque querem ser vistos – e porque querem vencer. É natural que nessa estrutura estrelas tenham muito mais poder do que todas as outras partes envolvidas. Se a situação de James Harden se prolongasse no Rockets, o estrago ocorreria em muitas frentes: perderia o Rockets, que não teria chances de chegar a lugar nenhum, teria todos os seus jogadores descontentes e não teria peças de reconstrução; perderia a NBA, que não teria seu maior cestinha jogando em alto nível; e perderia o público, que veria um dos seus principais atletas jogando sem comprometimento. Frente a tantas derrotas, trocas são simplesmente acatadas – se essa demorou para ser finalizada, foi apenas pelo ineditismo da situação de Harden, depois de tantos anos de Playoffs. Mas no final das contas, manteve-se o mesmo veredito: quando estrelas pedem para ser trocadas, elas são. E para o lugar que escolherem. É uma realidade da NBA a que os times terão que se adaptar. Mesmo as equipes que entregam tudo do bom e do melhor para suas estrelas correm esse risco; podem fazer tudo certo e ainda serem punidas. Faz parte. O jogo imita a vida.


Minha principal ressalva a essa realidade das trocas acatadas é o mito de que os jogadores sabem aquilo que é melhor para eles. É claro que, em linhas gerais, todos acreditam saber o que é melhor para cada um, mas nossa capacidade imaginativa é limitada. Não somos capazes de imaginar todos os cenários possíveis e, ao não imaginá-los, não os desejamos, não acreditamos que possam ser bons ou válidos.

Talvez a história mais interessante da NBA nos últimos anos tenha sido a troca de Kawhi Leonard para o Toronto Raptors – uma troca desastrosa para o San Antonio Spurs, que foi duramente punido com a perda de sua estrela por um misto de acaso e pequeno deslize na relação com seu jogador. Mas a troca para o Raptors, que Kawhi não endossou – prefiria outros destinos, como as equipes de Los Angeles – foi maravilhosa para Kawhi. Era o time perfeito para ele, na situação perfeita para ele, no momento perfeito para ele, e lhe rendeu UM TÍTULO DE CAMPEÃO DA NBA. Foi um momento completamente inesperado, em que tanto jogador quanto torcedores foram surpreendidos com um cenário fascinante – e que o jogador não havia imaginado.

James Harden imaginou um cenário – alguns, na verdade. Se viu no Nets ao lado do amigo Kevin Durant, no Sixers ao lado de Joel Embiid, no Heat ao lado de Jimmy Butler. Mas foi o mesmo James Harden quem também imaginou como cenários jogar ao lado de Chris Paul e Russell Westbrook, cenários que não foram os ideias nem para seu jogo, nem para o Houston Rockets. James Harden não parece muito bom em imaginar, e ao forçar uma troca para lugares específicos, perde a oportunidade de que imaginem para ele – e, portanto, de ser surpreendido.

Jogadores sempre vão ter o poder de forçar trocas e escolher seus times preferidos. A única coisa que os times da NBA podem fazer para resistir a esse cenário em que os jogadores imaginam todos os cenários e pré-determinam a formação dos elencos é tentar convencê-los (ou forçá-los) a ir jogar em lugares que eles não previram. É mandar Kawhi para Toronto, ao invés de para Los Angeles, e ver o que acontece. E se o Rockets tivesse mandado o Harden para o New York Knicks, por exemplo? Será que ele seguiria sua cartilha de “desobediências”, ou seu agente iria orientá-lo a ao menos tentar jogar em grande nível por um tempo, para recuperar seu valor de troca e experimentar o novo ambiente? Que resultados inimagináveis um cenário assim poderia nos trazer? Convencer um jogador a se aclimatar a uma nova equipe seria equivalente a tentar convencer um jogador a ficar onde está? Para o Toronto Raptors, o risco valeu a pena; resta saber se outros times também ousariam arriscar.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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